Os "falsos positivos" e a busca por justiça na Colômbia
Cristina Esguerra ca
17 de agosto de 2017
Na guerra civil colombiana, militares mataram civis inocentes para elevar as estatísticas de mortes de rebeldes das Farc. Hoje os familiares buscam justiça, e o caso pode parar no Tribunal Penal Internacional.
Anúncio
No início da manhã de 8 de janeiro de 2008, Luz Marina Bernal deixou sua casa para acompanhar o marido nas compras. Ao voltar, por volta das 16h, eles não encontraram ninguém em casa. O casal supunha que três de seus filhos haviam ido à escola. E que o mais velho, Fair Leonardo, estava ajudando alguém da vizinhança. Leonardo era uma pessoa boa e prestativa. Mas ele nunca mais voltou para casa.
Nos meses seguintes, Luz Marina e sua família procuraram por Leonardo ininterruptamente. Eles buscaram em hospitais, prisões e institutos médico-legais, como também entre viciados e sem-teto em Bogotá. "Eu mesma comia regularmente, mas não sabia se meu filho recebia comida suficiente ou tinha uma cama limpa", lembra-se Luz Marina do tempo desesperador de busca.
Em 16 de setembro daquele ano, ela recebeu um telefonema de um instituto médico-legal. "Eu soube imediatamente que se tratava de meu filho, que ele estava morto." Segundo o atestado de óbito, Fair Leonardo Porras foi morto no dia 12 de janeiro de 2008 em confrontos entre insurgentes e uma brigada militar em Ocana, no departamento de Norte de Santander, a mais de mil quilômetros de sua casa. Segundo o atestado, ele era o líder dos rebeldes.
Pela primeira vez em tribunal
Depois de um processo judicial que se arrastou por quatro anos, Luz Marina pôde provar que seu filho não era membro e muito menos líder de um grupo rebelde. O jovem de 26 anos era portador de deficiência intelectual. Além disso, ele não podia usar corretamente o seu braço direito e mancava da perna direita.
Foi a primeira vez que um caso dos chamados "falsos positivos" foi reconhecido como crime contra a humanidade. Seis membros das Forças Armadas foram condenados a mais de 50 anos por – entre outros crimes – incitação conjunta ao crime.
O processo em torno de Fair Leonardo rendeu duas constatações. Primeiramente, que um crime como esse deveria ser julgado por um tribunal civil. E, em segundo lugar, que esse assassinato não era um caso isolado, cometido por alguns poucos soldados. Por trás havia o objetivo de apresentar os militares como vencedores na luta contra as guerrilhas.
Estatística da morte
Sob o governo do ex-presidente Álvaro Uribe, entre 2002 e 2010, as Forças Armadas eram recompensadas com dinheiro, promoções, medalhas, dias de férias e outras vantagens quando eliminavam rebeldes oposicionistas – sobretudo os esquerdistas radicais das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).
Para esse fim, os militares não se intimidavam em manipular as estatísticas com a morte de civis inocentes. "Álvaro Uribe mentiu quando disse que em seus oito anos de governo foram mortos 7 mil insurgentes. Os militares não matavam rebeldes, mas nossos filhos", diz Luz Marina.
Homens de famílias pobres como Fair Leonardo, mas às vezes também mulheres e adolescentes eram sequestrados, assassinados a bala para então serem apresentados como guerrilheiros mortos em combate. Até agora são conhecidos 5 mil casos de tais "falsos positivos". A maioria deles remonta ao período entre 2002 e 2010.
"Até agora, por volta de 97% dos casos não foram punidos legalmente", afirma Carolina Lopez Giraldo, membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, no departamento de Caldas.
Disputa sobre tratamento jurídico
Depois que o acordo de paz entre o governo e os rebeldes das Farc foi assinado, em dezembro de 2016, o debate público passou a girar em torno de como questões de verdade histórica, justiça e reparação devem ser abordadas, e como o tema dos "falsos positivos" deve ser avaliado. É discutível se eles devem ser julgados pelo mecanismo judicial de transição criado no contexto do tratado de paz, a Jurisdição Especial para a Paz (JEP).
