Questão indígena
28 de novembro de 2006Quando vê as plantações de eucalipto da Aracruz, a tupiniquim Genira Pinto dos Santos, 68 anos, sente saudades de uma paisagem que sumiu da região em que fica a aldeia Pau Brasil, no norte do Espírito Santo.
"Isso aqui era tudo mata virgem. Tínhamos caça – veado, tatu, tamanduá, cotia, catitu – e muitos peixes. Plantávamos feijão, milho e mandioca. Daí vieram os tratores – não foi nem machado – que fizeram terra arrasada. Plantaram o eucalipto e os bichos fugiram. Nosso rio, que era largo, já secou três vezes", conta à DW-WORLD.
Mesmo assim, Genira não resignou: "Penso que um dia vamos ter nossa terra de volta", diz. "Nossa terra", no caso, são os 11 mil hectares que 2200 índios tupiniquim e guarani pedem de volta da Aracruz Celulose, uma das maiores produtoras de celulose do mundo.
Origem do conflito
Em 1967, um estudo da Fundação Nacional do Índio (Funai) reconheceu que os tupiniquim e guarani tinham direito a uma área de 18 mil hectares, tradicionalmente ocupada por eles no município de Aracruz (ES).
Mais de 30 anos depois, em 1998, os índios ganharam o direito de uso sobre 7 mil hectares. Os outros 11 mil hectares lhes foram negados pelo Ministério da Justiça, por estarem registrados como propriedade da Aracruz Celulose, empresa que possui 150 mil hectares de plantações de eucalipto na região.
Nos últimos anos, o conflito se acirrou. Para tentar forçar uma decisão que esperam do Ministério da Justiça desde maio de 2005, os índios chegaram a demarcar por conta própria a área reivindicada e construíram uma aldeia. Em janeiro deste ano, foram despejados por decisão judicial e ação da Polícia Federal. A clareira onde estava a aldeia hoje está tomada pelo capim.
Luta para corrigir um erro
O cacique tupiniquim Valdeir de Almeida Silva e outros 12 índios da aldeia Pau Brasil ainda têm manchas azuis no corpo, resultado da truculência da polícia, que usou balas de borracha e bombas de efeito moral no despejo.
"A empresa não quer dar o braço a torcer, porque daí também os quilombolas vão bater à sua porta. O que está em jogo é a madeira plantada na nossa terra, pela qual a empresa quer 300 milhões de dólares. Mas no passado, ela destruiu muito mais do que isso", diz o cacique.
Outdoors e cartilha
A situação continua tensa. A Funai apóia os índios. Já a Aracruz é a maior empregadora da região – é responsável por cerca de 10 mil empregos diretos e 80 mil indiretos e tem pelo menos 100 índios entre funcionários – e conta com o apoio da maioria da população local.
A empresa informou à DW-WORLD que já teve um prejuízo material da ordem de R$ 2,5 milhões por causa do confito: "Durante os meses de setembro e outubro, índios apoiados por manifestantes queimaram mais de 200 mil árvores em uma área de aproximadamente 170 hectares da Aracruz Celulose" (veja link abaixo).
Através de um estudo científico de 14 volumes, com cerca de 15 mil páginas de documentos, a multinacional rebate linha por linha um relatório da Funai de 1998, que confirmou o direito dos índios à terra. A Aracruz garante ter provas de que a área reivindicada jamais foi território indígena. Numa cartilha distribuída às escolas locais, informa que os índios não são mais índios, são "aculturados", teriam até ar-condicionado nas casas.
Algumas firmas que mantêm negócios com a produtora de celulose colocaram outdoors na beira de estradas com os dizeres: "A Aracruz trouxe o progresso. A Funai trouxe os índios". Contra os outodoors e a cartilha da Aracruz, a Funai move ação na Justiça, pedindo indenização por considerar a campanha discriminatória aos índios e à fundação.
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Repercussão na Alemanha
"Os índios não querem inviabilizar o negócio da Aracruz", diz o holandês Winie Overbeek, da ONG Fase, que é apoiada pela Brot für die Welt – entidade ligada à Igreja Luterana alemã, que no próximo fim de semana fará uma campanha de solidariedade aos tupiniquim e guarani em 200 comunidades do norte da Alemanha.
Como a Brot für die Welt, há outras ONGs alemãs que apóiam os índios. A Robin Wood já protestou diante da fábrica de lenços de papel da Protect & Gamble, em Neuss, na Renânia do Norte-Vestfália, que compra celulose da Aracruz. "Na Alemanha, poucos consumidores sabem que há índios perdendo suas terras para a produção de lenços de papel", diz Peter Gerhardt, da Robin Wood.
As organizações não-governamentais alemãs que acompanham o caso sugerem um boicote a produtos que contêm celulose importada da Aracruz. A Robin Wood, a Tropenholznetzwerk e a Sociedade para os Povos Ameaçados (GFBV) também fazem campanhas na internet, pedindo ao governo brasileiro a demarcação da terra indígena no Espírito Santo.
Caso exemplar e críticas a Lula
Segundo um relatório sobre direitos humanos divulgado pela GFBV, o caso dos tupiniquim e guarani é um exemplo de que "nem a garantia do direito à terra protege os índios contra o arbítrio. A situação dos povos indígenas não melhorou muito no primeiro governo de Lula. Pelo contrário, os conflitos de terras envolvendo índios aumentaram desde 2003", diz a entidade, que coopera com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) no Brasil.
Os tupiniquim e guarani não pretendem desistir. "A luta é para garantir a futura sobrevivência das famílias e a autonomia do nosso povo. Com os 11 mil hectares, vamos ter segurança alimentar no futuro", diz o cacique Wetá Kwatay, da aldeia Boa Esperança.
Segundo Kwatay, "antes da chegada do eucalipto não tínhamos o progresso da morte, que se destrói a si mesmo. O plantio de eucalipto no Espírito Santo acabou com a nossa base de subsistência".
Esta versão é compartilhada pelo caboclo Edson (Zé) Barbosa, 91 anos, na aldeia Comboios. Como dona Genira na aldeia Pau Brasil, também "seu" Zé Barbosa sente saudades da caça e pesca farta "do tempo em que vivíamos em casa de palha e quase sem roupa. Nos últimos 18 anos, a Aracruz destruiu a mata virgem e matou o rio Comboios".
Sua esposa, Nilsa, mãe de dez filhos, no entanto, diz não ter perdido a esperança. "Eles dizem que aqui não tem índio, que caboclo não é índio. Podem fazer o que quiserem, mas não ganham a terra que é dos índios", diz.
A mesma esperança é alimentada pelos jovens tupiniquim da aldeia Pau Brasil. DW-WORLD encontrou-os num mutirão comunitário, colocando sementes em saquinhos de plástico cheios de terra. "Estamos preparando mudas de árvores nativas, para plantar no lugar dos eucaliptos, quando nos devolverem a nossa terra", disse um deles.