Transexual, Lorenza Böttner perdeu os braços quando criança. Seu trabalho, apresentado na Documenta, pode ser visto como resistência: um contestação aos modos de representação de gênero e de deficientes.
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"A partir de quando um corpo é considerado existente? O que vale como corpo? Um corpo pode pertencer a alguém? O que acontece quando ele pertence a alguém, mas o proprietário e o suposto sujeito não são compatíveis?", escreve o curador Paul B. Preciado em seu texto para a Documenta 14 Meu corpo não existe.
É nesse contexto que o trabalho da artista chilena Lorenza Böttner (1959-1994) encontra o seu lugar na maior mostra mundial da arte contemporânea, que acontece a cada cinco anos em Kassel, na Alemanha.
Lorenza nasceu em 1959 como Ernst Lorenz Böttner numa família de origem alemã em Punta Arenas, no Chile. Quando tinha oito anos, recebeu um choque elétrico ao tentar subir num poste de eletricidade, ambos os seus braços tiveram que ser amputados abaixo dos ombros. Aos 14 anos, veio para a Alemanha com sua mãe realizar uma série de operações plástico-cirúrgicas, mudando-se em 1973 para Lichtenau, uma cidade nas redondezas de Kassel.
Os organizadores da Documenta explicam que Böttcher cresceu como "deficiente" e sofreu a mesma internação e exclusão que os chamados "Filhos da Talidomida", que nasciam com diferenças morfológicas devido aos efeitos do medicamento Talidomida no útero da gestante.
Lorenza recusou-se a usar próteses de braços, mas desenvolveu um grande interesse pelo balé clássico, jazz e sapateado, e aprendeu a pintar com os pés e a boca. Estudou na Academia de Belas-Artes de Kassel e se graduou com um trabalho intitulado "Behinderter?" ("Deficiente?"), no qual ela questionou a categoria "deficiência" e se recusou a ser vista como um "freak" (aberração, esquisito, excêntrico), pesquisando a genealogia de Pintores com a Boca e os Pés.
Nesse momento, explicam os curadores, teve início um processo duplo de autoconstrução subjetiva e artística: "Lorenz decidiu usar o nome Lorenza como confirmação de uma posição transexual abertamente feminina. Os desenhos e autorretratos de Lorenz como mulher, pintados com a boca e os pés, em roupas de mulher desenhadas para pessoas sem braços, como também sequências fotográficas que documentam o processo de transformação, funcionam como tecnologias performáticas da criação de uma subjetividade transgênera sem braços."
Nesse ponto, a obra de Lorenza Böttner pode ser vista como um trabalho de resistência: enquanto o discurso médico e os modos de representação pretendem dessexualizar e transformar o corpo deficiente num corpo sem definição de gênero, o trabalho de performance de Lorenza erotiza o corpo trans e sem braços, equipando-o com potência sexual e política.
Em 1988, Lorenza mudou-se para Barcelona. Em 1992, ela se tornou a personificação viva de "Petra", a menina-mascote sem braços criada para os Jogos Paralímpicos no mesmo ano, lembraram os curadores.
Lorenza morreu em 1994 devido a complicações relacionadas com HIV. Sua obra em forma de desenhos, pastéis, pinturas, vídeo, como também material de arquivo, poderá ser vista até 17 de setembro na Neue Galerie, em Kassel.
Lorenza Böttner e o corpo
Enquanto discurso médico e modos de representação tendem a dessexualizar e a transformar o corpo deficiente em algo sem definição de gênero, trabalho performático de artista chilena erotiza o corpo trans e sem braços.
Foto: DW/Carlos Albuquerque
Lorenza Böttner na Documenta de Kassel
A transgeneridade é um dos temas abordados na atual Documenta de Kassel. É nesse contexto que o trabalho da artista chilena Lorenza Böttner (1959-1994) encontra o seu lugar na maior mostra mundial da arte contemporânea. A foto mostra um autorretrato pintado com a boca e os pés, em que a artista trans e sem braços amamenta uma criança.
Foto: DW/C. Albuquerque
Deficiência e exclusão
Lorenza nasceu em 1959 como Ernst Lorenz Böttner numa família de origem alemã em Punta Arenas, no Chile. Após ter os braços amputados devido a um choque elétrico, Böttner partiu aos 14 anos para a Alemanha para uma série de operações plástico-cirúrgicas. Em Lichtenau, perto de Kassel, ela cresceu como "deficiente" e sofreu a mesma internação e exclusão que os chamados "Filhos da Talidomida".
Foto: DW/Carlos Albuquerque
Autoconstrução subjetiva e artística
Lorenza recusou-se a usar próteses, aprendeu a pintar com os pés e a boca e estudou na Academia de Belas-Artes de Kassel, onde se graduou com um trabalho intitulado "Behinderter?" ("Deficiente?"), em que questiona a categoria "deficiência". Nesse momento, dizem os curadores da mostra em Kassel, teve início em Lorenza Böttner um processo duplo de autoconstrução subjetiva e artística.
Foto: DW/Carlos Albuquerque
Subjetividade transgênera sem braços
Lorenz passou a se chamar Lorenza, confirmando uma posição transexual feminina. Os desenhos e autorretratos de Lorenz como mulher, pintados com a boca e os pés; em roupas de mulher desenhadas para pessoas sem braços, como também sequências fotográficas que documentam o processo de transformação, funcionam "como tecnologias performáticas da criação de uma subjetividade transgênera sem braços".
Foto: DW/C. Albuquerque
Pintores com a Boca e o Pés
Lorenza Böttner transformou a prática da pintura em arte performática ao fazer da rua um palco da politização da diferença corporal. Assim, ela seguiu, de certa forma, a tradição dos Pintores com a Boca e o Pés, que ganham o seu sustento pintando em praças e ruas.
Foto: DW/C. Albuquerque
Arte de performance contemporânea
Embora o trabalho de Lorenza se relacione com essa tradição da pintura de rua, através dos temas representados (como no quadro de cenas de brutalidade policial) e através da combinação da pintura com a boca e os pés com uma linguagem antes conceitual, a sua obra se orienta na arte de performance contemporânea, explicam os curadores.
Foto: DW/C. Albuquerque
Pés na história da arte
Böttner esteve ligada ao Disabled Artists Network (Rede de Artistas com Deficiência) e defendeu a importância da arte feita com a boca e os pés, lutando para que a história da arte a reconhecesse como um gênero. Aqui se vê um autorretrato em grande formato em que a artista teuto-chilena deixou claramente a marca de seus pés sobre a tela.
Foto: DW/C. Albuquerque
Trabalho de resistência
Lorenza Böttner lutou ativamente contra os processos da dessubjetivação, da incapacitação, do internamento, da dessexualização e castração, que as sociedades normalizadoras modernas atribuem a "outros tipos corporais". Em 1988, Böttner mudou-se para Barcelona. Ela morreu em 1994 devido a complicações ligadas ao HIV.