Presidente não está disposto a pagar o preço político de financiar um novo programa social: para ele, só a reeleição conta. E o ministro da Economia, cada vez mais incômodo, tem os dias contados, opina Alexander Busch.
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Não foi um discurso improvisado ou um comentário à queima-roupa: não, na declaração cuidadosamente gravada em vídeo, divulgada nesta terça-feira (15/09), o presidente Jair Bolsonaro pretendeu deixar bem claro o que quer: ele ameaça com o cartão vermelho qualquer um em seu governo que sequer mencione o planejado programa para unificação dos benefícios sociais: "Até 2022, no meu governo, está proibida a palavra Renda Brasil. Vamos continuar com o Bolsa Família. E ponto final."
À primeira vista, essa desajeitada ação parece surpreendente: pois foi justamente com os benefícios socias durante a pandemia, desde março, que o presidente conseguiu ganhar popularidade tanto entre a maioria pobre da população quanto no Nordeste.
No momento, a aprovação de Bolsonaro é a mais alta de seus 19 meses de mandato. O Renda Brasil deveria substituir o Bolsa Família, dando assistência aos pobres a partir do início de 2021, quando terminam as ajudas sociais para enfrentar a pandemia de covid-19.
Mas isso agora é coisa do passado. Em vez disso, o Bolsa Família será ampliado para atender a 15 milhões de famílias no próximo ano. O Renda Brasil se dirigiria a cerca de 21 milhões de famílias.
A súbita mudança de curso se explica pelas dificuldades políticas que o financiamento do programa acarretaria. Os gastos orçamentários são limitados pelo chamado teto de gastos, e se o presidente quiser dedicar mais verbas aos pobres, terá que cortar em outra parte.
Então o ministro da Economia, Paulo Guedes, deu a gloriosa sugestão de que as aposentadorias e o salário mínimo não sejam reajustados à inflação. Assim se economizariam os 20 bilhões de reais necessários ao Renda Brasil. Mas Bolsonaro explicou que não vai "tirar dos pobres para dar aos paupérrimos".
Nisso ele tem razão: 50 milhões de brasileiros seriam atingidos pelas medidas de contenção. E, com sua reforma da Previdência, ele já perdeu as simpatias dos aposentados. Com tais transferências de verbas, a popularidade dele entre os pobres teria sofrido duramente.
Ao mesmo tempo, o chefe de Estado brasileiro não se arrisca a impor cortes aos privilegiados do país. Ele simplesmente não quer pagar o preço político das reformas. E se decidiu... a não decidir nada. Ele espera que baste fazer de conta que não vê a crise, até o dia das eleições.
E Paulo Guedes? Atualmente, só está atrapalhando a campanha de reeleição permanente do presidente. Ele não se cansa de intervir com sugestões socialmente insensíveis, briga o tempo todo com o Congresso e não propõe pacotes de reformas convincentes.
O "superministro", o "Posto Ipiranga" se transformou em mero assessor, um prestador de serviços cuja tarefa é fazer o que o presidente manda, nada mais. O cartão vermelho a que Bolsonaro aludiu no vídeo era para Guedes.
Mais uma vez, contudo, o ministro da Economia não entendeu os sinais dos tempos.
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Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. O texto reflete a opinião pessoal do autor, e não necessariamente da DW.
Vírus verbal: frases de Bolsonaro sobre a pandemia
"E daí?", "gripezinha", "não sou coveiro", "país de maricas": desde que o coronavírus chegou ao Brasil, presidente tratou publicamente com desdenho a crise. Enquanto a epidemia avança, suas falas causam ultraje.
Foto: Andre Borges/dpa/picture-alliance
"Superdimensionado"
Em 9 de março, em evento durante visita aos EUA, Bolsonaro disse que o "poder destruidor" do coronavírus estava sendo "superdimensionado". Até então, a epidemia havia matado mais de 3 mil pessoas no mundo. Após o retorno ao Brasil, mais de 20 membros de sua comitiva testaram positivo para covid-19.
Foto: Reuters/T. Brenner
"Europa vai ser mais atingida que nós"
A declaração foi dada em 15 de março. Precisamente, ele afirmou: "A população da Europa é mais velha do que a nossa. Então mais gente vai ser atingida pelo vírus do que nós." Segundo a OMS, grupos de risco, como idosos, têm a mesma chance de contrair a doença que jovens. A diferença está na gravidade dos sintomas. O Brasil é hoje o segundo país mais atingido pela pandemia.
