Nos últimos anos, imagem de Günter Grass foi marcada principalmente pelas polêmicas em que se envolveu. Mas ele foi um grande escritor, e é hora de focar novamente em sua obra, opina o jornalista Jochen Kürten.
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Esta aí uma pergunta interessante: como o escritor Günter Grass seria julgado hoje se tivesse sido um pouco mais cuidadoso com suas declarações políticas? E principalmente se tivesse confessado um pouco antes seu alistamento na [tropa de elite nazista] Waffen-SS? Provavelmente, toda a Alemanha estaria hoje orgulhosa desse seu escritor, do autor de O tambor, do Nobel de Literatura, do literato de dimensões internacionais.
Mas será que a Alemanha ainda está orgulhosa de Günter Grass? Mesmo que o escritor seja homenageado em inúmeros obituários, ele ainda causa em muitos alemães um certo mal-estar. Isso deve-se sobretudo a três razões.
Primeira: Grass polemizou demais. Do ponto de vista político, ele se expôs cada vez mais. Claro que ele tinha esse direito, e talvez esse fosse também o dever de um intelectual crítico, autor de livros na segunda metade do século 20. Acontece que Grass não se engajava apenas pela social-democracia ou pelos direitos humanos – temas que seriam aceitos mesmo por quem defendia pontos de vista politicamente distintos. Ele repetidamente extrapolava os assuntos de tal forma, tanto em sua obra quanto nos apelos à opinião pública, que fazia seus adversários políticos perderem a paciência.
Günter Grass também resmungou contra a Reunificação Alemã: tudo rápido demais, mandou avisar de Lübeck. Ele preferia que primeiramente fossem mantidos dois Estados alemães. Suas opiniões sobre Israel também causaram polêmica, ao alegar que tratava-se de um país que provoca a guerra e ameaçava a paz mundial – sem nunca ter dito uma palavra sequer sobre o Irã e as potências árabes.
E perdeu popularidade ainda outra vez ao criticar a visita do ex-chanceler federal alemão Helmut Kohl a um cemitério de soldados, qualificando-a de distorção histórica.
Grass se apresentava como a consciência moral da nação. Pelo menos, é essa a impressão que muitos tinham. E como Grass – diferentemente do também engajado escritor Heinrich Böll, seu companheiro de lutas por muitos anos – era temperamental, para não dizer provocador, acabava ofendendo metade do país com suas posições.
Segunda: quando Grass admitiu em 2006, no autobiográfico volume Descascando a cebola, ter pertencido em sua juventude à SS, o estrago estava feito. Justo ele, o defensor da moral e dos bons costumes – como muitos o viam – teria se calado a respeito de seu próprio passado. Isso era ir longe demais. Nem mesmo o fato de tê-lo admitido aos soldados das forças aliadas que o aprisionaram, ou de tê-lo confessado mais tarde a colegas de profissão, foi capaz de salvá-lo.
Um pregador da consciência histórica que não lida abertamente com sua própria história – foi isso que o deixou queimado para parte da opinião pública de seu país.
A terceira razão da abalada imagem pública de Günter Grass na Alemanha tampouco pode ser menosprezada. O Nobel de Literatura esteve permanentemente em guerra com a crítica literária alemã. E o confronto aberto com o influente crítico Marcel Reich-Ranicki – do jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, tido por muitos como a principal voz do debate intelectual alemão – marcou negativamente e de forma duradoura a imagem do autor.
Em certo momento, não se podiam mais curar as feridas abertas de ambos os lados. Para Reich-Ranicki e seus seguidores, Günter Grass não teria publicado nada literariamente significativo depois de O tambor, da novela O gato e o rato e talvez de O encontro em Telgte. Na Alemanha, o opinião pública se deixou levar pela imagem pregada por Reich-Ranicki. Mesmo que muitos especialistas e críticos literários internacionais vejam a coisa com outros olhos.
Com seu jeito autoritário e, conforme a idade avançava, cada vez mais teimoso, Günter Grass sem dúvida contribuiu para compor a imagem que se tem dele. Demorar tanto para admitir seu envolvimento com a Waffen-SS foi um grande erro. Porém, isso, não altera o fato de Günter Grass ter sido, durante décadas, um dos poucos escritores alemães a se manter na elite literária internacional. Autores importantes, como Salman Rushdie, John Irving e vários outros se inspiraram na obra de Grass.
Deve-se, portanto, agora que ele partiu, focar em seus romances e contos, em suas novelas e também em seus versos. Sem sombra de dúvida, Günter Grass foi um dos mais importantes escritores de língua alemã após a Segunda Guerra Mundial.
Günter Grass – Estações de sua vida
O Prêmio Nobel de Literatura faleceu aos 87 anos. Politicamente engajado, o escritor alemão permaneceu intelectualmente ativo até o fim de sua vida.
