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Os potenciais e riscos do novo marco do saneamento

Bruno Lupion de Brasília
26 de junho de 2020

No país em que 100 milhões vivem sem serviço de esgoto e 35 milhões sem água, universalizar saneamento é urgente. Lei para atrair recursos não estatais avança em meio à pandemia, mas é criticada como privatista demais.

Esgoto invade a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro
Poluição invade a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro: 100 milhões de brasileiros ainda vivem sem serviço de esgotoFoto: picture-alliance/dpa/M. Sayao

Cerca de 100 milhões de brasileiros ainda vivem sem serviço de esgoto, quase metade da população do país, e 35 milhões sem água encanada, dos quais 12 milhões em regiões metropolitanas. Uma condição precária que eleva a mortalidade infantil por diarreia, dificulta a higiene necessária para evitar contaminação por doenças como a covid-19 e prejudica a inserção econômica desses moradores.

O governo federal e entidades do setor estimam ser necessários cerca de R$ 700 bilhões para universalizar o acesso a esgoto e água encanada, montante próximo ao gasto com Previdência neste ano, maior despesa do Orçamento federal. Diante da baixa capacidade de investimento do estado e do teto de gastos, que limita o crescimento das despesas públicas, começou a tomar corpo há dois anos no Congresso uma proposta para atrair recursos privados para o saneamento, aprovada no Senado na quarta-feira (24/06).

O novo marco legal do saneamento, que havia passado pela Câmara em 2019 e agora depende da sanção do presidente Jair Bolsonaro, ganhou impulso na pandemia ao prometer resolver o problema do acesso à água — cuja falta em diversas favelas dificultou a adoção de medidas de higiene para evitar a covid-19 — e gerar milhares de empregos a partir do ano que vem.

O texto não foi aprovado sem contestação. Treze senadores votaram contra o projeto, incluindo toda a bancada do PT. O deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL do Rio, foi ao Twitter lembrar que cidades europeias que concederam o serviço à iniciativa privada, como Paris e Berlim, voltaram atrás recentemente. E há ceticismo sobre a viabilidade da expansão da rede de esgoto por operadores privados em favelas adensadas, que dependeria de obras de reurbanização.

Como o saneamento funciona hoje

Desde a Constituição de 1988, a administração dos serviços de água e esgoto é responsabilidade dos municípios, que podem criar estatais municipais para operar o serviço ou concedê-lo a empresas públicas estaduais ou companhias privadas.

A maior parte dos brasileiros (72%) é atendida por companhias públicas estaduais, que estruturavam a política sanitária da ditadura militar. Após a redemocratização, conceder o saneamento a uma dessas empresas estaduais passou a ser a solução mais fácil para a grande maioria dos municípios. Algumas dessas empresas, com a Sabesp, de São Paulo, hoje têm ações negociadas em bolsa e distribuem lucros a acionistas. As autarquias municipais de saneamento atendem 22% dos brasileiros, e apenas 6% da população moram em cidades que concederam o serviço a uma empresa privada.

No governo Michel Temer, a privatização de estatais do setor de saneamento passou a ser uma das condições para estados em dificuldades financeiras receberem socorro do governo federal. É o caso do Rio de Janeiro, cuja estatal de saneamento, a Cedae, pode ser privatizada neste ano.

Como fica com o novo marco

O texto aprovado no Senado altera três pontos importantes do regime de saneamento do país. O primeiro é centralizar na esfera federal a definição de regras e metas sobre a concessão dos serviços de água e esgoto, por meio da Agência Nacional de Águas (ANA). Hoje, essas regras estão fragmentadas em diversas agências estaduais e municipais. Uma das metas estabelecidas pelo marco é universalizar o serviço sanitário, levando água potável encanada a 99% da população e a rede de colerta e tratamento de esgoto a 90%.

Os municípios também serão obrigados a fazer licitações, aberta a concorrentes públicos e privados, para conceder seu serviço de água e esgoto. Atualmente, cidades que decidem conceder a operação do saneamento em seu território à empresa pública do estado não precisam fazer licitação. Haverá um período de transição e, até março de 2022, contratos entre municípios e empresas públicas estaduais que comprovarem terem capacidade financeira para cumprir a meta de universalização poderão ser renovados por mais 30 anos.

Por fim, as cidades poderão aderir a blocos de municípios, que serão criados para aumentar o número de habitantes sob uma mesma licitação e viabilizar o serviço em áreas menos lucrativas vinculado a outras de maior potencial econômico.

O impacto do novo marco na expansão da rede e na criação de novos empregos não será imediato e deve levar cerca de dois anos, afirma à DW Brasil Teresa Vernaglia, presidente da BRK Ambiental, maior empresa privada de saneamento em atuação no país.