"Todos os seis homens que participaram do assassinato de Fair Leonardo avaliam se beneficiar da JEP", diz Luz Marina. A questão decisiva para a sua condenação é se os crimes, em última análise, ocorreram em consequência do conflito armado na Colômbia. Para se chegar a um veredicto, a resposta a essa pergunta é de considerável influência.
Para Carolina Lopez Giraldo e Luz Marina Bernal, os "falsos positivos" foram mortos pelos militares porque isso gerava vantagens pessoais nas Forças Armadas. Segundo o ponto de vista delas, esses assassinatos não têm nada que ver com o conflito.
Juan Carlos Henao, presidente da Universidade Externado, em Bogotá, e advogado do governo colombiano durante as negociações de paz com as Farc, diz ver as coisas de forma diferente. Segundo a sua avaliação, os casos agora em julgamento têm uma relação indireta com o conflito armado. As estatísticas sobre os guerrilheiros mortos remontam a uma iniciativa do Estado colombiano.
Crimes contra a humanidade
Além do sistema de justiça de transição JEP, também deverá ser instalada uma comissão da verdade segundo os moldes da África do Sul. "Dessa forma, a verdade jurídica é separada daquela que a comissão da verdade procura encontrar", explica Henao. "Ambas as instituições se diferenciam. Uma não deve interferir na outra."
De acordo com uma reportagem da influente revista Semana, até 2015 por volta de 3 mil militares foram processados por familiares dos "falsos positivos". Desses, 815 foram condenados. Entre eles, no entanto, havia somente cinco comandantes. O resto era, em sua maioria, soldados ou sargentos. Na época da publicação da reportagem, outros cinco tenentes-coronéis foram condenados pelo assassinato de 72 civis entre 2006 e 2007.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) pode interferir nos julgamentos se crimes contra a humanidade permanecerem impunes. A corte já sinalizou interesse especial nos casos dos "falsos positivos". A atenção do TPI se volta para 23 generais e seis comandantes, entre eles o atual chefe das Forças Armadas colombianas, general Juan Pablo Rodríguez Barragán.
"A ideia de que os soldados vêm de famílias semelhantes à minha é dolorosa", revelou Luz Marina. "Aqueles que lutam não são os filhos de senadores e deputados. São os nossos filhos que servem ao seu país. Guerra significa que pessoas pobres matam outras mais pobres ainda."
Cronologia do conflito e do processo de paz na Colômbia
Acordo com as Farc foi alcançado após décadas de luta armada e tensões sociais na Colômbia. País trabalha agora na implementação do pacto e na reintegração de ex-guerrilheiro à sociedade.
Foto: Imago/Agencia EFE
Longo caminho da violência à paz
As décadas de violentas tensões sociais, que chegam ao fim com o novo acordo de paz na Colômbia, têm origem na luta no campo, que opôs trabalhadores rurais e proprietários de terras desde os anos 1920. As hostilidades se intensificaram a partir da década de 1960.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
1940-1950: A Violência
Enfrentamentos sangrentos entre liberais e conservadores provocam milhares de mortes. O assassinato do liberal Jorge Elíecer Gaitán (foto), em 1948, gera protestos que ficaram conhecidos como "El Bogotazo", dando início ao período denominado "La Violencia". Membros do Partido Comunista são perseguidos, o Exército ocupa povoados e reprime os "lavradores comunistas".
Foto: Public Domain
1964: Farc e ELN
São fundadas as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), contra a concentração de terras, e o Exército de Libertação Nacional (ELN), fruto da radicalização do movimento estudantil e apoiado por adeptos da Teologia da Libertação, que prega a opção pelos pobres. O padre Camilo Torres (foto), guerrilheiro, é morto em combate. O governo colombiano recebe ajuda dos Estados Unidos.
