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Os vazamentos do Intercept e a liberdade de imprensa

Karina Gomes
10 de julho de 2019

Divulgação de diálogos entre Moro e procuradores gerou críticas e ameaças contra jornalistas. Entidades que representam a classe e especialistas alertam para tentativa de intimidação e violação da liberdade de imprensa.

Glenn Greenwald
Glenn Greenwald, editor e fundador do portal The Intercept BrasilFoto: picture-alliance/dpa

Iniciada há pouco mais de um mês, a série de reportagens do portal The Intercept Brasil sobre supostas conversas entre o então juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e procuradores da Operação Lava Jato provocou discussões sobre o papel do jornalismo e a liberdade de imprensa.

A Constituição Federal assegura a plena liberdade de informação jornalística, que não pode sofrer "qualquer restrição" e também assegura "a todos o acesso à informação".

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros complementa que é dever do jornalista divulgar informações precisas e corretas, além de todos os fatos que sejam de interesse público. E a Declaração Universal dos Direitos Humanos  garante o direito de "procurar, receber e transmitir informações por quaisquer meios". 

"O jornalismo é imprescindível para que haja, de fato, democracia, porque somente cidadãos e cidadãs informados/as podem constituir juízo sobre as questões relevantes da sociedade e, assim, exercer plenamente sua cidadania", afirma Maria José Braga, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). 

"O jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que seja publicado", diz uma frase atribuída ao escritor inglês George Orwell. Braga aponta que a liberdade de imprensa é ameaçada por "atores que não querem que a informação jornalística seja difundida, porque querem que seus interesses pessoais, ou de grupos, prevaleçam sobre o interesse de toda a sociedade".

Os recentes vazamentos de mensagens supostamente trocadas pelo Telegram entre o ex-juiz da Operação Lava Jato e atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol gerou intensas críticas ao trabalho da imprensa.

O editor e fundador do Intercept Glenn Greenwald chegou a ser convocado a dar explicações na Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Ele e sua família sofreram ataques virtuais e foram até ameaçados de morte. Várias entidades jornalísticas nacionais e internacionais, incluindo a Repórter sem Fronteiras e o Comitê de Proteção dos Jornalistas, denunciaram tentativas de intimidação do jornalista.   

"A liberdade de imprensa está gravemente sob ataque. No Brasil, não existe uma cultura muito enraizada na sociedade de defesa da liberdade de imprensa. Com governos autoritários, como o atual, fica mais fácil ainda haver manifestações de intolerância diante da revelação de informações que não são convenientes para os que têm poder", diz o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, professor do Insper. 

O Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro e a Fenaj defendem que o site The Intercept Brasil e a equipe coordenada por Greenwald não fizeram nada mais do que colocar em prática o artigo 1º do Código de Ética dos Jornalistas brasileiro. Segundo o texto, "o acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse".

Sigilo da fonte

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) criticou uma postagem no Twitter em que Moro classifica o Intercept de um "site aliado a hackers criminosos". No dia 30 de junho, quando foram realizados protestos em apoio a Moro e à Operação Lava Jato, o ministro publicou no Twitter que "hackers, criminosos ou editores maliciosos não alterarão verdades fundamentais".

Em duas audiências, no Câmara dos Deputados e no Senado, Moro insistiu que as reportagens que têm sido publicadas sobre a sua conduta como juiz são "sensacionalistas". 

Uma das principais críticas de Moro foi a não revelação da fonte que entregou os diálogos ao Intercept no que classificou de "ato criminoso". No entanto, o Código de Ética dos Jornalistas diz, no artigo 8º, que "sempre que considerar correto e necessário, o jornalista resguardará a origem e a identidade de suas fontes de informação".

O sigilo da fonte está garantido no artigo 5º da Constituição Federal. O inciso XIV diz que "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". 

"Todo cidadão tem direito à sua privacidade como direito fundamental, e o jornalista tem um direito adicional, que é o de preservar a identidade de suas fontes no exercício da sua profissão. Esse direito é assegurado ao jornalista para garantir-lhe os meios para o livre exercício da sua atividade, mas não se trata de uma proteção ao profissional; é uma proteção à fonte", explica Braga.

A presidente da Fenaj argumenta que o sigilo da fonte é "uma exigência para o exercício da liberdade de imprensa, porque possibilita que informações de interesse público cheguem ao público, mesmo contra a vontade de poderosos". "A fonte fica resguardada de pressões ou mesmo coações de quem possa se sentir atingido pela informação", acrescenta. 

A Abraji afirmou em nota que Moro "erra ao insinuar que um veículo é cúmplice de crime ao divulgar informações de interesse público". "Jornalistas e veículos não são responsáveis pela forma como a fonte obtém as informações", afirma a entidade.

"Tentativas de intimidar e silenciar um veículo são ações típicas de contextos autoritários e não podem ser toleradas na democracia que rege o país", acrescenta a nota.

Suposta investigação

Uma suposta investigação sobre as movimentações financeiras de Greenwald gerou preocupação de entidades nos últimos dias. O Ministério da Economia foi notificado nesta segunda-feira (08/07) pelo Tribunal de Contas da União (TCU) para esclarecer se o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) estava conduzindo as investigações.

Nesta terça-feira, o Coaf negou que a Polícia Federal tenha solicitado um relatório sobre as movimentações financeiras de Greenwald. O órgão, no entanto, não deixou claro se está produzindo, por iniciativa própria, uma Relatório de Inteligência Financeira (RIF) sobre o jornalista.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou não ter conhecimento de uma investigação contra Greenwald e que não determinou "nenhuma providência por parte do Coaf", ressaltando que o órgão exerce suas atribuições "com autonomia técnica".

Em ofício enviado ao Coaf, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) havia manifestado preocupação com as informações divulgadas na semana passada, ressaltando que "a manutenção da democracia só é possível com a possibilidade de a mídia atuar livremente".

Yochai Benkler, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, diz que a suposta tentativa de intimidar Greenwald e outros jornalistas é uma violação grosseira dos princípios mais básicos da liberdade de imprensa. "Parece ser um esforço flagrante em reprimir a imprensa por desempenhar sua função central", afirma.

"A tentativa de intimidar os jornalistas e o jornalismo investigativo e criar um efeito arrepiante vai contra os princípios da liberdade de imprensa consagrados na Constituição brasileira", diz a consultora americana de desenvolvimento de mídia Michelle Betz.  

A Fundação Liberdade da Imprensa, com sede nos EUA, disse que supostas investigações protagonizadas por Moro, que é o atual chefe da Polícia Federal, configurariam abuso de autoridade.

"Pedimos que o governo brasileiro suspenda imediatamente as suas táticas de intimidação e se concentre em investigar o que de fato merece ser investigado: o conteúdo publicado pelo portal The Intercept Brasil", disse em nota o diretor-executivo da entidade, Trevor Timm. 

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