Diante do histórico de ofensas americanas e réplicas alemãs, clima do primeiro encontro entre os dois líderes deve ser carregado. Ambos terão de superar as duras críticas do presidente dos EUA à líder da Alemanha.
Anúncio
Quando líderes políticos alemães e americanos discordam seriamente num tópico crucial, geralmente é este o tom: "Este país, sob o meu governo, não está disponível para aventuras", disse o então chanceler federal da Alemanha, Gerhard Schröder, durante um evento eleitoral de seu Partido Social-Democrata (SPD), em meados de 2002.
O chefe de governo se referia à perspectiva de uma invasão do Iraque pelos Estados Unidos, que acabou acontecendo no ano seguinte, sob o presidente George W. Bush. Consta que a réplica de Schröder não só irritou seriamente o republicano, como também prejudicou irreparavelmente a relação pessoal dos dois líderes.
"Não estou convencido", foi a célebre resposta do então ministro alemão do Exterior, Joschka Fischer, ao secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, na Conferência de Segurança Mundial de Munique, em fevereiro de 2003, um mês antes de os americanos começarem a invadir o território iraquiano.
O fato de o chefe da diplomacia alemã questionar assim a apologia da guerra feita pelo chefe do Pentágono diante de um grupo de personalidades da política global era inusitado no contexto da tradicionalmente estreita e – pelo menos publicamente – harmoniosa relação entre líderes das duas potências.
Tampouco melindroso com as palavras, Rumsfeld declarou, naquele mesmo mês: "Eu creio que Líbia, Cuba e Alemanha são os que indicaram que não ajudarão de forma alguma." Desse modo, ele equiparava o posicionamento do país europeu ao de duas nações tradicionalmente hostis aos EUA.
"O povo alemão vai acabar derrubando essa mulher"
Mesmo diante de tal pano de fundo histórico, é verdadeiramente inédito o número e a ferocidade dos ataques verbais emitidos por Donald Trump contra a atual chanceler federal alemã, Angela Merkel , durante a campanha presidencial dele, sem qualquer provocação.
"Eu sempre achei que Merkel fosse uma grande líder", disse numa entrevista em outubro de 2015, comentando a decisão da política democrata-cristã de permitir o ingresso no país de mais de 1 milhão de refugiados.
"O que ela fez na Alemanha é insano", acrescentou o candidato americano. "Eles vão ter revoltas de rua na Alemanha", previu.
Dois meses mais tarde, após a revista Time eleger Merkel "personalidade do ano", Trump comentou no Twitter que o veículo escolhera a pessoa "que está arruinando a Alemanha".
O que os americanos pensam de Merkel?
00:56
Em março de 2016, durante um comício no estado de Iowa, referindo-se ao ataque em massa a mulheres no réveillon da cidade alemã de Colônia, o republicano castigou Merkel mais uma vez: "O povo alemão vai se revoltar. O povo alemão vai acabar derrubando essa mulher. Eu não sei o que ela tem na cabeça."
Em junho passado, comentando o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), o bilionário americano especulou sobre um êxodo na Alemanha: "Isso é gente que eram alemães muito orgulhosos, acima de qualquer crença [sic], eles achavam que era o maior que já houve e agora estão falando em deixar a Alemanha."
Em outra entrevista, ainda como candidato, Trump comentou: "Bem, eu acho que Merkel é realmente uma grande líder mundial. Mas fiquei muito decepcionado quando ela... essa guinada com a coisa toda da imigração. Acho que é um problema realmente grande e, sabe, vendo o que ela fez no último ano e meio... Sempre fui uma pessoa pró-Merkel, achava realmente fantástica, mas acho que ela cometeu um erro muito trágico um ano e meio atrás."
Pelo menos sem gritaria
Ao contrário de alguns dos membros de seu gabinete, a chefe de governo alemã manteve a calma e não rebateu diretamente as críticas de Trump durante a campanha eleitoral. Em vez disso, esperou o resultado para abrir o verbo com o novo presidente dos Estados Unidos.