Foto: picture-alliance/AP Photo
1970-1980: M-19 e negociações fracassadas
Surgem outros movimentos clandestinos como o M-19, que protagonizou a trágica ocupação do Palácio da Justiça em 1985 (foto), com mais de 350 reféns. A retomada do prédio pelas Forças Armadas deixa 98 mortos e 11 desaparecidos. O governo abre negociação pela primeira vez com as Farc e o ELN, mas o entendimento fracassa devido ao assassinato do ministro da Justiça.
Foto: Getty Images/AFP
Meados dos anos 80: Paramilitares
Surgem numerosos grupos paramilitares de ultradireita, a serviço de grandes proprietários de terras, contra os ataques rebeldes. Ao longo do tempo, vários desses grupos se envolvem com cartéis de droga. Quatro candidatos presidenciais e numerosos políticos de esquerda são assassinados por paramilitares entre 1986 e 1990.
Foto: Carlos Villalon/Liaison/Getty Images
1989: Desmobilização do M-19
O movimento M-19 entrega as armas em outubro de 1989, optando por disputar o poder como um partido político. Seu líder, Carlos Pizarro, candidata-se a presidente. Em 1990, ele é morto durante a campanha eleitoral.
Foto: picture alliance/Demotix/K. Hoffmann
1996: Esquadrões da morte
Grupos paramilitares se reúnem no movimento Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) e formam "esquadrões da morte" com até 30 mil membros.
Foto: AP
1998-99: Presidente Pastrana tenta negociar
Eleito em 1998, o presidente Andrés Pastrana inicia negociação com as Farc. Conversa também com o ELN (foto) e a AUC. Um vasto território até então controlado pelas Farc, no sul do país, comemora o recuo do grupo. Um massacre interrompe as conversas com a AUC.
Foto: picture-alliance/dpa
2002: Ingrid Betancourt e Álvaro Uribe
Depois que as Farc sequestram um avião, o governo interrompe o diálogo. Em 23 de fevereiro é sequestrada a candidata à presidência Ingrid Betancourt (foto). Álvaro Uribe ganha as eleições em maio, intensifica o combate militar e repudia qualquer entendimento. Ele é reeleito em 2007 e Betancourt, libertada em 2008.
Foto: AFP/Getty Images
2003-06: Recuo dos paramilitares e anistia
Após longas negociações, aproximadamente 32 mil paramilitares da AUC se rendem (foto). Até 2014, cerca de 4.200 deles são julgados por violações dos direitos humanos. Muitos retomam as armas. Em junho de 2005 é aprovada a Lei de Justiça e Paz, uma ampla anistia para membros dos esquadrões da morte.
Foto: picture-alliance/dpa
2007-08: "Falsos positivos"
Políticos de direita, acusados de vínculo com os paramilitares, são detidos em 2007 pela primeira vez. Aliados de Uribe também são atingidos. Em setembro de 2008 é revelado o escândalo batizado de "falsos positivos": entre 2004 e 2008, mais de 3 mil pessoas foram mortas pelo Exército para adulterar a estatística de guerrilheiros eliminados. Centenas de militares foram julgados até agora.
Foto: Jesús Abad Colorado
2012: Iniciados diálogos de paz com Farc
Ex-ministro da Defesa Juan Manuel Santos é eleito presidente da Colômbia em junho de 2010. Dois anos depois, entra em vigor a Lei de Vítimas e Restituição de Terras, para compensar os deslocados pelos combates. Em novembro têm início oficialmente os diálogos de paz entre governo (foto) e as Farc.
Foto: Reuters
2014-15: Santos reeleito e prazo para a paz
Santos se reelege em 2014. O governo colombiano anuncia conversações con o ELN. Enquanto isso, entendimentos com as Farc são interrompidos e reabertos devido a ações militares de ambos os lados. Em 23 de setembro de 2015, em Havana, Santos e Rodrigo Londoño Echeverri (Timochenko), líder das Farc, concordam com a meta de assinar um termo de paz em até seis meses.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Ernesto
2016: Diálogos de paz com ELN
Em 30 de março, Frank Pearl, representante do governo da Colômbia, e Antonio García, chefe da delegação do ELN (foto), anunciam em Caracas o início de um processo formal de diálogos de paz. Em relação às Farc, desacordos levam ao adiamento da assinatura do acordo de paz definitivo, cujo prazo expira em 23 de março.