Ela afirma que a ANA ainda terá que se estruturar para cumprir suas novas atribuições e que faltam regulamentações por parte do governo, como a definição de como será aferida a capacidade financeira das empresas estaduais. Além disso, projetos para atrair os investidores ainda precisarão ser elaborados.

Promessa de mais eficiência e expansão da rede

Um argumento central dos defensores do novo marco é que a iniciativa privada conseguirá reduzir os custos da prestação do serviço e ampliar a rede com mais velocidade. "Quando você transfere a operação para a empresa privada você ganha em eficiência, não porque o Estado não saiba fazer uma boa gestão, mas porque as regras às quais o Estado está vinculado não permitem a mesma agilidade e flexibilidade do concessionário privado”, afirma a advogada Patricia Pessoa Valente, pesquisadora do Centro de Regulação e Democracia do Insper.

Questionada se a concessão à iniciativa privada elevará as tarifas cobradas do consumidor, Valente diz que isso é "possível”, a depender de cada contrato de concessão, mas afirma que criticar o novo modelo com base na tarifa "desconsidera os benefícios da concessão para o usuário, que vai ter a garantia da concessão do serviço e para quem reclamar, e o poder público vai ter de quem cobrar”.

Para Vernaglia, o valor da tarifa, isolado, também não seria o melhor indicador para discutir a concessão do saneamento, mas ela diz que, na maioria dos 12 estados onde a BRK Ambiental opera, o valor cobrado do consumidor é inferior ao praticado pelas empresas públicas. "Tarifa cara é aquela que você paga e não tem o serviço”, diz.

Ela afirma que a tarifa de água e esgoto cobrada no Brasil é uma das mais baixas no mundo, e que, "quando se compara o custo da água com os de todas as outras necessidades de uma família, água e esgoto não representa 1% ou 2%”.

Além do risco de aumento da tarifa, críticos do novo marco do saneamento também mencionam a experiência de cidades do mundo que reestatizaram seus serviços nos últimos anos. Um estudo do Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas holandês, identificou 267 casos em que o poder público concedeu o serviço sanitário à iniciativa e depois voltou atrás, de 2000 a 2017.

Para Vernaglia, a comparação com casos como o de Paris ou Berlim, que reestetizaram seus serviços sanitários, é inadequada porque envolve cidades que já concluíram a universalização da sua rede de água e esgoto, o que não é o caso do Brasil, que necessita de investimentos para a ampliação da rede.

"Temos mais de 2,5 mil municípios que têm contratos com as empresas estaduais, e continuam sem ter esgoto. Hoje não há condição financeira do estado para fazer frente a esse investimento, então é o privado que vai ter que fazer. E para o privado fazer, tem que ter uma nova regulamentação, que é o que foi aprovado ontem”, diz

Críticas à predominância privada

Alceu Guérios Bittencourt, diretor nacional da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, recebeu o novo marco com ressalvas. Ele afirma que o texto retira a autonomia dos municípios para decidir sobre o serviço de saneamento, ao proibi-los de contratar livremente as empresas públicas estaduais e ao estabelecer que as cidades que não aderirem aos blocos regionais perderão acesso a recursos federais para o setor. Por esse motivo, vê risco que esses itens sofram contestação judicial.

Bittencourt afirma que sua entidade não é contra a atuação do setor privado setor, mas que o marco aprovado pende excessivamente para esse lado. "Há bons casos de operação por operadores privados, assim como casos em que não foram bem. E não é verdade que nada funciona [no setor público], há companhias estaduais eficientes e forçar a contratação privada pode ser um retrocesso”, diz.

Ele afirma que um obstáculo para que as concessões privadas tenham sucesso na ampliação da rede é a configuração urbana das áreas em que falta esgoto e água encanada, como em favelas. Em alguns desses locais, diz, é impossível implementar o serviço de esgoto sem que a favela seja urbanizada, o que demandaria uma atuação efetiva do poder público.

"Foram feitos paralelos com o setor elétrico, mas ele é de titularidade federal e, fisicamente, a eletricidade é distribuída de modo mais simples. Há áreas urbanas extremamente densas, em algumas você consegue entrar com a rede [sanitária], em outras não consegue”, afirma

Por esse motivo, diz, é mais fácil encontrar casos de sucesso de operação privada do saneamento em cidades de renda mais alta e com estrutura urbana mais organizada. "Nas áreas de periferia das grandes cidades, isso não vai se resolver sem a participação dos municípios e dos estados. [A concessão] foi acionada como uma solução mágica, mas vamos ter problemas na sequência”, diz.

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