Num já famoso comunicado da Chancelaria Federal, congratulando o magnata por sua vitória, ela lhe ofereceu cooperação estreita, com base nos valores comuns, que enumerou um a um: "democracia, liberdade, respeito à lei e à dignidade dos seres humanos, independente de origem, cor da pele, religião, gênero, orientação sexual ou posicionamento político".
A mensagem pode parecer moderada, diante dos ataques feitos por Trump. Porém oferecer cooperação a um presidente americano não só sob condições especificadas, mas de um jeito passível a ser interpretado como uma lição sobre os valores ocidentais, foi tão próximo a uma repreensão quanto se possa esperar de Merkel ou de qualquer premiê da Alemanha.
E a política conservadora não parou por aí, pronunciando-se em janeiro com veemência contra a proibição, anunciada por Trump, do ingresso nos EUA de cidadãos de diversas nações predominantemente islâmicas: "A necessária e decisiva batalha contra o terrorismo não justifica, de forma alguma, colocar certos grupos humanos sob suspeita generalizada – neste caso, indivíduos de fé muçulmana ou de uma certa origem."
Considerando-se esse embate retórico, é justo descrever como potencialmente carregado o primeiro encontro entre Merkel e Trump, marcado para esta semana. E tudo indica que um experiente analista de política externa americana estava brincando apenas em parte, ao observar que já consideraria um sucesso, se Trump se comportar e o encontro acabar sem gritaria.
Os decretos de Donald Trump
Donald Trump estremeceu o cenário político em seus primeiros dias como presidente dos EUA com uma série de decretos e memorandos impactantes. Entenda a diferença e o significado de cada um deles.
Foto: picture-alliance/dpa/Sachs
Forma rápida de cumprir promessas eleitorais
Com menos de duas semanas na presidência, Donald Trump emitiu 17 medidas executivas. Embora este número em si não seja significativo – no mesmo período Barack Obama assinou praticamente o mesmo número de ordens – o conteúdo dos decretos de Trump é. Parece que o novo presidente dos EUA quer implementar muitas de suas promessas de campanha – incluindo as controversas - o mais rápido possível.
Foto: Reuters/K. Lamarque
O que são ordens executivas e memorandos?
As ações executivas (EA) permitem que o presidente dos EUA dê ordens que não precisam de aprovação do Congresso a agências governamentais, contornando o processo legislativo e acelerando sua implementação. Ordens executivas são uma forma mais abrangente de EA que muitas vezes lidam com diretrizes organizacionais maiores, enquanto memorandos presidenciais ordenam agências específicas a fazer algo.
Foto: picture-alliance/CNP/A. Harrer
Enfraquecer Obamacare (ordem executiva)
A primeira ordem executiva assinada por Trump foi uma para retardar partes do Affordable Care Act (Obamacare) para "minimizar encargos regulatórios". Enquanto Trump sozinho não pode revogar a legislação instituída por Obama, ele pode minar a implementação do programa de saúde enquanto a maioria republicana no Congresso se prepara para revogá-lo.
Foto: Reuters/J. Rinaldi
Retirar subsídio para aborto (memorando)
Trump reinstituiu uma política que impede o financiamento federal para ONGs que fornecem aconselhamento sobre aborto e defendem o direito ao aborto. Essa diretriz tem uma longa história: foi inicialmente instaurada pelo republicano Ronald Reagan, rescindida pelo democrata Bill Clinton, reinstituída pelo republicano George W. Bush, antes de ser reativada pelo democrata Barack Obama.
Foto: REUTERS/A. P. Bernstein
Deportação de imigrantes (ordem executiva)
Trump ordenou que os agentes de imigração expandissem o escopo das deportações. Ele visa retirar concessões federais das chamadas cidades-santuário (onde imigrantes sem documentos não são processados) e que imigrantes suspeitos de um crime sejam detidos, mesmo sem acusação. Trump pretende contratar 10 mil novos agentes e publicar um relatório sobre crimes cometidos por imigrantes sem documentação.
