Jornalista premiado da revista 'Der Spiegel' inventou fatos e declarações. Isso é um perigo não apenas para o jornalismo, mas para a democracia em tempos de ataque à imprensa, afirma a repórter Sandra Petersmann.
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Eu estou furiosa e decepcionada com a quebra de tabu de Claas Relotius. Eu amava suas reportagens investigativas feitas no exterior e me alegrei com os muitos prêmios jornalísticos que ele ganhou, por achar que ele os havia merecido honestamente.
Para mim, a reportagem investigativa no exterior é a categoria máxima do jornalismo. O que Relotius fez com a verdade, em suas reportagens falsificadas, é alta traição ao jornalismo. Uma traição como essa prejudica a democracia como um todo.
Num mundo onde predomina a desordem mundial e onde o desejo por respostas simplórias ganha força, nós, jornalistas, não devemos vender a nossa alma. Credibilidade é a alma do nosso negócio. Não há diálogo com o nosso público sem verdade, e democracias necessitam do diálogo para funcionar.
No nosso mundo desordenado, as reportagens de Claas Relotius eram como faróis na escuridão para mim. Elas davam voz a pessoas sem voz. Como colega e como leitora, elas me faziam observar atentamente a realidade e questionar estruturas de poder.
Com razão, Claas Relotius fez do detento de Guantánamo Mohammed Bwasir e dos órfãos Alin e Ahmed, da cidade síria de Aleppo, protagonistas de seus textos. Mas por que ele colocou palavras em suas bocas? Por que ele os empurrou para situações fictícias que nunca aconteceram? Por que, afinal, ele optou por contar histórias inventadas em vários casos? A verdade já é dramática o suficiente.
Quem quer ser jornalista na Alemanha tem de assumir o compromisso de trabalhar de forma ética. Nosso Código de Ética não deixa margem para dúvidas. "O respeito à verdade, a proteção da dignidade humana e a informação fidedigna da população são os mandamentos supremos da imprensa", consta ali, preto no branco. Claas Relotius se colocou acima de qualquer ética. Esse superambicioso pisoteou sobretudo a dignidade humana de seus protagonistas.
Mas também é verdade que o jornalismo digital de elevada produtividade e eficiência é um convite à fraude. O sistema é vulnerável. Poderia ter acontecido com a Deutsche Welle ou com qualquer outro veículo de comunicação. A luta global por exclusividade, agilidade e interpretação de fatos vicia. A Spiegel gostava de exibir as reportagens no exterior de seu repórter-estrela. O sucesso de Relotius era, também, o sucesso da Spiegel. Não é por acaso que o setor de fact checking [verificação de informações] da revista, sem par na Alemanha, tenha falhado justamente no caso Relotius.
A direção das empresas de jornalismo e os chefes de redação precisam relembrar constantemente a si mesmos que o bom jornalismo demanda tempo e espaço. Uma reportagem no exterior também é boa sem cores berrantes. O eterno superlativo destrói a veracidade.
E nós, jornalistas, precisamos entender que carregamos grandes responsabilidades. Somos a ponte do diálogo num mundo desordenado. Somos o corretivo do populismo. Se nós fracassamos, se nós mentimos, prejudicamos a sociedade. Para a democracia, muita coisa está em jogo.
Ao nosso público eu dirijo o apelo para que não condenem a todos nós pelos erros de um único colega. Claas Relotius é um caso isolado perigoso. Já houve falsários antes dele, que alimentaram a acusação da "imprensa da mentira". Mas não existe A imprensa da mentira. A maioria de nós faz um trabalho honesto, com convicção, para dar uma voz a crianças como Alin e Ahmed de Aleppo.
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A revista acompanha a República Federal da Alemanha desde a criação do país. Seu jornalismo investigativo, apontando para escândalos e maracutaias na política e na sociedade, conquistou respeito também fora da Alemanha.
