Responsabilidade dos EUA por uma das fases mais negras da América Latina não desaparece com os gestos de Obama em Cuba e na Argentina, opina a chefe da redação online em língua espanhola, Claudia Herrera Pahl.
Anúncio
Foi uma viagem curta e espetacular que merece o adjetivo "histórica". Dois dias e meio em Havana e mais dois em Buenos Aires ficarão marcados nas relações dos Estados Unidos com Cuba e Argentina e na biografia de um presidente fascinante.
Às duas nações ele estendeu uma ponte de amizade e, em suas próprias palavras, enterrou os últimos vestígios da Guerra Fria e começou uma nova era de compreensão mútua. Seu desejo de promover a estabilidade, a democracia e a prosperidade parece sincero. No caso de Cuba, as 90 milhas que separam os Estados Unidos da ilha caribenha parecem ter se encurtado por estes dias. Ao falar de forma aberta e direta sobre as políticas fracassadas das últimas décadas, aludindo claramente à responsabilidade dos EUA, deixou, depois de sua passagem, a sensação de que "sim, é possível" a mudança. E também no caso da Argentina, onde falou sobre a responsabilidade de seu país em enfrentar o passado com transparência, citando o papel dos EUA no golpe militar da Argentina, parece cimentada a amizade.
Talvez a única crítica que se possa fazer ao presidente Barack Obama é que suas viagens a Cuba e à Argentina tenham acontecido apenas agora, poucos meses antes de ele deixar a Casa Branca. Tendo em vista as enormes tarefas históricas pendentes entre os EUA e os países da América Latina, o convite franco para fortalecer e renovar os laços, que ele fez a cubanos e argentinos, teria um futuro mais certo e frutífero se tivesse sido feito antes.
Assim, ele deixa nas mãos de seu sucessor, como tarefa pendente, o convite a promover esse futuro. A questão é se Hillary Clinton ou, na sua falta, Donald Trump, retomarão esse chamada para promover em conjunto um caminho mais justo e democrático na região. O carisma de Obama, o comportamento elegante e o discurso inteligente desse orador brilhante não fazem esquecer que ele representa uma nação que tem seus próprios interesses.
A responsabilidade dos Estados Unidos por uma das fases mais negras da história latino-americana não desapareceu. Obama confirmou, na Argentina, pela primeira vez, a desclassificação de documentos militares e de inteligência dos EUA sobre a ditadura. Disse que os Estados Unidos refletem sobre o que aconteceu e estão consciente das controvérsias que persistem sobre a política externa de Washington na década de 70 na América Latina.
Mas não se trata de "controvérsias". A lista de legados americanos nos regimes militares latino-americanos é longa. À Argentina pode-se acrescentar Chile, Panamá, Nicarágua e El Salvador para ficar apenas com as ditaduras mais sangrentas. Seu papel em obstaculizar o desenvolvimento democrático no continente, sob o pretexto de "combater o comunismo", levou os Estados Unidos a impulsionar regimes totalitários, eliminando os recursos intelectuais e atrasando por décadas o desenvolvimento democrático de todo um continente.
Obama está confiante de que, se os povos trabalham juntos – neste caso os Estados Unidos e Cuba ou os Estados Unidos e a Argentina – podem iniciar juntos o caminho para o progresso. "Temos a responsabilidade de analisar o passado e sermos responsáveis perante o futuro, e é isso o que vamos fazer." Desclassificar documentos é certamente uma contribuição para os direitos humanos ea democracia e um avanço para todo o continente.
Parece uma obviedade que, além de culturas e paixões, as pessoas têm esperanças comuns. Mas, ouvida da boca do presidente Obama, a frase assume um poder mágico e é um convite ao sonho. O que resta, agora, é não deixar que o sonho acabe com a sua presidência e lembrar os Estados Unidos de que, para dançar tango, sempre são necessários dois.
EUA e Cuba: crônica da rivalidade
Desde a Revolução Cubana, em 1959, Cuba e os Estados Unidos estão em disputa, que já envolveu mercenários, bloqueios navais, sanções econômicas, criminosos e carros de boi.
Foto: picture-alliance/dpa
Bordel dos EUA
Antes da revolução, Cuba era, para muitos americanos, sinônimo de jogos de azar, casas noturnas e outros tipos de entretenimento – como um jantar no Havana Yacht Club (foto). "Cuba era o bordel dos EUA", definiu mais tarde o cientista político americano Karl E. Meyer. Para a população, a ditadura de Fulgencio Batista, no entanto, significava principalmente estagnação, desemprego e pobreza.
