Em meio a caos e incerteza, o líder catalão apela ao povo por "paciência e perspectiva" e diz que seu projeto independentista acabará se cumprindo. Coragem visionária ou um caso de dissociação da realidade?
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O recém-destituído presidente regional da Catalunha, Carles Puigdemont, almoça tranquilamente num bar de Girona, sua cidade natal. Um grupo de jogadores de basquetebol pede para tirar uma foto com ele. Sem problema: o político vai rapidamente até a porta, enfrentando as câmeras e as perguntas dos repórteres ("o senhor está sabendo que foi deposto?"), posa para foto e retorna para dentro, onde continua a comer.
Quase simultaneamente, a TV catalã transmite um "discurso institucional" do ex-chefe de governo. Nele, Puigdemont rejeita a demissão e pede "paciência, resistência e perspectiva" para avançar em seu plano pela independência. A seu lado, as bandeiras da Catalunha e da União Europeia, com imponência estatal.
Após o discurso, o político aparece novamente no streaming ao vivo de uma emissora de TV: o presidente catalão afastado está em companhia de seus vizinhos, anuncia a apresentadora.
Para Carles Puigdemont, parece tratar-se de um dia perfeitamente normal. Nada o tira do sério, nem mesmo quando, horas mais tarde, o restaurante em que ainda se encontra é sitiado por centenas de curiosos e fãs, que exclamam "presidente Puigdemont!" Um número ainda maior de câmeras capta as cenas.
Realidade virtual e utopia catalã
É meio absurdo, comenta um transeunte. Parece que o senhor Puigdemont vive em dois mundos distintos: o do governo espanhol e o seu próprio. Este último lembra, antes, uma "realidade virtual", não muito distante da tão evocada "utopia catalã" a que o líder guiou o seu povo.
Nessa utopia, votações caóticas são vendidas como referendos válidos, com resultados dignos de crédito; regras são definidas e, logo em seguida, quebradas (por exemplo: originalmente a declaração de independência deveria ser proclamada em 48 horas – as quais acabaram se transformando em quase um mês). E nela se festejam como legítimas resoluções que estão longe de sê-lo – como a desta sexta-feira (27/10), sobre a independência da Catalunha.
Na opinião de Oriol Bartomeus, professor de política da Universidade Autônoma de Barcelona, a votação não deveria sequer ter sido realizada, "porque, segundo a lei, o Parlamento não tem a menor competência para decidir sobre a soberania da Catalunha". Advogados do Parlamento catalão chegaram à mesma conclusão.
No partido como nas ruas
Ao fim, a base dos independentistas encabeçados por Carles Puigdemont pareceu debilitar-se, praticamente esfacelando-se em duas alas: uma moderada, que acabou insistindo por eleições regionais antecipadas; e a inflexível, que exigia nada menos do que uma declaração unilateral de independência.
Essa fissura ficou mais óbvia do que nunca cerca de duas semanas atrás, quando o chefe de governo declarou a independência, para suspendê-la imediatamente em seguida.
Por um lado, tratou-se de uma concessão ao partido de extrema esquerda Candidatura de Unidade Popular (CUP) que garantiu a maioria parlamentar. Por outro, um sinal de aquiescência ao setor moderado da própria legenda de Puigdemont, o Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT).
O racha interno se tornou definitivamente manifesto quando, ao renunciar, na sexta-feira, o Conselheiro de Empresas Santi Vila Vicente, comentou resignado no Twitter: "minhas tentativas de um diálogo voltaram fracassaram mais uma vez".
"No bloco independentista ainda existe um cisma", observa o cientista político Oriol Bartomeus. "No momento ele não está mais tão visível, mas possivelmente voltará a emergir nos próximos dias, quando se discute se os adeptos do partido devem participar das eleições de 21 de dezembro ou não."
O racha reflete a atmosfera nas ruas de Barcelona. O movimento independentista, de início homogêneo, se fragmenta em facções diversas. Lá se encontram os antes inflamados partidários da independência que mudaram de opinião diante da retirada de bancos e empresas da Catalunha. Gente que desde o início desejava um estatuto de autonomia mais forte para a região e, em protesto, deu seu "sim" no referendo.
Ou então aqueles catalães mais barulhentos e visíveis nas passeatas de protesto, aqueles que não se contentam com nada menos do que a independência. E que agora a obtiveram – ainda que por um tempo bem breve.
Breve história da Catalunha
Desejo de independência da Espanha é acalentado pelos catalães há muito tempo. Ao longo dos séculos, região experimentou vários graus de autonomia e repressão.
Foto: picture-alliance/dpa/AP/F. Seco
Antiguidade rica
A Catalunha foi habitada por fenícios, etruscos e gregos, que estiveram nas áreas costeiras de Rosas e Ampúrias (acima). Depois vieram os romanos, que construíram mais assentamentos e infraestrutura. A Catalunha foi uma parte do Império Romano até ser conquistada pelos visigodos, no século 5.
