Os perigos da cápsula radioativa perdida na Austrália
Esteban Pardo
31 de janeiro de 2023
Pequena cápsula de cerca de 8 milímetros desaparecida numa estrada de 1.400 km contém césio-137, a mesma substância que provocou o maior desastre radioativo do Brasil, em 1987, em Goiânia.
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A mineradora internacional Rio Tinto e os serviços de emergência da Austrália Ocidental talvez nunca vão encontrar uma pequena cápsula radioativa que se perdeu, possivelmente quando era transportada de um local de minério de ferro em Pilbara para Perth, no início de janeiro, na Austrália. No domingo (29/01) a empresa se desculpou pelo desaparecimento .
A cápsula tem aproximadamente o tamanho de uma borracha de lápis, e pode estar em qualquer lugar de um trecho de 1.400 quilômetros. Pode até ter se alojado no pneu de um carro e agora estar a muitos quilômetros de distância.
As autoridades alertam: se alguém encontrá-la deve manter distância e imediatamente acionar os serviços de emergência, devido ao perigo.
Por que a cápsula é radioativa?
A cápsula de prata de seis milímetros por oito milímetros contém césio-137, material radioativo que emite raios gama, radiação ionizante muito perigosa, que pode penetrar profundamente no corpo. O césio-137 foi o responsável pela maior tragédia radioativa do Brasil, em 1987, em Goiânia. Muitos anos depois, quem teve contato com a substância ainda vive as consequências.
Os raios gama são o tipo mais energético e perigoso de radiação ionizante, que pode retirar elétrons dos átomos de organismos vivos, danificando células e DNA. A quantidade de radiação que a cápsula emite é de 19 gigabecquerels, o equivalente a cerca de dez raios-X por hora.
Esse tipo de cápsula é comumente usada na indústria de mineração em medidores de densidade de minérios de ferro, fundamentais para executar operações de mineração com mais eficiência: a radiação vinda do medidor é absorvida pelo material proporcionalmente à sua densidade.
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Como a cápsula foi perdida?
A cápsula radioativa provavelmente caiu do caminhão que a transportava ao longo de um trecho de 1.400 quilômetros de estrada da mina Gudai-Darri da Rio Tinto, ao norte de Newman, na região de Pilbara, até Perth.
O desaparecimento foi percebido numa inspeção em 25 de janeiro. A cápsula fora vista pela última vez em 12 de janeiro.
As autoridades acreditam que as vibrações do caminhão soltaram parafusos e porcas, fazendo a cápsula radioativa do medidor cair e escorregar por uma fresta no caminhão.
Quão perigosa é a cápsula?
O risco para o público em geral é "relativamente baixo", afimema as autoridades. Mas, caso alguém veja algo parecido ao longo da estrada, não deve tocar. Em vez disso, deve se afastar imediatamente, avisar as autoridades e não ficar a menos de cinco metros da cápsula.
Embora a cápsula de prata seja muito pequena, devido à radiação gama que emite pode representar alguns riscos graves para a saúde, dependendo da proximidade e da duração da exposição. Em geral, quanto mais próxima se está de uma fonte de radiação, maior a dose que se recebe e maior o risco de efeitos nocivos.
Felizmente, a cápsula "não pode ser usada como arma", de acordo com um comunicado da Western Australia Health.
Quais são os riscos para a saúde?
A exposição à cápsula pode causar queimaduras ou síndrome aguda de radiação. Queimaduras de radiação podem se apresentar como vermelhidão ou irritação na pele (como uma queimadura solar), mas também causar bolhas ou sintomas piores, em casos mais graves.
Doença de radiação ou síndrome aguda de radiação (ARS, na sigla em inglês) é causada pela exposição a altos níveis de radiação ionizante, como os raios gama.
Os sintomas variam dependendo da dose e da duração da exposição, incluindo náusea, vômito, diarreia, fadiga, irritação da pele e diminuição do número de glóbulos brancos, o que pode enfraquecer o sistema imunológico. Em casos mais graves, pode levar à falência de órgãos e até a morte.
A exposição prolongada aos raios gama pode aumentar o risco de certos tipos de câncer, como de tireoide ou leucemia.
Como está sendo realizada a busca?
O ponto positivo é que as equipes de busca têm os dados do GPS do caminhão, então sabem exatamente onde procurar a cápsula. O ponto negativo é que o trecho tem 1.400 quilômetros.
Encontrar uma cápsula de oito milímetros num perímetro tão grande parece quase impossível. Ainda assim, as autoridades do oeste da Austrália tentam resgatá-la, dirigindo lentamente com detectores de radiação ao longo da estarda Great Northern, de acordo com um alerta emitido pelo Departamento de Bombeiros e Serviços de Emergência (DFES).
O que é césio-137?