Foto: picture-alliance/dpa
Luto por Günter Grass
Laureado com o Nobel de Literatura, Günter Grass foi um dos mais importantes escritores alemães do pós-Guerra. Politicamente engajado, deu início a importantes debates intelectuais, tanto envolvendo temas da atualidade quanto outros historicamente polêmicos, como a culpa que a Alemanha carrega devido ao nazismo.
Foto: AFP/Getty Images/P. Armestre
Juventude em Danzig
Günter Grass nasceu em 16 de outubro de 1927 em Langfuhr, na periferia da então Cidade Livre de Danzig (hoje Gdansk-Wrzeszcz, na Polônia). De origens simples, foi coroinha e chegou a integrar a chamada Juventude Hitlerista, em cujo jornal "HJ" foram publicados seus primeiros poemas.
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Ingresso na Waffen-SS
Para escapar à opressão do ambiente familiar, como justificaria mais tarde, alistou-se voluntariamente na Wehrmacht, as Forças Armadas da Alemanha nazista. Um ano depois, em 1944, aos 17 anos, foi recrutado pela Waffen-SS, uma tropa paramilitar de elite, desvinculada das Forças Armadas. Quase no final da Segunda Guerra, tornou-se prisioneiro dos americanos.
Foto: Sean Gallup/Getty Images
Formação como artista
Após a guerra, Grass começou um aprendizado como escultor e depois passou a estudar artes gráficas e escultura em Düsseldorf. Seguiram-se estações em Berlim e Paris, e logo vieram as primeiras exposições. Por toda a sua vida, manteve-se fiel às artes plásticas, sendo responsável até pelas capas de seus livros.
Foto: AP
Descoberto pelo Grupo 47
Nos ano de 1950, Grass passou a dedicar-se mais ativamente à literatura. Em 1955, despertou a atenção do Grupo 47, um clube de escritores que constituiu uma plataforma de discussão literária e reflexão social na Alemanha do pós-Guerra. Em uma das sessões do fórum, Grass leu dois capítulos de seu até então inédito romance "O tambor".
Foto: picture-alliance/dpa
Sucesso literário
"O tambor" lhe trouxe reconhecimento internacional em 1959. Em 1979, a história ganharia uma versão para cinema. Com "Gato e rato" (1961) e "Anos de cão" (1963), completou-se a chamada "Trilogia de Danzig", que lidava com a culpa da Alemanha pelo nazismo e a memória histórica do Terceiro Reich. Grass sempre cobrou dos alemães que lidassem abertamente com os crimes nazistas.
Foto: ullstein - Tele-Winkler
Engajamento político
Grass também era politicamente engajado, tendo lutado ativamente pela reaproximação entre a Alemanha e a Polônia após o fim da Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1960, chegou a fazer campanha pelo Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD). No entanto, foi filiado ao partido somente por dez anos, de 1982 a 1992. Seu apoio aos social-democratas, no entanto, estendeu-se por toda a vida.
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Críticas a Grass
Em 1995, o renomado crítico literário Marcel Reich Ranicki literalmente "destruiu" o romance "Um campo vasto", no qual Grass traça um panorama da história política da Alemanha de 1848 até a Reunificação, e lançou um caloroso debate ao acusar Günter Grass de falsificar a História.
Laureado com o Nobel de Literatura
Quatro anos mais tarde, Grass foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. O comitê justificou sua escolha elogiando o autor por "ilustrar a face esquecida da História" e salientou que "O tambor" permaneceria entre as "obras literárias inesquecíveis do século 20".
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Sucesso de público e crítica
Em 2002, Grass obteve grande sucesso de público e crítica com a novela "Passo de caranguejo", que narra a catástrofe envolvendo o navio Wilhelm Gustloff, afundado por um submarino soviético em 1945, quando levava nove mil refugiados alemães, militares e civis. A crítica o elogiou pela envolvente narrativa de um tema tão complexo.
Foto: ullstein bild
Credibilidade em jogo?
Sua autobiografia, "Descascando a cebola", deu início a um intenso debate na Alemanha. Nela, Günter Grass admitiu pela primeira vez ter ingressado na tropa de elite nazista Waffen-SS, levando críticos a questionarem sua credibilidade e sua integridade moral.
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Críticas a Israel
Em 2007, Grass recebeu grandes homenagens por ocasião de seu 80º aniversário. Porém, em abril de 2012, voltou a sofrer fortes críticas devido a um poema que publicou no jornal "Süddeutsche Zeitung". Intitulado "O que precisa ser dito", o poema critica a política externa do governo de Israel. O texto não apenas foi criticado estilisticamente, como rendeu-lhe acusações de antissemitismo.
Foto: picture-alliance/dpa
Intelectualmente ativo até o fim
Em dezembro de 2013, Grass estava entre os 562 assinantes da petição "Writers Against Mass Surveillance", que conclamava à resistência contra as práticas de vigilância dos serviços secretos dos Estados Unidos. O autor permaneceu intelectualmente ativo até sua morte, em 13 de abril de 2015.