Foto: Caos30
Condados e independência
A Catalunha foi conquistada pelos árabes no ano 711. O rei franco Carlos Magno interrompeu o avanço deles em Tours, no rio Loire, e em 759 o norte da Catalunha se tornou novamente cristão. Em 1137, os condados que compunham a Catalunha iniciaram uma aliança com a Coroa de Aragão.
Foto: picture-alliance/Prisma Archiv
Guerra e perda de território
No século 13, as instituições de autoadministração catalã foram criadas sob o nome Generalitat de Catalunya. Depois da unificação da Coroa de Aragão com a de Castela, em 1476, Aragão pôde manter suas instituições autônomas. No entanto, a revolta catalã – de 1640 a 1659 – fez com que partes da Catalunha fossem cedidas à atual França.
Foto: picture-alliance/Prisma Archivo
Lembrando a derrota
No final da Guerra da Sucessão, Barcelona foi tomada, em 11 de setembro de 1714, pelo rei espanhol Felipe 5°, as instâncias catalãs foram dissolvidas e a autoadministração chegou ao fim. Todos os anos, em 11 de setembro, os catalães fazem uma grande comemoração para lembrar o fim do seu direito à autonomia.
Foto: Getty Images/AFP/L. Gene
República passageira
Após a abdicação do rei Amadeo 1°, da Espanha, a primeira república espanhola foi declarada em fevereiro de 1873. Ela durou apenas um ano. Os partidários da república estavam divididos, com um grupo apoiando uma república centralizada e outros, um sistema federal. A foto mostra Francisco Pi y Maragall, um partidário do federalismo e um dos cinco presidentes da república de curta duração.
Foto: picture-alliance/Prisma Archivo
Tentativa fracassada
A Catalunha tentou estabelecer um novo Estado dentro da república espanhola, mas isso apenas exacerbou as diferenças entre os republicanos e os enfraqueceu. Em 1874, a monarquia e a Casa de Bourbon, liderada pelo rei Afonso 12 (foto), retomaram o poder.
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Direitos de autonomia
Entre 1923 e 1930, o general Primo de Rivera liderou uma ditadura – com o apoio da monarquia, do Exército e da Igreja. A Catalunha se tornou um centro de oposição e resistência. Após o fim do regime, o político Francesc Macia (foto) conseguiu impor direitos importantes de autonomia para a Catalunha.
Fim da liberdade
Na Segunda República Espanhola, os legisladores catalães trabalharam no Estatuto de Autonomia da Catalunha, aprovado pelo Parlamento espanhol em 1932. Francesc Macia foi eleito presidente da Generalitat de Catalunha pelo Parlamento catalão. No entanto, a vitória de Franco no fim da Guerra Civil Espanhola (1936 a 1939) acabou com tudo isso.
Foto: picture-alliance/AP Photo
Opressão
O ditador Francisco Franco governou com mão de ferro. Partidos políticos foram proibidos, e a língua e a cultura catalãs, reprimidas.
Foto: picture alliance/AP Photo
Novo estatuto de autonomia
Após as primeiras eleições parlamentares que se seguiram ao fim da ditadura de Franco, a Generalitat da Catalunha foi provisoriamente restaurada. Sob a Constituição democrática espanhola de 1978, a Catalunha recebeu um novo estatuto de autonomia, apenas um ano depois.
O novo estatuto de autonomia reconheceu a autonomia da Catalunha e a importância da língua catalã. Em comparação com o estatuto de 1932, ele apresentou avanços nos campos da cultura e educação, mas restrições no âmbito da Justiça. A foto é de Jordi Pujol, que foi por longo tempo chefe de governo da Catalunha depois da ditadura.
Foto: Jose Gayarre
Anseio por independência
O desejo por independência da Espanha se tornou mais forte nos últimos anos. Em 2006, a Catalunha recebeu um novo estatuto, que ampliou ainda mais os poderes do governo catalão. No entanto, eles são perdidos após uma queixa levada pelo conservador Partido Popular ao Tribunal Constitucional espanhol.
Foto: Reuters/A.Gea
Primeiro referendo
Um referendo sobre a independência estava previsto para 9 de novembro de 2014. A primeira questão era "você quer que a Catalunha se torne um Estado?" No caso de uma resposta afirmativa, a segunda pergunta era "você quer que esse Estado seja independente?" No entanto, o Tribunal Constitucional suspendeu a votação.
Foto: Reuters/G. Nacarino
Luta de titãs
Desde janeiro de 2016, Carles Puigdemont é o presidente do governo catalão. Ele deu continuidade ao curso separatista de seu antecessor, Artur Mas, e convocou um novo referendo para 1° de outubro de 2017. O primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, disse que a consulta é inconstitucional.