O césio-137 é um isótopo radioativo do elemento químico césio. Os isótopos têm o mesmo número de prótons, mas um número de nêutrons em seu núcleo diferente daquele do elemento original.
O isótopo radioativo encontrado na cápsula é um subproduto muito comum da divisão de elementos mais pesados como o urânio, durante a fissão nuclear, que é o princípio de funcionamento dos reatores nucleares. Também é usado nas radioterapias para tratamento de câncer.
O césio-137 tem uma meia-vida de cerca de 30 anos, ou seja: após esse prazo, metade do isótopo terá se desintegrado, liberando sobretudo radiação gama no processo.
Cronologia do acidente com Césio-137 em Goiânia
Pior acidente radiológico da história deixou 249 pessoas com contaminação significativa e seis mil toneladas de lixo radioativo. Veja a cronologia do caso, cujos resíduos ainda emitirão radiação pelos próximos 300 anos.
Foto: DW/N. Pontes
O começo nas ruínas
As versões sobre o acidente têm algumas variações. Segundo relatos e um relatório da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA), dois catadores encontraram em setembro de 1987 um aparelho usado em radioterapia abandonado desde 1985 no antigo prédio do Instituto Goiano de Radioterapia. Sem saber do perigo, Wagner Pereira e Roberto Alves levam o objeto na esperança de ganhar algum dinheiro.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Transporte até o ferro-velho
Entre 10 e 13 de setembro de 1987, Wagner e Roberto transportam o equipamento, que pesava mais de 200 quilos, num carrinho de mão. A peça com a fonte radioativa, contendo 19 gramas de césio-137, é levada até o ferro-velho de Roberto, na rua 57. Ele e os funcionários passam alguns dias tentando desmantelar o equipamento.
Foto: CRCN-CO/CNEN
O rompimento na rua 57
Em 13 de setembro de 1987, o cabeçote é rompido. No seu interior, os funcionários do ferro-velho encontram um recipiente de metal. Dentro da "marmita", como chamaram o recipiente, estava armazenado césio-137, que já começava a espalhar contaminação. No mesmo dia, Roberto e Wagner têm náusea e vômitos, mas o diagnóstico é de intoxicação alimentar.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Fascínio pelo brilho azul
Em 18 de setembro, a cápsula é vendida para o ferro-velho de Devair Alves Ferreira. Ele se encanta pelo brilho azul do pó misterioso, só revelado no escuro. Na sequência, ele e a esposa, Maria Gabriela, adoecem. Recebem visitas, que são apresentadas ao césio-137 e levam fragmentos do material para casa. No recorte de jornal (foto), Devair aparece na janela de um hospital em Goiânia.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Salvo pela falta de brilho
Odesson Alves Ferreira visitou o irmão Devair, já doente. Apresentado ao material misterioso, ele colocou uma pequena fração na palma da mão esquerda, esfregou com o indicador direito, mas não se interessou. "Tive sorte porque ainda era dia, não vi o tal brilho encantador", conta. Ele ficou meses internado, perdeu parte do dedo e fez uma cirurgia experimental para curar a ferida na mão.
Foto: DW/N. Pontes
O primeiro alerta
Desconfiada, Maria Gabriela associa a doença à cápsula. Com a ajuda de um funcionário do ferro-velho, ela transporta o objeto num saco de estopa até a Vigilância Sanitária – de ônibus. Aos funcionários, diz que aquilo "estava matando" sua família. Era 28 de setembro: o césio-137 já contaminava e emitia radiação há 16 dias.
Foto: CRCN-CO/CNEN
A descoberta do acidente radioativo
Em posse de um cintilômetro (similar ao da foto) o físico Walter Mendes vai até o prédio da Vigilância Sanitária verificar a peça suspeita. Ele visitava a cidade e soube dos pacientes doentes que, a essa altura, já começavam a apresentar lesões na pele. Quando se aproxima do saco de estopa, o apontador do cintilômetro dispara. Era 29 de setembro, o acidente radioativo era oficialmente reconhecido.
Foto: DW/N. Pontes
Caçada nuclear
O físico se dirige ao ferro-velho de Devair e constata a contaminação. Com dificuldade, convence a família e vizinhos a deixarem o local. Começa então o isolamento das áreas e a caça aos focos de contaminação, já sob a liderança da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Na noite de 30 de setembro, é confirmado o césio-137 como fonte radioativa.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Tratamento às vítimas
Enquanto isso, 22 pacientes contaminados foram levados para o estádio da cidade. Os casos mais graves eram direcionados para o Hospital de Doenças Tropicais. Em 2 de outubro, seis pacientes foram transferidos em aviões da Força Aérea para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Dentre eles, o catador Wagner Mota (foto). No dia seguinte, outros quatro seguiram o mesmo destino.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Estádio como QG
A base da operação da CNEN era o estádio (foto). Mais de 112 mil pessoas foram examinadas no local, 249 apresentaram uma taxa significativa de contaminação. Eles tomavam seguidos banhos e, em alguns casos, recebiam doses de azul da Prússia, testado em 1986 depois do acidente nuclear de Chernobyl. O medicamento eliminava o césio pelas fezes e urina.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Destruição e descontaminação
Paralelamente, o trabalho de descontaminação dos focos era conduzido. Casas inteiras foram destruídas, memórias pessoais guardadas em fotos,
documentos e objetos também viraram lixo radioativo. Animais de estimação e plantas foram eliminados. Tudo era colocado em latões de metal provisoriamente, aguardando um destino adequado.
