Críticos denunciaram a retirada dos EUA do norte da Síria como um agrado para a Rússia. Mas, ao examinarmos os aliados de Moscou na região, este poderá ser um mimo repleto de complicações, avalia Konstantin Eggert.
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As tropas russas na Síria se instalaram nesta terça-feira (15/10) em uma base em Manbij que fora abandonada pelas tropas americanas por ordem do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Brett McGurk, ex-enviado especial dos EUA na coalizão internacional que combateu o grupo extremista "Estado Islâmico" (EI), afirmou através do Twitter que a decisão americana de retirar suas tropas no norte da Síria foi um "presente para a Rússia, o Irã e o EI".
De certa forma, McGurk – que renunciou ao cargo em meio a desavenças com a Casa Branca – está certo, ao menos no que diz respeito ao Kremlin. Quando o presidente russo Vladimir Putin iniciou a intervenção na Síria em 2015, apoiar o regime do presidente Bashar al-Assad não era seu único plano.
O objetivo principal do líder russo era provar que é capaz de impedir o que vê como uma política global dos EUA de mudarem os regimes dos quais não gostam. Tudo mais – assegurar a presença militar russa no leste do Mediterrâneo, testar novos sistemas de armas, provar aos aliados que eles podem confiar no Kremlin – era secundário.
Na Síria, Putin não estava tanto em confronto contra os inimigos de Assad quanto estava com Washington. A relativa relutância do ex-presidente americano Barack Obama em se envolver diretamente no conflito contribuiu para que o líder russo pudesse se estabelecer com custos mínimos como um mediador dos poderes no Oriente Médio.
Ele "reinseriu" a Rússia na região depois de mais de duas décadas de uma ausência relativa e se contrapôs a Washington em outras questões, fossem estas a Ucrânia, armas nucleares ou a expansão da Otan. Então, pode se dizer que, por um lado, a retirada americana da Síria é uma vitória para Putin.
Por outro lado, a presença americana possibilitava ao Kremlin um parceiro externo com quem podia dialogar em uma região onde todos estão contra todos. Agora, não mais.
O regime iraniano – oficialmente o mais próximo aliado russo na Síria – tem profundas suspeitas em relação ao governo de Moscou. Teerã não vê com bons olhos o relacionamento estreito entre Putin e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, um dos poucos líderes ocidentais com quem o russo conversa regularmente.
Os iranianos desconfiam – corretamente, a meu ver – que se os israelenses decidirem enfrentá-los militarmente, o Kremlin não iria interceder. Eles também não gostam do fato de que com Putin na Síria, Assad pode manter uma certa distância de Teerã, se assim desejar.
Os israelenses, por sua vez, se preocupam com as relações próximas entre russos e iranianos, que incluem um acordo de armamentos, uma atitude positiva quanto ao programa nuclear iraniano e o fato de Moscou defender o Irã em fóruns internacionais como a ONU.
A opinião púbica israelense, por ampla maioria, considera Putin um dos maiores facilitadores internacionais do Irã. Israel também possui enorme influência política e diplomática em Washington, algo que Moscou jamais conseguirá igualar.
Os sauditas, que recentemente receberam Putin em Riad, acreditam que o contato regular recentemente estabelecido com o Kremlin poderá ser útil para diminuir sua dependência de Washington. Por enquanto, a Arábia Saudita ainda depende dos EUA para sua defesa e considera o Irã, aliado da Rússia, um inimigo mortal.
Em parte, a recepção do príncipe Mohammad bin Salman a Putin é uma forma de tentar enfraquecer os laços entre Moscou e Teerã. O presidente russo gosta dessa abordagem. Isso aumenta seu prestígio. Ele também está interessado em manter relações com Riad em razão da influência saudita sobre a Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep). Ele, porém, abomina a ideia de ter de escolher entre os sauditas e os iranianos, no caso de um confronto entre ambos.
O presidente turco Recep Tayyip Erdogan ainda é o aliado mais confiável da Rússia na região. Putin gosta do fato de que, sob sua liderança, a Turquia se tornou o que muitos avaliam como o elo fraco da Otan. Na forma de pensar do Kremlin, pouco importa mais do que enfraquecer a aliança.
