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Coronavírus não é licença para espionar os cidadãos

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Dunja Mijatovic
1 de maio de 2020

Medidas que violam a privacidade sem necessariamente proteger a saúde não são uma solução democrática para o combate à pandemia, opina comissária de Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic.

Foto: Getty Images/Q. Rooney

A covid-19 já causou mais de 200 mil mortes em todo o mundo, mais da metade na Europa. Portanto é fácil compreender por que os governos têm que tomar medidas extraordinárias. À medida que as restrições são gradualmente retiradas, é crucial que as mais rigorosas não permaneçam após o fim da emergência.

Isso se aplica à vigilância. Embora valha a pena explorar o potencial das ferramentas digitais para conter o alastramento dos contágios, elas também podem se voltar contra, nós ao se intrometer em nossas vidas privadas e restringir nossa capacidade de participar na sociedade. Esse risco já se manifestou em diversos países europeus.

Na Rússia, o Kremlin fez uso de câmeras de reconhecimento facial para impor as ordens de quarentena, sem garantias de que a tecnologia não será utilizada para outros fins. No Azerbaijão, os cidadãos têm que comunicar seus movimentos por SMS a um sistema eletrônico, potencialmente permitindo que a polícia os monitore. Em Montenegro, o governo publicou em seu website os nomes e endereços de todos que receberam ordens de se autoisolarem após retornar do exterior.

Na Polônia, um aplicativo mandatório, fornecido pelo governo, exige que indivíduos em quarentena tirem selfies com data e coordenadas de GPS várias vezes por dia; o não cumprimento pode resultar em intervenção policial e uma pesada multa. A Turquia igualmente anunciou um aplicativo obrigatório semelhante, a fim de seguir a paradeiro de quem tenha testado positivo do novo coronavírus.

No Reino Unido, o jornal The Guardian revelou que firmas de tecnologia processaram dados pessoais de pacientes sem transparência nem responsabilização.

Esses são os exemplos mais preocupantes de uma tendência generalizada de vigilância na Europa, suscitando dúvidas quanto a sua compatibilidade com os padrões de direitos humanos que norteiam a proteção de dados.

A Corte Europeia de Direitos Humanos reconheceu que pode haver restrições e ser necessário o uso de dados pessoais, em certas situações de emergência. No entanto, também frisou que os Estados só podem proceder assim sob condições excepcionais e precisas, oferecendo, paralelamente, as salvaguardas legais cabíveis e supervisão independente.

Eles devem, ainda, assegurar que as medidas se baseiem na jurisprudência, permaneçam compatíveis com a meta desejada, sejam o menos intrusivas possível e suspensas assim que deixe de existir a razão por que foram adotadas.

Se os governos não respeitarem estes parâmetros legais, correm risco de pôr em perigo nossos direitos, sem necessariamente proteger nossa saúde. Também arriscam perder apoio popular – um fator indispensável nas iniciativas de saúde pública.

Por isso é animador a Comissão de Ministros do Conselho da Europa, em que estão representados todos os Estados-membros, ter declarado explicitamente, em 22 de abril, que os países devem combater a doença e suas consequências mais amplas de acordo com os princípios da organização e com os compromissos que adotaram.

De fato: a democracia não precisa sacrificar a privacidade para proteger a saúde. Os governos têm que encontrar o equilíbrio certo entre esses dois imperativos. Para tal, devem tomar uma série de passos.

Primeiro, os dispositivos digitais devem ser projetados de acordo com as leis de privacidade e não discriminação. Devem ser anônimos, criptografados, descentralizados, funcionar em código aberto e estar disponíveis para o maior número possível de cidadãos, transpondo assim a brecha digital.

Seu uso deve ser voluntário, baseado em consentimento informado, restrito aos propósitos de proteção da saúde, conter um limite temporal claro e ser inteiramente transparente. Os usuários devem poder se retirar a qualquer momento, eliminando todos os seus dados, e estar aptos a rechaçar as intrusões em sua esfera privada através de medidas eficazes.

Em segundo lugar, as leis devem estar estritamente alinhadas ao direito de privacidade, como o protegem as leis das Constituições nacionais e da Corte Europeia de Direitos Humanos.

Terceiro, as operações governamentais devem estar sujeitas a sindicância jurídica, assim como a monitoração pelo Parlamento e instituições de direitos humanos nacionais, a fim de garantir a responsabilização. Autoridades independentes de proteção de dados precisam testar e aprovar os dispositivos tecnológicos utilizados.

Crises de saúde pública são ameaças reais, exigindo resposta eficaz, mas o imperativo da saúde não deve se tornar carta branca para bisbilhotar a vida alheia. Medidas de vigilância que passem por cima dos direitos humanos e do Estado de direito não são uma solução democrática.

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