Foto: Reuters/M. Bello
Junho de 2016 - Dia da paz
Acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc foi finalmente concluído. A decisão foi recebida com entusiasmo tanto pela população do país, como pela comunidade internacional. O cessar fogo definitivo foi assinado em Cuba em 23 de junho com a presença do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e outros presidentes e observadores.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/A. Ernesto
Agosto de 2016 - Acordo histórico
Em 24 de agosto, governo e Farc selaram o acordo final que encerra as negociações de paz realizadas em Havana nos últimos quatro anos. Ele foi assinado pelos chefes das equipes de negociação de ambas as partes, Humberto de la Calle, pelo governo, e Luciano Marín, conhecido como "Ivan Márquez", representando a guerrilha, assim como pelos embaixadores de Cuba e Noruega, fiadores no processo.
Foto: Reuters/E. de la Osa
Setembro de 2016 – Assinatura
Três dias após os líderes das Farc ratificarem por unanimidade o acordo de paz, o documento foi assinado pelo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e pelo número um do grupo armado Rodrigo Londoño Echeverri, conhecido como Timochenko, em Cartagena, em 26 de setembro. Numa cerimônia que lembrou as vítimas da guerra, o líder guerrilheiro pediu perdão pelo sofrimento causado durante o conflito.
Foto: Reuters/J. Vizcaino
Outubro de 2016 – Não
Em 2 de outubro, os colombianos foram às urnas decidir sobre o futuro do acordo de paz. Em resultado surpreendente, 50,22% dos eleitores rejeitaram o documento. Apenas 37% dos colombianos participaram do plebiscito, ou seja, cerca de 13 milhões dos 34 milhões de eleitores.
Foto: picture alliance/AP Photo/A. Cubillos
Outubro de 2016 - Nobel da Paz para Santos
Apenas cinco dias depois do referendo sobre o acordo as Farc, os apoiadores do processo de paz foram reconhecidos internacionalmente. O presidente colombiano Juan Manuel Santos foi homenageado com o Prêmio Nobel da Paz. A cerimônia de premiação foi realizada em dezembro de 2016 em Oslo.
Foto: Getty Images/AFP/T. Schwarz
Novembro de 2016 - Ratificação no Parlamento
Após uma série de alterações no texto original do acordo de paz, o Parlamento colombiano ratificou o pacto em 30 de novembro de 2016.
Foto: Getty Images/AFP/G. Legaria
Junho de 2017 - Desarmamento
A entrega das armas pelos guerrilheiros das Farc ocorreu em três fases sob a supervisão da ONU. Em 27 de junho de 2017, Santos declarou: "Hoje é, para mim e para todos os colombianos, um dia especial, um dia em que trocamos as armas por palavras."
Foto: picture-alliance/dpa/A. Pineros
Agosto de 2017 - As novas Farc
As Farc desarmadas selaram num congresso em 27 de agosto de 2017 o abandono da luta armada e sua reformulação como partido político. O ex-líder guerrilheiro Rodrigo Londoño (foto) foi eleito presidente do partido. Sua saúde fragilizada, no entanto, impediu que ele se candidatasse às eleições presidenciais.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Vergara
Março de 2018 - Farc nas eleições
Pela primeira vez desde o fim da luta armada, representantes das Farc participam de eleições legislativas em 11 de março de 2018. Apesar de o partido das Farc só ter recebido 50 mil votos, ele obteve cinco assentos em cada uma das duas casas legislativas, como determinou o acordo de paz. O partido conservador do antigo presidente Álvaro Uribe foi o grande vencedor do pleito.