Em julho, Erdogan manteve sua decisão de comprar sistemas de mísseis S-400 da Rússia apesar das objeções dos EUA. Ele, sem dúvida, aprecia o consentimento silencioso de Putin sobre sua ofensiva contra os curdos na Síria. Mas será que Moscou o defenderia caso os americanos – especialmente o Congresso – decidam exercer pressão real sobre a Turquia? Duvido.
Finalmente, os cidadãos russos estão cada vez mais cansados das aventuras de Putin na política externa. Enquanto os rendimentos reais disponíveis dos russos caem pelo quinto ano consecutivo, 55% deles querem que as operações militares do país na Síria terminem o mais cedo possível, segundo o Levada-Center, um instituto independente de pesquisa.
Putin está atento ás mudanças de humor na população. Ele se prepara para uma transição política incerta ao final de seu quarto mandato em 2024, ou ainda mais cedo.
Em tais circunstâncias, declarar vitória na Síria e deixar o país poderia ser uma ideia melhor do que equilibrar as várias "alianças de conveniência", todas elas repletas de riscos. Mas poderia Assad sobreviver sem o apoio russo? O que aconteceria com as bases navais russas se a região entrar em guerra?
Ao se envolver de modo bastante fácil no Oriente Médio há quatro anos, Putin poderá perceber que é muito mais complicado se retirar e manter intactos os seus ganhos. O "presente" de Trump poderá se revelar algo bastante intrincado.
O que se iniciou com protestos pacíficos em 2011 virou uma guerra civil brutal que já matou centenas de milhares de pessoas e fez milhões de refugiados. Reveja os principais acontecimentos.
Foto: Reuters/Stringer
2011: O início
Em 15 de março de 2011, protestos pacíficos contra a detenção de jovens acusados de fazer pichações antigoverno em sua escola, na cidade de Daraa, são reprimidos por forças de segurança, que abrem fogo contra manifestantes desarmados, matando quatro. Os protestos continuam por vários dias, fazendo 60 mortos e se espalham por todo o país. Segue-se um período de repressão violenta.
Foto: Anwar Amro/AFP/Getty Images
2011/2012: Isolamento internacional
O ex-presidente Barack Obama insta o presidente Bashar al-Assad a renunciar, e os EUA anunciam sanções a Assad em maio e congelam bens do governo sírio nos EUA em agosto de 2011. A União Europeia também anuncia sanções, em setembro. Em novembro, a Liga Árabe suspende a Síria e impõe sanções ao regime. Também a Turquia anuncia uma série de medidas, incluindo sanções, em dezembro.
Foto: AP
2012: Observadores internacionais desistem
Em dezembro de 2011, a Síria permite a entrada de observadores da Liga Árabe para monitorar a retirada de tropas e armas de áreas civis. A missão é suspensa em janeiro de 2012. Em fevereiro, os EUA fecham sua embaixada em Damasco. Em abril de 2012, chegam observadores da ONU, que partem dois meses depois por falta de segurança.
Foto: REUTERS
2013: Ataque com gás
Em março, um ataque com gás mata 26 pessoas, ao menos a metade deles soldados do governo, na cidade de Khan al-Assal. Investigação da ONU conclui que foi usado gás sarin. Em agosto, outro ataque com gás mata centenas em Ghouta Oriental, um subúrbio de Damasco controlado pelos rebeldes. A ONU afirma que mísseis com gás sarin foram lançados em áreas civis. Os EUA e outros países culpam regime sírio.
Foto: picture-alliance/AP Photo
2013: Destruição de armas químicas
Em agosto, investigadores da ONU chegam à Síria para averiguar o uso de armas químicas, em meio a denúncias de médicos e ativistas. EUA afirmam que 1.429 pessoas morreram num ataque, e Obama pede ao Congresso autorização para ação militar. Em setembro, o Conselho de Segurança da ONU ameaça usar a força e, em outubro, Damasco inicia a destruição de seu arsenal declarado de armas químicas.
Foto: AFP/Getty Images
2014: EUA atacam "Estado Islâmico"
Em setembro, os EUA iniciam ataques aéreos a alvos do "Estado Islâmico" na Síria. Em outubro, o mediador da ONU, Staffan de Mistura, começa a negociar uma trégua ao redor de Aleppo, mas o plano fracassa meses depois.
