Os dois lados da "democracia dos apelidos"
27 de junho de 2006![](https://static.dw.com/image/2068652_800.webp)
Ao contrário de outros times, os brasileiros no campo são conhecidos por seus apelidos ou, na melhor das hipóteses, por seus prenomes. Se estivessem fora do Brasil, Ronaldinho, Cicinho e Juninho teriam provavelmente em suas camisetas os pomposos sobrenomes Moreira, Cezare e Reis.
Na história do futebol brasileiro, são poucos os jogadores que se tornaram famosos usando seus sobrenomes. Por acaso alguém conhece o senhor Bledorn Verri? Provavelmente não, mas Dunga certamente sim. O mesmo a dizer de Manoel dos Santos, o velho Garrincha, e de Artur Antunes Coimbra, o Zico.
Dos sobrenomes duplos aos apelidos
"Em sua fase incial, após chegar a São Paulo, em 1894, o futebol foi extremamente elitista e racista", conta Mauricio Murad, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pesquisador do Núcleo de Sociologia do Futebol.
Segundo ele, "uma característica deste período foi justamente o uso de sobrenomes duplos, que identificavam não somente riqueza, mas tradição. Quando começou a ser democratizado e se popularizar, após os anos de 1920 e 1930, uma série de barreiras impostas pelos preconceitos sociais de então começaram lentamente a cair. Primeiro, como consequência de um processo de mudanças históricas. Segundo, para facilitar a participação dos jogadores pobres e sem escolaridade que chegavam aos clubes".
Para Murad, "o uso só do prenome ou do apelido era um elemento facilitador para aqueles atletas analfabetos ou semi-alfabetizados". A insistência no uso dos prenomes e apelidos pode ser vista, de acordo com o sociólogo, como "um dado de resistência às tensões da época, entre exclusão e inclusão, que, aliás, marcam toda a nossa história, em todos os níveis".
Estranhamento além das fronteiras
Fato é que o volume de "inhos" na seleção brasileira provoca até hoje, fora do país, um estranhamento constante. Especialmente para um alemão, é inconcebível a idéia de que personalidades públicas sejam tratadas simplesmente por seus prenomes ou apelidos. Principalmente quando se leva em consideração que os brasileiros têm, em relação a vários outros países, nomes muitíssimo longos, com dois prenomes e dois sobrenomes.
No Brasil, há de se notar, o jogo com o nome alheio ultrapassa as fronteiras do campo de futebol. Lembre-se que o tenista Guga é Gustavo Kürten, Maguila é Adilson Rodrigues e até o treinador da seleção de vôlei, o nada baixinho Bernardo da Rocha Rezende, acabou se tornando Bernardinho.
Não só no mundo do esporte
A admiração do estrangeiro geralmente aumenta ainda mais quando se explica que no Brasil a avalanche de apelidos vai além do mundo do esporte e chega até às esferas da política, por exemplo, como no caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Revirando a memória, percebe-se que tratar presidentes por apelidos não é uma história que começou ontem. João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964, era simplesmente conhecido como Jango.
Outra peculiaridade brasileira é transformar presidentes simplesmente em uma combinação de letras. Falar em Cardoso no Brasil significaria arriscar a receber de volta um ponto de interrogação na cara do interlocutor. Já de FHC o país ainda se lembra. O mesmo valendo para o velho JK.
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Herança da escravatura
O brasileiro, via de regra, só vem a refletir a respeito desta especificidade nacional quando sai do país e é chamado, na Europa, por exemplo, de senhor ou senhora sobrenome.
Segundo o jornalista britânico Alex Bellos, correspondente no Brasil dos jornais The Guardian e Observer e autor do volume Futebol: O Brasil em Campo, a prática do uso de prenomes é uma herança da escravatura, abolida oficialmente, do ponto de vista histórico, há pouco tempo, no ano de 1888. Bellos acredita que os apelidos também serviam para designar os escravos – isentos de sobrenomes – como tais.
"Socialmente invisíveis"
O sociólogo Murad lembra, neste contexto, que o uso de apelidos ou prenomes ocorre mais nas camadas socialmente inferiorizadas da sociedade brasileira, "onde a invisibilidade social é significativa".
Nos setores dominantes da elite, lembra Murad, "houve no passado e ainda há no presente o interesse em mostrar o sobrenome como veículo de prestígio. Em algumas áreas profissionais, este aspecto é muito relevante, como Medicina e Direito".
Cristãos-novos
Há ainda teorias segundo as quais a omissão do sobrenome vem de muito antes na história do país, tendo sido um costume introduzido pelos chamados "cristãos-novos" – judeus e mouros, que haviam sido obrigados a se converter ao cristianismo na Europa. Como os sobrenomes, neste caso, poderiam "denunciar" a origem dos imigrantes, eles preferiam se apresentar usando apenas os prenomes, para evitar discriminações.
Fenômeno do Novo Mundo
Até mesmo os filósofos alemães Theodor W. Adorno e Max Horkheimer se ocuparam da predileção pelos prenomes no chamado "Novo Mundo". Na Dialética do Esclarecimento, escrita no exílio norte-americano, os teóricos denunciam uma "estilização que transforma os prenomes arcaicos em marcas publicitárias". O fenômeno foi descrito em relação aos Estados Unidos, onde os dois estavam vivendo.
"Em compensação, parece antiquado o nome burguês, o nome de família, que, ao contrário das marcas comerciais, individualiza o portador, relacionando-o à sua própria história. Ele desperta nos norte-americanos um estranho embaraço. Para disfarçar a incômoda distância entre indivíduos entre si, eles se chamam de Bob e Harry, como elementos intercambiáveis de teams. Tal prática degrada as relações pessoais à fraternidade do público esportivo, que impede a verdadeira fraternidade", escreveram Adorno e Horkheimer.
Camuflando a distância real
Dizer que o costume europeu tradicional de usar o sobrenome, em oposição à "superficialidade" do Novo Mundo com seus prenomes, fortalece a "fraternidade verdadeira" e minimiza a "distância incômoda" entre os indivíduos, é certamente bastante discutível.
Ao mesmo tempo, a "democracia dos apelidos", como analisa Murad, pode servir no Brasil como uma forma de esconder o abismo existente entre pessoas de diferentes classes sociais.
"Do mesmo modo que se fala no Brasil em democracia racial e que isto é uma maneira de camuflar o nosso racismo, que não é pequeno, poderíamos dizer, também, que o uso generalizado de apelidos (e de diminutivos como Ronaldinho, Juninho, Robinho) pode ser uma tentativa de mostrar uma proximidade entre as pessoas, o que na realidade não existe. O mínimo de vivência no Brasil é suficiente para se observar que esta democracia dos apelidos é algo de fachada, tendo em vista uma sociedade tão hierarquizada e excludente como a brasileira", conclui o sociólogo.