Foto: picture alliance/AP Images/G. Bull
Construir o muro (ordem executiva)
Numa ordem executiva assinada em 25 de janeiro, Trump solicitou "a construção imediata de um muro físico", a fim de proteger a fronteira entre México e EUA. Ele também se referiu aos imigrantes sem documentos como "deportáveis", dizendo que o Poder Executivo deve "acabar com o abuso das disposições de liberdade condicional e refúgio usadas para impedir a remoção legal de estrangeiros deportáveis."
Foto: Getty Images/AFP/S. Huffaker
Veto a muçulmanos (ordem executiva)
Trump assinou este controverso decreto em 27 de janeiro. Ele proibiu pessoas de sete países de maioria muçulmana de entrar nos EUA por três meses, suspendeu indefinidamente o programa de refugiados sírios e suspendeu a admissão de refugiados por 120 dias. Protestos contra a ordem estouraram em todo o país e até mesmo os senadores republicanos John McCain e Lindsey Graham criticaram a medida.
Foto: DW/M. Shwayder
EUA deixam TPP (memorando)
Não foi nenhuma surpresa Donald Trump ter abandonado a Parceria Transpacífico (TPP). Durante a campanha, ele criticou frequentemente o TPP e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), afirmando que outros países se beneficiaram desses acordos comerciais, em detrimento dos EUA. O porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, disse que Trump prefere lidar individualmente com os países.
Foto: Getty Images/AFP/
Sinal verde para oleodutos (memorando)
Três memorandos diferentes – um sobre a construção do oleoduto Dakota Access, outro sobre a continuação da construção do oleoduto Keystone e uma terceira ordem sobre o uso de materiais americanos nas obras – foram emitidos no quarto dia de Trump no governo. Obama tinha negado licenças para ambos os oleodutos após protestos em massa de ambientalistas, que temem o impacto de eventuais vazamentos.
Foto: REUTERS/S. Keith
Expandir as Forças Armadas (memorando)
Trump cumpriu sua promessa eleitoral de investir num Exército maior ao assinar na sua primeira semana no cargo um memorando que pede mais tropas, navios de guerra e um arsenal nuclear modernizado. Quatro dias antes ele ordenou congelar a contratação de civis em agências federais por até 90 dias, para que seu governo possa desenvolver um plano de longo prazo para encolher a força de trabalho.
Foto: Reuters/K. Pempel
Steve Bannon no NSC (memorando)
Trump ordenou uma revisão do Conselho de Segurança Nacional (NSC) para elevar o papel de Stephen Bannon. Trump retirou vários membros do painel responsável por tomar decisões de política externa, enquanto seu estrategista-chefe – conhecido por opiniões de extrema direita – servirá no comitê geralmente preenchido por generais. Isso rompe com a norma de longa data de não nomear políticos para o NSC.
Foto: pciture-alliance/AP Photo/E. Vucci
Desregulamentações (executiva e memorando)
Trump quer que agências federais eliminem ao menos duas normas para cada nova regulamentação e ordenou o congelamento de regulamentações federais, até que um chefe de departamento designado por ele possa revisá-las. Ele também pediu pela rápida aprovação de "projetos de infraestrutura de alta prioridade". Na campanha, Trump disse que o "excesso de regulamentações" feriu o comércio americano.
Foto: Getty Images/AFP/M. Ralston
Precedente presidencial
Obama emitiu um total de 277 ordens executivas – uma média de quase três por mês e um pouco menos do que seu antecessor, George W. Bush (291). Obama assinou 644 memorando presidenciais para contornar imposições no Congresso – um precedente do qual Trump aparenta estar tirando proveito, embora a maioria em ambas as Casas do Congresso seja republicana.