Foto: picture-alliance/ZUMA Wire/GDA/O Globo
"Gripezinha" e "histórico de atleta"
Ao menos duas vezes, Bolsonaro se referiu à covid-19 como "gripezinha". Na primeira, em 24 de março, em pronunciamento em rede nacional, ele afirmou, que, por ter "histórico de atleta", "nada sentiria" se contraísse o novo coronavírus ou teria no máximo uma “gripezinha ou resfriadinho”. Dias depois, disse: "Para 90% da população, é gripezinha ou nada."
Foto: Youtube/TV BrasilGov
"Todos nós vamos morrer um dia"
Após visitar o comércio em Brasília, contrariando recomendações deu seu próprio Ministério da Saúde e da OMS, Bolsonaro disse, em 29 de março, que era necessário enfrentar o vírus "como homem". "O emprego é essencial, essa é a realidade. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós vamos morrer um dia."
Foto: Reuters/A. Machado
"A hidroxicloroquina tá dando certo"
Repetidamente, Bolsonaro defendeu a cloroquina para o tratamento de covid-19. Em 26 de março, quando disse que o medicamento para malária "está dando certo", já não havia qualquer embasamento científico para defender a substância. Em junho, a OMS interrompeu testes com a hidroxicloroquina, após evidências apontarem que o fármaco não reduz a mortalidade em pacientes internados com a doença.
Foto: picture-alliance/NurPhoto/F. Taxeira
"Vírus está indo embora"
Em 10 de abril, o Brasil ultrapassou a marca de mil mortos por coronavírus. No mundo, já eram 100 mil óbitos. Dois dias depois, Bolsonaro afirmou que "parece que está começando a ir embora essa questão do vírus". O Brasil se tornaria, meses depois, um epicentro global da pandemia, com dezenas de milhares de mortos.
Foto: Reuters/A. Machado
"Eu não sou coveiro"
Assim o presidente reagiu, em frente ao Planalto, quando um jornalista formulava uma pergunta sobre os números da covid-19 no Brasil, que já registrava mais de 2 mil mortes e 40 mil casos. “Ô, ô, ô, cara. Quem fala de... eu não sou coveiro, tá?”, afirmou Bolsonaro em 20 de abril.
Foto: picture-alliance/AP Images/A. Borges
"E daí?"
Foi uma das declarações do presidente que mais causaram ultraje. Com mais de 5 mil mortes, o Brasil havia acabado de passar a China em número de óbitos. Era 28 de abril, e o presidente estava sendo novamente indagado sobre os números do vírus. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre...”
Foto: Getty Images/A. Anholete
"Vou fazer um churrasco"
Em 7 de maio, o Brasil já contava mais de 140 mil infectados e 9 mil mortes. Metrópoles como Rio e São Paulo estavam em quarentena. O presidente, então, anunciou que faria uma festinha. "Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma peladinha...". Dias depois, voltou atrás, dizendo que a notícia era "fake".
Foto: Reuters/A. Machado
"Tem medo do quê? Enfrenta!"
Em julho, o presidente anunciou que estava com covid-19. Disse que estava "curado" 19 dias depois. Fora do isolamento, passou a viajar. Ao longo da pandemia, ele já havia visitado o comércio e participado de atos pró-governo. Em Bagé (RS), em 31 de julho, sugeriu que a disseminação do vírus é inevitável. "Infelizmente, acho que quase todos vocês vão pegar um dia. Tem medo do quê? Enfrenta!”
Foto: Reuters/A. Machado
"País de maricas"
Em 10 de novembro, ao celebrar como vitória política a suspensão dos estudos, pelo Instituto Butantan, da vacina do laboratório chinês Sinovac após a morte de um voluntário da vacina, Bolsonaro afirmou que o Brasil deveria "deixar de ser um país de maricas" por causa da pandemia. "Mais uma que Bolsonaro ganha", comentou.
Foto: Andre Borges/NurPhoto/picture alliance
"Chega de frescura, de mimimi"
Em 4 de março de 2021, após o país registrar um novo recorde na contagem diária de mortes diárias por covid-19, Bolsonaro afirmou que era preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia, e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.