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Obras da Copa de 2014 violam direitos de famílias atingidas

30 de setembro de 2012

Desinformação e reassentamento em locais piores são apenas alguns dos problemas apontados por especialistas. Segundo relatora da ONU para moradia adequada, pequenos avanços foram alcançados graças à mobilização popular.

Foto: DW/S. Cowie

Falta de transparência, indenizações insuficientes, reassentamentos inadequados: é assim que especialistas descrevem o processo de remoção de famílias para obras da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil. Segundo estimativa dos Comitês Populares da Copa, cerca de 170 mil pessoas serão desalojadas para a realização de grandes projetos urbanos no contexto dos megaeventos esportivos.

Formados por movimentos sociais organizados, universidades e entidades da sociedade civil nas cidades-sede dos jogos, os Comitês Populares da Copa reuniram grande número de dados com o objetivo de denunciar abusos. A segunda e última edição do dossiê Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil, publicada em junho deste ano, afirma que "o direito à moradia vem sendo sistematicamente violado".

"A insegurança e o temor são o lote comum das populações ameaçadas, em virtude da falta de informação, difusão de informações falsas e contraditórias, ameaças, propagandas enganosas, boatos vindos do próprio governo e da mídia", diz o documento.

De acordo com Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Moradia Adequada e urbanista da Universidade de São Paulo (USP), a primeira violação está no direito à informação. Além da falta de comunicação com as comunidades, os comitês também têm dificuldade no acesso à informação.

As indenizações e realojamentos propostos também podem ser vistos como violações. "O reassentamento em locais com menor disponibilidade de serviços e emprego viola o direito de moradia adequada, que inclui o acesso aos demais direitos humanos – educação, saúde, trabalho", diz Rolnik.

Além disso é frequente a falta de reconhecimento ao direito de posse, assegurado pela legislação brasileira e por acordos internacionais firmados pelo Brasil, denuncia o dossiê dos Comitês Populares. "Considera-se que é melhor implementar um projeto de infraestrutura sobre assentamentos informais porque sai mais barato, não tem que pagar indenização, algo completamente equivocado do ponto de vista dos direitos humanos e da legislação brasileira", critica a urbanista.

Rolnik afirma que o padrão geral de intervenção não mudou mesmo após a Relatoria da ONU divulgar um boletim alertando para casos de violação de direitos humanos na remoção de comunidades em função dos megaeventos esportivos no Brasil, em abril deste ano.

Rolnik: " O direito de moradia adequada inclui acesso a educação, saúde, trabalho"Foto: Luiz Alonso

"Não houve, por parte das autoridades, iniciativas para estabelecer um padrão nacional. As remoções dependem das municipalidades e, em alguns casos, dos governos estaduais." De acordo com a urbanista, houve apenas alguns avanços específicos nas 12 cidades que sediarão os jogos, principalmente graças à mobilização popular e ao trabalho dos comitês.

O caso da Vila Autódromo

Uma das lutas mais significativas é o da Vila Autódromo, no Rio de Janeiro. De acordo com o dossiê dos Comitês Populares, a ameaça de remoção chegou à comunidade através do jornal O Globo. A reportagem A bola da vez: Vila Autódromo, de outubro de 2011, anunciava o desalojamento de cerca de 500 famílias para dar lugar ao Parque Olímpico.

"A vila não está no local de nenhuma obra prevista, só está estragando a paisagem da frente de expansão imobiliária que está se estruturando em torno do Parque", critica Rolnik. Com o apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense, a Vila Autódromo elaborou um projeto alternativo para o local, que evita a remoção. A proposta de urbanização aguarda agora aprovação da prefeitura.

Para Christopher Gaffney, geógrafo norte-americano e professor visitante da UFF, a projeção de uma imagem positiva está fortemente ligada às obras dos megaeventos. Porém, da maneira como age, o poder público acaba muitas vezes transmitindo o inverso do desejado. "No caso da Vila Autódromo, por exemplo, a imagem mais bonita que poderia ser passada para a comunidade internacional é a da urbanização", considera o geógrafo, que pesquisa os impactos dos megaeventos esportivos no Brasil desde 2009.