Foto: picture alliance/dpa/D.Kalker
A primeira edição
Ao ser lançada, em 4 de janeiro de 1947, a revista "Der Spiegel" custava 1 Reichsmark. Na capa, o austríaco Friedrich Kleinwächter, que negociava em Washington a soberania política e econômica da Áustria no pós-Guerra.
Foto: Der Spiegel
O editor
O fundador e editor da revista "Der Spiegel", Rudolf Augstein, foi o jornalista mais influente da Alemanha: derrubou políticos e impulsionou a liberdade da imprensa como ninguém. Aos 23 anos, fundou o semanário "Der Spiegel", do qual foi redator-chefe durante décadas e editor até a morte. Impôs à publicação desde o início um rumo definido ("somos um órgão liberal de esquerda").
Foto: picture alliance/dpa/H.Pflaum
Lema: Não se intimidar
Em 1962, Augstein e sua publicação foram pivôs de uma grande crise na então ainda jovem República Federal da Alemanha. Depois de publicar um artigo crítico sobre a política de defesa do país e a Otan, ele sofreu pressão do então ministro alemão da Defesa, Franz-Josef Strauss. Mas a revista resistiu, e o ministro acabou caindo.
Foto: picture alliance/dpa/A.Warmuth
Sob pressão
O escândalo durou semanas. Vários jornalistas, inclusive Augstein, foram presos sob a acusação de traição à pátria. A Promotoria Pública ocupou as redações por várias semanas. Augstein ficaria na prisão por mais de cem dias. Ao fim, a democracia saiu fortalecida no Estado que se constituíra 13 anos antes. E a Alemanha ganhou um novo conceito de liberdade de imprensa.
Foto: picture-alliance/dpa
Nos tempos da RAF
Em 1977, a Alemanha enfrentou uma de suas piores crises. Membros da organização terrorista Fração do Exército Vermelho (RAF, da sigla em alemão) sequestraram o então presidente da Confederação das Associações de Empregadores da Alemanha, Hans-Martin Schleyer, que é morto após algumas semanas. A revista mancheteia: "Guerra de assassinos contra o Estado".
Foto: Der Spiegel
A aura do poder
Do ponto de vista político, Augstein tinha uma orientação social-democrata. Ele manteve uma estreita relação com o futuro chanceler federal Willy Brandt (à direita), que conhecera em 1948. Em trocas regulares de correspondência, eles manifestavam seus pontos de vista. Na foto, um encontro em 1972.
Foto: Imago
Modernidade em laranja
Não só de redações vive uma revista. Legendária é a cantina, concebida pelo arquiteto dinamarquês Verner Panton em 1969. Sob o ponto de vista estético, ela foi algo revolucionário, pois representou a chegada da modernidade. Hoje, 80 metros quadrados da cantina decorada com elementos em cor laranja fazem parte de um museu em Hamburgo.
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Crescimento
Com o passar do tempo, a "Der Spiegel" se tornou a principal e mais vendida revista na Alemanha. O êxito se reflete na nova sede da revista, que após 40 anos se mudou para um prédio novo (centro) no bairro HafenCity de Hamburgo. Hoje em dia, assim como outros veículos de comunicação impressos, a "Der Spiegel" luta contra a perda de leitores para a internet.
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Manchetes e ilustrações da capa
As fotos de capa e reportagens de capa do semanário costumam se destacar por beleza, ousadia ou provocação. Como nesta capa, durante a guerra em Kosovo: "Guerra contra os assassinatos".
Foto: Der Spiegel
A raiva dos outros
Os repórteres investigativos da revista estão entre os melhores. O legado de Augstein, editor até morrer, em 2002, é o jornalismo mordaz. Isso se reflete também nos xingamentos e críticas à revista, como espelha a capa da edição de aniversário, com frases dos últimos cinco chefes de governo alemães. Em destaque, "Dieses Scheissblatt" (Este jornal de merda), de Willy Brandt.