Comunidade internacional prefere destacar estabilidade e crescimento de Ruanda e faz vista grossa para a repressão no país, cuja população anseia por mais participação e liberdade, afirma a jornalista Andrea Schmidt.
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A Constituição de Ruanda até prevê um sistema político multipartidário, mas também esta eleição no país foi livre só no nome. Além do presidente Paul Kagame, do partido governista Frente Patriótica Ruandesa (FPR), apenas dois outros candidatos foram aceitos: Frank Habineza (Partido Verde) e o independente Phillip Mpayimana. Mas a concorrência em condições desiguais já deixava claro que eles não eram de fato páreo para o ocupante do cargo. Todos os demais pretendentes foram eliminados antes mesmo da campanha, por questões burocráticas.
Kagame, o homem forte no poder, governa com pulso firme e não tolera opositores. É verdade que ele tem conquistas para mostrar: um crescimento econômico de 7%, um bom sistema de saúde, pouca corrupção e redução da pobreza. Só que, assim como em muitos outros países africanos, só uns poucos ganham com esse crescimento econômico. A fachada limpa e brilhante das ruas de Kigali faz com que políticos do exterior logo esqueçam que, no interior do país, os chamados agricultores de subsistência cultivam seus pequenos lotes com os recursos mais simples. Além disso, devem plantar o que lhes é determinado.
A repressão às liberdades de imprensa e de expressão é encarada com vista grossa e pouca pressão contrária. Desde o fim do genocídio, em 1994, a FPR está no poder e, desde 2000, Kagame é presidente. Se, no início, muitos ruandeses da diáspora voltaram para ajudar na reconstrução, hoje muitos preferem deixar o país. Afinal, quem gosta de viver num país onde, devido a um sofisticado sistema de espionagem, toda crítica é morta já na raiz?
Em muitas nações africanas governadas de forma autocrática, como o Burundi e Uganda, os donos do poder mandam alterar a Constituição a bel-prazer para poder ficar mais tempo no poder. A máxima deles é: "Só sozinho eu posso governar este país e garantir segurança e crescimento econômico". E foi assim que, em 2015, Kagame alterou a Constituição por meio de um referendo controlado pelo governo para acabar com o limite de dois mandatos.
Observadores internacionais costumam destacar que Ruanda é um dos países mais estáveis da África, dentro da lógica "melhor uma autocracia estável do que o caos". Isso pode até ser correto dentro de um certa ótica, mas é, também, um argumento fatal – como se não houvesse alternativas! Não há como justificar que a comunidade internacional renuncie a praticamente qualquer crítica. Problemas não faltam e devem ser chamados pelo nome: em Ruanda, a intimidação de críticos de Kagame faz parte da ordem do dia, políticos foram obrigados a fugir para o exterior, outros estão na cadeia por motivos tênues, alguns desapareceram sem deixar rastros.
Kagame vai começar agora seu terceiro mandato de sete anos. Seria desejável que, nesse longo período, as bases para um futuro livre fossem criadas, que finalmente uma sociedade civil livre pudesse se desenvolver, que democracia e liberdade de expressão verdadeiras fossem permitidas, que na eleição de 2024 houvesse muitos candidatos com reais chances. Se não, qual o sentido de uma eleição? Elas não devem continuar sendo usadas para maquiar uma democracia de fachada! Do contrário, esse país de população majoritariamente jovem, que aspira à participação política e livre expressão, vai acabar implodindo. Mas, para evitar que isso aconteça, também é necessário que haja pressão externa sobre o vencedor desta eleição, Kagame.
O genocídio de Ruanda
O genocídio de Ruanda, em 1994, chocou o mundo. Na época, a comunidade internacional assistiu de braços cruzados – sobretudo França e a ONU – ao assassinato de cerca de 800 mil pessoas.
Foto: Timothy Kisambira
Estopim do genocídio
No dia 6 de abril de 1994, o avião em que viajava o então presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, foi derrubado por um foguete quando se aproximava da capital Kigali. O atentado matou Habyarimana, o presidente do Burundi e outros oito ocupantes da aeronave. No dia seguinte, começam os massacres, que duraram três meses e custaram a vida de pelo menos 800 mil ruandeses.
Foto: AP
Vítimas escolhidas a dedo
Depois do assassinato do presidente, extremistas hutus começaram a atacar membros da minoria tutsi e hutus moderados. Os assassinos estavam bem preparados e escolhiam suas vítimas entre ativistas de direitos humanos, jornalistas e políticos. Entre as primeiras vítimas, no dia 7 de abril de 1994, estava a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana.