Foto: picture-alliance/AP Photo/V. Ghirda
2015: Rússia entra no conflito
Em setembro, a Rússia, que desde o início fornecera ajuda militar ao governo sírio nos bastidores, entra ativamente no conflito, bombardeando opositores do regime. A ajuda se mostra decisiva, e a guerra civil passa a pender para o lado de Assad, que nos meses seguintes recupera território perdido para os rebeldes.
Foto: Reuters/Rurtr
2016: Governo controla Aleppo
A ONU e a Opac afirmam que tanto militares sírios quanto o "Estado Islâmico" usaram gás em ataques a opositores. O ano é marcado por várias tentativas de tréguas. Em setembro, a cidade de Aleppo é alvo de 200 ataques aéreos por forças pró-Assad num fim de semana. Em dezembro, as forças governamentais assumem controle de Aleppo, encerrando quatro anos de domínio dos rebeldes.
Foto: Getty Images/AFP/G. Ourfalian
2017: Ataque em Idlib
Em fevereiro, Rússia e China vetam resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo sanções ao governo sírio pelo uso de armas químicas. Em abril, ao menos 58 pessoas morrem na província de Idlib, dominada pelos rebeldes, no que aparenta ser um ataque com gás. Testemunhas afirmam que o ataque foi executado por jatos sírios e russos, mas tanto Moscou quanto Damasco negam bombardeio.
Foto: Getty Images/AFP/O. H. Kadour
2017: Resposta dos EUA
Em abril, os EUA lançam dezenas de mísseis sobre a base militar de onde se acredita ter saído o ataque em Idlib. Em maio, o presidente Donald Trump aprova planos para armar combatentes das milícias curdas YPG na luta contra o "Estado Islâmico". A medida enfurece a Turquia, que vê as YPG como um grupo terrorista. Em outubro, o "Estado Islâmico" perde o controle de Raqqa, sua autoproclamada capital.
Em janeiro, aviões turcos bombardeiam a região curda de Afrin, dando início à operação contra as YPG intitulada "Ramo de Oliveira". A Turquia anuncia a morte de centenas de "terroristas", mas entre os mortos estão dezenas de civis, dizem ativistas. Em fevereiro, as milícias YPG chegam a acordo com o regime sírio para o envio de tropas pró-governo para auxiliar no combate aos turcos em Afrin.
Foto: picture alliance/AA/E. Sansar
2018: Ofensiva em Ghouta Oriental
Em 21 de fevereiro, tropas pró-regime executam ofensiva em larga escala contra enclave rebelde localizado ao leste de Damasco. Em torno de 400 mil civis ficam sitiados, com acesso limitado a alimentos e cuidados médicos. Os ataques matam centenas de pessoas. No dia 24 de fevereiro, o Conselho de Segurança da ONU aprova trégua humanitária de 30 dias vigente em todo o território sírio. Ela fracassa.
Foto: Reuters/B. Khabieh
2018: O bombardeio ocidental
Após dias de ameaça, em 14 de abril Trump anuncia o lançamento de mais de cem mísseis, em conjunto com França e Reino Unido, na Síria. O ataque é uma retaliação ao ataque químico na cidade de Duma, que matou dezenas de civis e que o Ocidente atribui ao regime de Bashar al-Assad.
Foto: picture-alliance/AP Photo/L. Matthews
2019: Estados Unidos começam a se retirar da Síria
Em janeiro de 2019, os Estados Unidos começaram a se retirar da Síria. O presidente americano afirmou que o Estado Islâmico havia sido derrotado e, por isso, a presença dos EUA não seria mais necessária. A decisão foi contestada dentro do próprio governo e também pelas milícias curdas na Síria, aliadas dos EUA, que temiam enfraquecer-se.
Foto: Getty Images/AFP/D. Souleiman
2019: fim do autoproclamado califado do EI
Em março de 2019, as Forças Democráticas Sírias (FDS), aliança liderada por curdos, anunciaram que o autoproclamado califado do Estado Islâmico foi totalmente eliminado, após combates em Baghouz, considerado o último reduto jihadista na Síria. Militantes curdos e árabes das FDS, apoiados pela coalizão internacional liderada pelos EUA, combatiam há várias semanas os jihadistas.