Foto: CRCN-CO/CNEN
A primeira morte
Leide das Neves, 6 anos, foi a primeira vítima a morrer, em 23 de outubro. Ela ganhou o pó brilhante do pai, Ivo Alves Ferreira, brincou com o césio e depois comeu ovo com as mãos sujas. Leide foi atingida com maior grau de contaminação. A mãe dela, dona Lourdes, quase não conseguiu enterrar a filha: a multidão que atirava pedras contra o caixão, revestido de chumbo, precisou ser contida.
Foto: DW/N. Pontes
Mais vítimas do césio
Maria Gabriela, esposa de Devair, foi a segunda vítima do césio. Em 27 de outubro, morria Israel Batista dos Santos, 22 anos. Admilson Alves, 18 anos, faleceu no dia seguinte - ambos trabalhavam no ferro-velho de Devair. Na foto, Israel aparece num jornal da época antes de ser transferido para o hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro.
Foto: CRCN-CO/CNEN
Lixo radioativo
As seis mil toneladas de lixo radioativo foram armazenados em 4.200 tambores de latão e 1.400 caixas metálicas. Todo o trabalho de descontaminação durou de outubro de 1987 a janeiro do ano seguinte. A escolha do local do depósito também foi polêmica: a pequena Abadia de Goiás, que se emancipou após o episódio, recebeu todo o conteúdo.
Foto: CNEN
Visão do depósito
O trabalho de construção do depósito, erguido no terreno de uma mineradora, levou 10 anos. Até que a obra fosse finalizada, os resíduos ficavam sobre um piso de concreto, cobertos por lona. Da torre de observação, é possível avistar dois montes cobertos por grama. É onde ficam os resíduos, que vão emitir radiação pelos próximos 300 anos.
Foto: DW/N. Pontes
Visitas e monitoramento
O depósito, onde fica a sede da CNEN, se transformou numa espécie de museu do césio-137. Cerca de 6 mil estudantes visitam o local anualmente. Um aparelho instalado recentemente pela IAEA mede a radiação em tempo real e envia os dados para a agência, na Áustria. Os níveis estão dentro da normalidade, diz a CNEN.
Foto: DW/N. Pontes
Depois da descontaminação
O terreno onde funcionava o ferro-velho de Ivo, pai de Leide, foi descontaminado e não sofreu interdição. Atualmente, há moradores no local (foto). No antigo ferro-velho de Devair nada foi construído. Já o terreno da rua 57, onde a cápsula foi rompida, foi desapropriado. A cada 3 meses, técnicos fazem medições e coletas nos locais, que estão livres de contaminação, afirma a CNEN.
Foto: DW/N. Pontes
Brigas na Justiça
Funcionários do Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa) atuaram na descontaminação. Dos chefes, receberam a informação de que se tratava de um "vazamento de gás". Foram reconhecidos como radioacidentados apenas em 2002, pela ação do Ministério Publico Estadual. João de Barros, presidente da Associação dos Contaminados e Irradiados do Césio 137, mostra fotos de colegas que adoeceram.
Foto: DW/N. Pontes
Lista de compra
Muitos funcionários do antigo Crisa ainda brigam na Justiça pela pensão federal e acesso gratuito aos remédios. Eles atuaram como motoristas, ajudantes de serviços gerais, mecânicos de máquinas pesadas. Antônio de Abreu Caldera (primeiro à direita), 71 anos, era comprador e se lembra dos produtos que entregava nos canteiros: lonas, motosserras, enxadas, foices.
Foto: DW/N. Pontes
Vítimas invisíveis
Ilza Santos ainda é invisível para o Estado. Os dois filhos dela, Leomar, morto em 1999, e Gilmar, morto em 2005, eram catadores e trabalhavam no ferro-velho de Ivo. Nunca foram reconhecidos como vítimas. À época do acidente, técnicos da CNEN levaram sofá, geladeira, roupas e outros objetos – Ilza jamais foi indenizada. Na foto, ela mostra as panelas que os filhos catadores traziam da rua.