Para derrubar o regime já falido, Fidel Castro precisa de apenas um exército de guerrilha de algumas centenas de homens. Em 1° de janeiro de 1959, Batista foge de Cuba, e os rebeldes tomam Havana. Os EUA impõem sanções imediatamente, que vão sendo intensificadas nos anos seguintes. A liderança cubana, então, recorre à União Soviética.
Foto: picture-alliance/dpa
Fiasco na Baía dos Porcos
Uma tropa mercenária de cubanos exilados tentou derrubar o regime em 1961, com ajuda da CIA. A operação foi um fiasco. O Exército Revolucionário Cubano acaba com a invasão na Baía dos Porcos dentro de três dias, afirmando ter feito mais de mil prisioneiros.
Foto: AFP/Getty Images/M. Vinas
À beira de uma guerra nuclear
Devido ao relacionamento abalado entre EUA e Cuba, a União Soviética, passa, de repente, a dispor de uma base localizada a apenas cerca de 150 quilômetros dos Estados Unidos. O Kremlin quer estacionar mísseis na ilha. E, em 1962, a crise cubana deixa o mundo à beira de uma guerra nuclear. Com um bloqueio naval, os Estados Unidos impedem o transporte dos mísseis.
Foto: picture-alliance/dpa
Saúde e educação exemplares
A União Soviética não poupa esforços. Por décadas, Cuba é fortemente subsidiada, recebendo, entre outras coisas, petróleo bruto, que é reexportado pela ilha para obtenção de divisas. Cuba consegue, assim, construir sistemas de saúde e de educação exemplares.
Foto: picture-alliance/dpa
O êxodo dos marielitos
Em 1980, Fidel Castro permite que emigrantes deixem o país a partir do Porto de Mariel, com destino aos Estados Unidos. Cerca de 125 mil cubanos chegam à Flórida. Entre eles, estão alguns que haviam sido libertados pela administração cubana de prisões e hospitais psiquiátricos. A taxa de criminalidade em Miami aumenta drasticamente.
Foto: picture-alliance/Zuma Press/T. Chapman
Dependência açucarada
Por décadas, o embargo dos EUA limita a economia cubana de forma maciça. Além disso, não ocorre diversificação alguma. A cana-de-açúcar permanece sendo, mesmo após a revolução, o principal produto de exportação da ilha. Cuba continua totalmente dependente da assistência da União Soviética, algo que fica bastante claro a partir de 1990.
Foto: AFP/Getty Images/N. Barroso
"Período especial em tempo de paz"
Com o colapso da União Soviética, vem a quebra da economia cubana. Tudo passa a faltar. Fidel Castro declara a época de choque da economia cubana, a partir de 1990, como o "Período Especial em Tempos de Paz". Na ausência de combustível e peças de reposição, bois passam a ser usados como meio de transporte. Desde o final da década de 1990, a Venezuela fornece petróleo a preço baixo ao país.
Foto: AFP/Getty Images/A. Roque
O vai e vem das sanções
Desde 1993, a Assembleia Geral das Nações Unidas apela todos os anos para que os EUA acabem com sua política de embargo. Os EUA apertam e desapertam os parafusos das retaliações de tempos em tempos. Assim, as regulamentações do bloqueio ficam mais rigorosas em 1996 e mais relaxadas em 1999. Em 2004, o presidente George W. Bush endurece as sanções.
Foto: Getty Images/J. Raedle
Um novo capítulo se inicia
Após a libertação do prisioneiro americano Alan Gross e de três agentes cubanos presos nos EUA desde 1998, Raúl Castro e Barack Obama surpreendem o mundo ao anunciar, no dia 17 de dezembro de 2014, que normalizarão as relações diplomáticas entre os dois países e reabrirão suas embaixadas. Obama amplia as exceções ao embargo econômico e comercial sobre a ilha.
Pouco mais de seis meses após o anúncio da retomada das relações diplomáticas, Obama anuncia em 1º de julho de 2015 a reabertura das embaixadas dos EUA e de Cuba em Havana e Washington dentro de alguns dias. Desde dezembro de 2014, passos tomados para a reaproximação incluem a retirada de Cuba da lista de países que financiam o terrorismo e a libertação de presos políticos pelo governo cubano.