Otan: atuação vacilante além das fronteiras ocidentais
28 de junho de 2004Uma década e meia após o fim da Guerra Fria, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) enfrenta dois problemas: o primeiro é legitimar sua própria existência. O segundo, conseqüência (ou causa) do primeiro, é assumir missões militares para além das fronteiras ocidentais. E isso, para valer.
"As contribuições arrastadas dos europeus no Afeganistão acabaram dando razão aos céticos de Washington", diz Daniel Keohane, especialista em questões de defesa do Centro Londrino para Reformas Européias ao diário suíço Neue Zürcher Zeitung.
Belos discursos, poucas verbas
O Afeganistão é visto como um teste para a (in)capacidade da Otan. Assumir o comando das mãos da Isaf (força de segurança da ONU), em 2003, foi para a aliança a primeira experiência além dos limites euroamericanos. O secretário-geral Jaap de Hoop Scheffer não poupa palavras ao descrever seu espanto frente à organização que coordena, afirmando publicamente não entender como os 26 países-membros da aliança podem assumir oficialmente missões, sem destinar verbas que viabilizem a concretização das mesmas.
Segundo De Hoop Scheffer, até mesmo para conseguir a liberação de um helicóptero, um avião para transportar medicamentos ou uma unidade hospitalar, é preciso "passar o chapéu, mendigando de cidade em cidade". Quem conhece os bastidores da Otan garante que a situação chega, às vezes, a ser grotesca.
Durante o encontro de cúpula, que começa nesta segunda-feira (28), em Istambul, o holandês De Hoop Scheffer pretende dar um puxão de orelha coletivo, acentuando que a aliança militar precisa trabalhar de forma mais rápida e eficiente no Afeganistão.
Credibilidade em jogo
"Não posso assegurar que iremos cumprir nossas promessas no país, pois o caminho para isso tem sido complicado. Não é fácil transformar declarações políticas em ações concretas. Não é exatamente ideal o fato de que o secretário-geral da Otan tenha que passar o chapéu mendigando aqui e ali, para encontrar um helicóptero ou um avião", desabafa De Hoop Scheffer. Uma situação que, segundo ele, coloca em jogo a própria credibilidade da aliança militar.
Em carta aberta aos participantes da cúpula de Istambul, 50 organizações de ajuda humanitária conclamam a aliança a preencher as lacunas de segurança em diversas regiões do planeta. A Human Rights Watch, por exemplo, afirma que o "vai-não-vai" da Otan teria deixado a população afegã frustrada em relação à atuação das forças ocidentais. Diante de uma atuação tão vacilante no Afeganistão, fica difícil acreditar que a aliança terá quaisquer condições (ou vontade) de interferir em questões envolvendo o Iraque.
Berlim e Paris: auxílio apenas a distância
Embora o presidente norte-americano, George W. Bush, passe a imagem de "decepcionado" frente à decisão de países-membros da Otan – como Alemanha e França – de não enviarem tropas ao Iraque, Washington parece já ter aceito que não poderá mesmo contar com um envolvimento dos parceiros europeus in loco.
A única promessa mantida por Berlim e Paris continua sendo a de contribuir na formação e capacitação de forças de segurança iraquianas, porém fora do país. Segundo De Hoop Scheffer, o pedido do governo de transição foi apenas esse: "A carta do primeiro-ministro diz respeito à formação de tropas e auxílio técnico. A isso, respondemos. A questões que não nos foram propostas, não damos resposta".
Em Istambul, estarão em pauta também questões operacionais. Há cerca de um ano, por exemplo, a Otan havia prometido criar grupos civis-militares de reconstrução civil, primeiro no norte e posteriormente em outras regiões do Afeganistão.
Estes teriam como tarefa primordial dar estabilidade a determinadas áreas que estão longe de Cabul, único ponto fixo da Isaf no país. Segundo seu secretário-geral, a Otan, no entanto, não conseguiu dispor nem de pessoal nem de aparato técnico para que a prometida missão fosse realmente levada a cabo.
"Amiguinhos europeus"
É provável que, aparentemente, a reunião em Istambul venha a ser harmônica. A portas fechadas, no entanto, acredita-se que os parceiros europeus devam alfinetar os EUA, mais uma vez, pela conduta em relação aos prisioneiros iraquianos. A bandeira da Otan, pelo menos por enquanto, não deverá ser hasteada em Bagdá.
Mesmo que Bush insista nisso em Istambul, é praticamente certo que o premiê alemão Gerhard Schröder e o presidente francês Jacques Chirac não arredem o pé. A retórica, no entanto, faz parte do show. Em tempos de campanha eleitoral, importa ao candidato Bush mostrar a seus eleitores em casa que, apesar das dissonâncias durante a guerra do Iraque, os europeus ainda fazem parte de seu clube de amiguinhos.
O que importa, segundo De Hoop Scheffer, é que os 26 membros da Otan, a partir de agora, parem de vacilar na hora de cumprir o que prometeram. Para isso, o secretário-geral da aliança pretende sugerir em Istambul reformas tanto no planejamento, quanto no financiamento das missões da organização mundo afora. Para evitar, como ele próprio diz, "ter que passar o chapéu mendigando daqui e dali".