Foto: picture-alliance/dpa
Resgate de estrangeiros
Enquanto nos dias posteriores milhares de ruandeses eram mortos diariamente em Kigali e no interior, forças especiais belgas e francesas retiram do país cerca de 3.500 estrangeiros. Paraquedistas belgas resgataram em 13 de abril os sete funcionários alemães da Deutsche Welle em Kigali, juntamente com suas famílias. Apenas 80 dos 120 empregados locais da emissora sobreviveram ao genocídio.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Grito de socorro
Já no início de 1994, o comandante das tropas de paz da ONU, o canadense Roméo Dallaire, tinha indícios de um planejado extermínio da população tutsi. Sua mensagem à ONU, conhecida como o "fax do genocídio", enviada em 11 de janeiro, foi rejeitada. Os apelos posteriores do general durante o genocídio também foram ignorados pelo então chefe das operações de manutenção da paz, Kofi Annan.
Foto: A.Joe/AFP/GettyImages
Mídias do ódio
O filme "Hate Radio", do diretor suíço Milo Rau (foto), lembra a estação de rádio Mille Collines (RTLM) que, junto ao jornal semanal "Kangura" incitava o ódio contra os tutsis. Kangura, por exemplo, publicou já em 1990 os "Dez mandamentos hutus", com alto teor racista. A Mille Collines, popular pela música pop e pela cobertura esportiva, fazia chamadas diárias pela perseguição e morte de tutsis.
Foto: IIPM/Daniel Seiffert
Refúgio no hotel
Em Kigali, Paul Rusesabagina escondeu mais de mil pessoas no Hotel des Mille Collines. Depois que o gerente belga deixou o país, Rusesabagina o sucedeu no cargo. Com muito álcool e dinheiro, ele conseguiu impedir as milícias hutus de matar os refugiados. Em muitos outros refúgios, as vítimas não conseguiram escapar de seus assassinos.
Foto: Gianluigi Guercia/AFP/GettyImages
Massacres em igrejas
Mesmo igrejas, onde muitos buscaram refúgio, não foram respeitadas. Cerca de 4 mil homens, mulheres e crianças foram mortos na igreja de Ntarama, perto de Kigali, por assassinos portando machados e facões. Hoje, a igreja é um dos muitos memoriais do massacre. Crânios e ossos humanos, além de buracos de bala nas paredes, lembram até hoje o genocídio.
Foto: epd
O papel da França
Paris manteve laços estreitos com o regime hutu. Quando os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) já tinham ganhado terreno sobre os autores de genocídio, em junho, o Exército francês entrou em ação. Ele permitiu que soldados e milicianos responsáveis pelo genocídio fossem com armas para o Zaire, atual República Democrática do Congo.
Foto: P.Guyot/AFP/GettyImages
Fluxo de refugiados
Durante os massacres, milhões de ruandeses, tutsis e hutus, fugiram para os países vizinhos Tanzânia, Zaire e Uganda. Só no Zaire (hoje RDC), foram dois milhões de refugiados. Ex-membros do Exército e os autores de massacres fundaram as Forças Democráticas pela Libertação de Ruanda, que são até hoje um fator de insegurança no leste do Congo.
Foto: picture-alliance/dpa
Tomada de Kigali
Diante da Igreja da Sagrada Família, em Kigali, patrulham em 4 de julho de 1994 rebeldes da RPF. Nessa época, eles já haviam libertado a maioria das regiões do país e forçado os assassinos a baterem em retirada. Ativistas de direitos humanos se queixam, no entanto, que os rebeldes também cometeram crimes pelos quais ninguém foi responsabilizado até hoje.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Fim do genocídio
O general Paul Kagame, líder da RPF, declarou em 18 de julho de 1994 o fim da guerra contra as forças do governo. Os rebeldes assumiram o controle da capital e outras grandes cidades. A princípio, empossaram um governo provisório. Desde o ano 2000, Kagame é o presidente de Ruanda.
Foto: Alexander Joe/AFP/GettyImages
Cicatrizes permanentes
O genocídio durou quase três meses. A maioria das vítimas foi brutalmente assassinada com facões. Vizinhos mataram vizinhos. Cadáveres e partes de corpos de bebês, crianças, adultos e idosos se amontoavam ao longo das ruas. Poucas famílias foram poupadas. Não só as cicatrizes nos corpos dos sobreviventes mantêm viva a memória do genocídio.