O pogrom contra os judeus da Alemanha nazista completa 80 anos. Sabendo que o episódio teve muitos espectadores passivos, o jornalista Felix Steiner se questiona, como muitos alemães: como minha família reagiu na época?
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Meu pai era uma enciclopédia ambulante da história local e sabia tornar emocionantes as suas histórias. O que eu sei sobre a minha terra natal e as minhas origens aprendi com ele.
Ele também me contou várias vezes como vivenciou os pogroms, em nível nacional, de novembro de 1938. Na cidadezinha do sudoeste alemão em que eu cresci, a violência contra os judeus não começou na noite de 9 de novembro, mas no início da tarde do dia seguinte.
Na época, meu pai frequentava o primeiro ano primário, e no fim da aula o professor aconselhou as crianças a evitarem a sinagoga e as casas dos judeus, no caminho de casa. Melhor dar a volta nesses lugares, pois poderia ficar perigoso.
Naturalmente, como seria de se esperar de meninos de 6 ou 7 anos, meu pai e os amigos tomaram o aviso protetor como um convite para conferir o que poderia haver de tão perigoso, no meio do dia, num lugarzinho provinciano.
Eles se depararam com uma sinagoga em chamas, que o corpo de bombeiros não foi apagar, vitrines destroçadas e as lojas devastadas dos comerciantes judeus. E testemunharam como toda a mobília de uma família judaica foi jogada na rua, pela janela do primeiro andar.
O que aconteceu na cidadezinha com menos de 30 habitantes judeus está hoje perfeitamente documentado e registrado em livros. Mas o que eu gostaria de perguntar mais uma vez ao meu pai é como os meus avós reagiram ao relato do filho mais velho sobre o que acontecera ali, em plena luz do dia.
Será que tentaram explicar aquilo que, do ponto de vista atual, é inexplicável? Como comentaram o fato de que, a menos de 300 metros da nossa casa, mulheres e crianças tiveram a porta de entrada posta abaixo e todo o mobiliário feito em pedaços? Os homens judeus, por sua vez, já haviam sido presos na madrugada do 10 de novembro e enviados num trem para o campo de concentração de Dachau.
Sendo honesto comigo mesmo, eu nem quero saber de nada disso. Nem preciso perguntar, porque, em princípio, já sei as respostas. Não, meus avós não eram nazistas convictos, disso eu tenho certeza. Mas eles olharam para o outro lado e se calaram, assim como milhões de outros alemães. É raro pais de quatro crianças pequenas se tornarem mártires.
E da existência do campo de Dachau e do que acontecia lá, eles sabiam desde que, em 1933, o prefeito e vários conselheiros municipais social-democratas foram presos, ao longo de semanas. Além disso, tratava-se de judeus: o que nós, católicos, tínhamos a ver com eles? Arriscar-nos por causa deles?
A exclusão e privação dos judeus de seus direitos não começou só em novembro de 1938. Já algumas semanas antes da tomada de poder por Adolf Hitler, pichava-se "Não comprem dos judeus" nas vitrines dos negociantes semitas; funcionários judeus foram demitidos; médicos, advogados e jornalistas foram proibidos de trabalhar. Além disso, vieram as leis raciais de Nurembergue, desapropriação e muitas outras coisas.
O 9 e 10 de novembro de 1938 foi a transição para o terror declarado, diante dos olhos de todo o povo. E também a minha família assistiu calada. Isso me aflige e envergonha. Mesmo 80 anos depois.
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Os Pogroms de Novembro, conhecidos como "Noite dos Cristais"
Em 9 e 10 de novembro de 1938, o Terceiro Reich lançou um pogrom antijudaico de características medievais. A "Noite dos Cristais" entrou para a história como um exemplo da barbárie nazista.
Foto: gemeinfrei
O que ocorreu entre 9 e 10 de novembro de 1938?
Ataques antissemitas, liderados por paramilitares da SA, foram lançados por toda a Alemanha nazista. Sinagogas como esta, na cidade de Chemnitz, no leste do país, e outros estabelecimentos de propriedade de judeus foram destruídos. Judeus foram sujeitados à humilhação pública e presos. Pelo menos 91 deles – mas provavelmente muitos mais – foram mortos.
Foto: picture alliance
Por trás do nome
A violência contra os judeus alemães observada nas ruas de todo o país é conhecida por uma série de nomes. Em Berlim, costuma-se referir-se a ela como "Kristallnacht", ou, em português, "Noite dos Cristais". Atualmente, porém, é mais comum entre os alemães falar na "Noite do Pogrom" ou nos "Pogroms de Novembro".
Foto: Getty Images
O que desencadeou o pogrom?
O estopim do episódio foi o assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por um adolescente judeu polonês chamado Herschel Grynszpan. Não se sabe ao certo se ele sobreviveu ao regime nazista ou se morreu em algum campo de concentração.
Foto: picture-alliance/Imagno/Schostal Archiv
Como a violência realmente começou?
Após a morte de von Rath, Adolf Hitler deu uma permissão verbal ao Ministro da Propaganda, Josef Goebbels, para lançar o pogrom. A violência já havia eclodido em alguns lugares. Os paramilitares da SS foram instruídos a permitir "apenas medidas que não impliquem nenhum perigo para vidas e propriedades alemãs".
Foto: dpa/everettcollection
A violência foi uma expressão de raiva popular?
Não. Essa foi a versão oficial do partido nazista, mas ninguém acreditou nela. Referências constantes a "operações" e "medidas" indicam claramente que a violência foi um ato de Estado. Não está claro o que a população alemã achou do episódio. Há evidências de desaprovação popular – embora o fato de o casal à esquerda da foto estar rindo também dizer muito.
Foto: Bundesarchiv, Bild 146-1970-083-42/CC-BY-SA
O que os nazistas esperavam obter com a violência?
Conforme a ideologia racista do partido, os nazistas queriam intimidar os judeus para que estes deixassem a Alemanha. Com esse intuito, judeus eram frequentemente exibidos de forma humilhante pelas ruas, como nesta imagem. Seus algozes também tinham motivações econômicas: judeus fugindo do Terceiro Reich tinham que pagar "taxas de emigração", e suas propriedades eram confiscadas com frequência.
Foto: gemeinfrei
O pogrom alcançou o seu propósito?
Após o episódio, os judeus não podiam mais nutrir qualquer ilusão sobre as intenções dos nazistas, e aqueles que tiveram a chance, fugiram. Mas a agressão aberta caiu mal na imprensa internacional e contrariou muitos alemães que defendiam a ordem. Foi assim que surgiram medidas mais burocráticas, como a exigência de que os judeus usassem estrelas de David amarelas visíveis em suas roupas.
Foto: gemeinfrei
Qual foi o resultado imediato?
Depois do pogrom, a liderança nazista instituiu uma série de medidas antijudaicas, inclusive – não sem um certo cinismo – uma taxa para ajudar a pagar pelos danos de 9 a 10 de novembro de 1939. Hermann Göring, o segundo homem mais poderoso do Terceiro Reich na época, notoriamente observou: "Eu não gostaria de ser judeu na Alemanha".
Foto: AP
O que os Pogroms de Novembro representaram para a história?
Em 1938, ainda faltavam dois anos para o início do Holocausto. Mas há uma clara linha de continuidade desde o pogrom até o assassinato em massa de judeus europeus, na qual a liderança nazista continuaria a desenvolver e aprimorar seu ódio antissemita. Nas palavras de um historiador contemporâneo, o pogrom foi um "prelúdio do genocídio".