Algo parecido acontece com a Aldeia Maracanã, comunidade indígena que, desde 2006, ocupa o espaço de um antigo museu do índio ao lado do estádio do Maracanã e que está ameaçada de remoção. "A imagem mais bonita que poderia ser passada é da articulação com os índios e restauração do museu", diz Gaffney. "Em vez de melhorar, querem esconder a realidade."

Há casos documentados em vídeo de casas demolidas com as coisas das pessoas dentro, relata RolnikFoto: DW/S. Cowie

Mobilização e resistência

No Rio de Janeiro, desde as primeiras remoções, em 2010, houve avanço no relacionamento da prefeitura com as comunidades atingidas graças à pressão popular, afirma Rolnik. "Há casos documentados em vídeo de casas derrubadas com as coisas das pessoas dentro, sem ter sido equacionado o destino delas", lamenta.

Cenas de demolições e protestos reprimidos pelo batalhão de choque da polícia e depoimentos de moradores foram registradas no documentário A Caminho da Copa, por exemplo. Uma versão curta do filme, produzido pelo Instituto Polis e em fase de finalização, está disponível na internet.

Os casos cariocas atraem atenção especial porque, além da Copa, a cidade sediará as Olimpíadas. Mas a violação dos direitos humanos em remoções está presente nas demais cidades-sede da Copa. O dossiê dos Comitês Populares cita casos em Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Manaus, São Paulo e Fortaleza.

Na capital cearense, por exemplo, as obras da Via Expressa atingirão 3.500 casas, segundo o dossiê. "As famílias não foram consultadas. Por meio de uma mobilização, conseguiram suspender as obras até a apresentação de um projeto alternativo, que atenda ao direito à moradia", diz o documento.

Fortaleza também foi uma das cidades visitadas pela relatora da ONU, que cita o caso da comunidade Aldaci Barbosa, onde inicialmente havia sido planejada a remoção total. "Em função da pressão dos moradores e do Comitê Popular, serão removidos de 15 a 20 domicílios em vez dos mais de 300 previstos no início", relata Rolnik.

Necessidades inventadas

As remoções ligadas aos jogos estão associadas às obras de infraestrutura urbana, cujos benefícios para a população são questionáveis. "Há obras que vão atender apenas às necessidades dos jogos. Outras também vão melhorar a mobilidade, mas entre todas as demandas de transporte coletivo, seriam essas as linhas prioritárias?", questiona Rolnik. Para Gaffney, as linhas BRT (Bus Rapid Transit), projetadas principalmente para facilitar o transporte durante os jogos, não são de primeira necessidade.

"Qualquer intervenção urbana que atenda às 'demandas' da Copa e das Olimpíadas é uma invenção", critica o geógrafo. "Cuiabá, por exemplo, sediará quatro jogos, e a cidade inteira está sendo reconstruída."

"Muitas vezes os projetos contrariam planos urbanísticos anteriores. É uma coisa inventada que se sobrepõe ao planejamento das cidades, porque em nome dos megaeventos vale tudo", completa Rolnik. A urbanista e Gaffney chamam a manobra de estratégia de marketing.

Gaffney reitera que qualquer grande obra urbana implica remoções, o problema é a maneira como elas são feitas. Na medida em que os eventos megaesportivos migram dos países desenvolvidos para os emergentes, maior é a quantidade de moradores de assentamentos informais atingidos. "A experiência dos Jogos Olímpicos de Pequim e da Copa do Mundo da África do Sul mostraram isso", diz Rolnik.

"Qualquer intervenção urbana que atenda às 'demandas' da Copa é uma invenção", critica GaffneyFoto: privat

Em 2010, a Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada apresentou um relatório sobre violações em megaeventos esportivos que resultou numa resolução do Conselho de Direitos Humanos exigindo o respeito a tal direito na preparação para os eventos.

Para Rolnik, com obras em andamento, ainda dá tempo de o Brasil mudar o padrão das remoções, adequando-se não somente às normas internacionais. "O país tem que respeitar a ordem jurídica nacional, que prevê a proteção à moradia e parece estar sendo rasgada neste momento."

Autora: Luisa Frey
Revisão: Francis França

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