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O que vale como corpo?

11 de julho de 2017

Transexual, Lorenza Böttner perdeu os braços quando criança. Seu trabalho, apresentado na Documenta, pode ser visto como resistência: um contestação aos modos de representação de gênero e de deficientes.

Lorenza Böttner auf der documenta 14 in Kassel
Detalhe de autorretrato de Lorenza Böttner em grande formato pintado com boca e pésFoto: DW/C. Albuquerque

"A partir de quando um corpo é considerado existente? O que vale como corpo? Um corpo pode pertencer a alguém? O que acontece quando ele pertence a alguém, mas o proprietário e o suposto sujeito não são compatíveis?", escreve o curador Paul B. Preciado em seu texto para a Documenta 14 Meu corpo não existe.

É nesse contexto que o trabalho da artista chilena Lorenza Böttner (1959-1994) encontra o seu lugar na maior mostra mundial da arte contemporânea, que acontece a cada cinco anos em Kassel, na Alemanha.

Lorenza nasceu em 1959 como Ernst Lorenz Böttner numa família de origem alemã em Punta Arenas, no Chile. Quando tinha oito anos, recebeu um choque elétrico ao tentar subir num poste de eletricidade, ambos os seus braços tiveram que ser amputados abaixo dos ombros. Aos 14 anos, veio para a Alemanha com sua mãe realizar uma série de operações plástico-cirúrgicas, mudando-se em 1973 para Lichtenau, uma cidade nas redondezas de Kassel.

Fotografias de Böttner pintando nas ruas e dançando com vestidos desenhados para seu corpoFoto: DW/C. Albuquerque

Os organizadores da Documenta explicam que Böttcher cresceu como "deficiente" e sofreu a mesma internação e exclusão que os chamados "Filhos da Talidomida", que nasciam com diferenças morfológicas devido aos efeitos do medicamento Talidomida no útero da gestante.

Lorenza recusou-se a usar próteses de braços, mas desenvolveu um grande interesse pelo balé clássico, jazz e sapateado, e aprendeu a pintar com os pés e a boca. Estudou na Academia de Belas-Artes de Kassel e se graduou com um trabalho intitulado "Behinderter?" ("Deficiente?"), no qual ela questionou a categoria "deficiência" e se recusou a ser vista como um "freak" (aberração, esquisito, excêntrico), pesquisando a genealogia de Pintores com a Boca e os Pés.

Palestra de Paul B. Preciado na abertura da Documenta em KasselFoto: DW/C. Albuquerque

Nesse momento, explicam os curadores, teve início um processo duplo de autoconstrução subjetiva e artística: "Lorenz decidiu usar o nome Lorenza como confirmação de uma posição transexual abertamente feminina. Os desenhos e autorretratos de Lorenz como mulher, pintados com a boca e os pés, em roupas de mulher desenhadas para pessoas sem braços, como também sequências fotográficas que documentam o processo de transformação, funcionam como tecnologias performáticas da criação de uma subjetividade transgênera sem braços."

Nesse ponto, a obra de Lorenza Böttner pode ser vista como um trabalho de resistência: enquanto o discurso médico e os modos de representação pretendem dessexualizar e transformar o corpo deficiente num corpo sem definição de gênero, o trabalho de performance de Lorenza erotiza o corpo trans e sem braços, equipando-o com potência sexual e política.

Em 1988, Lorenza mudou-se para Barcelona. Em 1992, ela se tornou a personificação viva de "Petra", a menina-mascote sem braços criada para os Jogos Paralímpicos no mesmo ano, lembraram os curadores.

Lorenza morreu em 1994 devido a complicações relacionadas com HIV. Sua obra em forma de desenhos, pastéis, pinturas, vídeo, como também material de arquivo, poderá ser vista até 17 de setembro na Neue Galerie, em Kassel.

 

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