Todo alemão no Brasil acaba, mais cedo ou mais tarde, sendo confrontado com os preconceitos brasileiros sobre a Alemanha. A maioria deles é positiva, o que inicialmente me alegra. Uma típica conversa no táxi costuma transcorrer da seguinte maneira:
– Você não é daqui, né?
– Não, sou da Alemanha.
– E o que está fazendo no Brasil, então? Lá é muito melhor. Lá as coisas funcionam.
– Sim, algumas sim, outras não.
– Eu iria para lá amanhã.
Uma coisa tem de ser dita: esse papo é muito mais agradável do que a conversa típica de alguns anos atrás, sobre Adolf Hitler, que todo alemão no Brasil tinha que aguentar de tempos em tempos. É bizarro, mas algumas pessoas acreditavam estar sendo simpáticas ao elogiar Hitler para um alemão. Vocês estão muito enganados. Hitler não foi um líder genial, que queria tornar a Alemanha grande. Foi um paranoico e histérico homem cheio de complexos que destruiu a Alemanha.
Por sorte, nos últimos anos a conversa sobre Hitler deu lugar ao papo sobre "na Alemanha tudo funciona". Por trás disso está, claro, essa estranha disposição, bastante atual, dos brasileiros para a autoflagelação, o complexo de vira-lata, que leva à crença de que na Europa tudo é melhor.
Posso tranquilizar os brasileiros: também na Alemanha nem tudo funciona direito. E há muitos mitos que não têm nada a ver com a realidade. A seguir, uma pequena amostra.
Para começar, o mito de que os alemães planejam tudo perfeitamente. Eis alguns exemplos que dizem o contrário. Este ano foi inaugurado o novo aeroporto de Berlim – com nove anos de atraso, pois deveria ter começado a funcionar em 2011. Quando a obra começou, os custos estimados eram de 1,9 bilhão de euros. Acabou saindo por cerca de 7 bilhões. A obra durou 14 anos. Em comparação, Brasília inteira precisou só de quatro anos para ser construída.
A construção do aeroporto foi marcada por inúmeras panes de planejamento, o que não se poderia mesmo esperar de um país tão orgulhoso de seus arquitetos e engenheiros. A minha favorita é a escada-rolante para lugar algum: na hora de encomendar as escadas-rolantes, os planejadores informaram as medidas erradas, e algumas vieram muito curtas. Corrigiram o problema colocando três degraus de mármore no começo da escada.
A corrupção também desempenhou um papel na construção do aeroporto de Berlim, o que nos traz ao segundo mito: o de que na Alemanha não há corrupção. Um diretor-técnico foi desmascarado como corrupto, e um administrador recebeu propina na beira de uma rodovia.
É verdade que a corrupção na Alemanha é mais discreta do que no Brasil. Isso ocorre também porque a nota mais alta de euro é de 500. Ninguém precisa de malas grandes, caixas ou cuecas para esconder o dinheiro.
Assim como no Brasil, a corrupção também existe nos meios políticos da Alemanha. Muitos brasileiros não sabem, mas a CDU, o partido da chanceler federal Angela Merkel, foi várias vezes culpada de receber doações ilegais milionárias. O partido manteve até mesmo contas secretas. Entre os principais envolvidos no último escândalo estava o antigo chanceler federal Helmut Kohl. Ele levou para o túmulo o nome dos doadores ilegais, ao estilo de um chefão da máfia.
Outro mito é o da honestidade alemã. Este ano, a empresa de pagamentos Wirecard entrou em insolvência porque no seu balanço constavam 1,9 bilhão de euros que não existiam. Eles haviam sido simplesmente inventados pelos chefes da Wirecard. O escândalo foi um duro golpe para a credibilidade do mercado financeiro alemão pois a Wirecard estava cotada na bolsa de valores.
Um escândalo que ainda pesa é o das montadoras alemãs, que veio à tona em 2015. Elas usaram softwares para ocultar que seus carros não respeitavam as regras de emissões de gases de vários países.
Outro mito persistente é o da proteção ambiental exemplar da Alemanha. É verdade que a maioria dos alemães não joga lixo em qualquer terreno, como muitos brasileiros fazem, e que as ruas não são tão sujas. Porém, todos os anos a Alemanha subsidia com 46 bilhões de euros a exploração de carvão e a queima de petróleo e gás, muito prejudiciais ao clima. Em média, cada alemão é responsável pela emissão de quase nove toneladas de CO2. A média brasileira é de apenas duas toneladas.
A dita pontualidade alemã é outra que volta e meia vem à tona. Em 2018, de cada quatro trens da Deutsche Bahn, nem três conseguiram ser pontuais. Juntos, eles acumularam entre 3 milhões e 4 milhões de minutos de atraso – ou 2.570 dias que passageiros na Alemanha tiveram de esperar.
Outra ideia equivocada dos brasileiros é a dos alemães trabalhadores e dedicados. O "índice de dedicação" da empresa de consultoria Kienbaum, que questiona empregados de 20 países, concluiu que a dedicação dos trabalhadores alemães fica pouco abaixo da média mundial e bem abaixo do índice alcançado por indianos e chineses.
Dois mitos que me irritam em especial são os de que alemães estão o tempo todo bebendo cerveja e comendo carne. Para mim, eles se explicam pelo predomínio da cultura da Baviera na imagem que os brasileiros têm da Alemanha.
Na verdade, há, na Alemanha, muitas regiões produtoras de vinhos excelentes, e em especial o vinho branco alcança uma categoria de ponta. Há milhões de alemães que nunca estiveram numa Oktoberfest de Munique, não veem motivo para um dia estar e preferem passar seu tempo livre num dos inúmeros belos restaurantes das regiões vinícolas alemãs.
E cada vez mais alemães são vegetarianos ou veganos. Pesquisas dizem que 10% dos alemães não consomem carne, e a tendência ao vegetarianismo está em forte alta. Mais da metade dos alemães diz que consome cada vez menos carne ou apenas carne de melhor qualidade, ou seja, da produção orgânica.
Ao mesmo tempo há nas cidades alemãs hoje mais restaurantes com comida árabe, turca, grega, italiana, tailandesa, vietnamita ou peruana em vez da tradicional culinária alemã. O meu prato favorito, aliás, é arenque frito com batatas, típico do norte da Alemanha e do qual a maioria dos brasileiros provavelmente nunca ouviu falar.
Portanto, queridos brasileiros: nem tudo é ruim no Brasil, como às vezes parece. E nem tudo é tão perfeito na Alemanha, como muitos pensam.
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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Austria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.