Fundada na Guerra Fria, organização transatlântica enfrenta hoje questionamentos de Trump, para quem EUA pagam a conta para outros membros terem segurança. Alemanha está na mira das críticas.
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A Otan está na Europa para "manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães embaixo", disse certa vez o primeiro secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte, o britânico Hastings Ismay, numa roda informal.
A afirmação correspondia a um ponto de vista muito comum nos primeiros anos da aliança militar: a Segunda Guerra Mundial, iniciada pela Alemanha, havia acabado há poucos anos; a antiga União Soviética controlava toda a metade oriental da Europa, inclusive o leste alemão; e os americanos inicialmente ponderavam se deveriam deixar o Velho Continente entregue ao próprio destino e, assim, provavelmente a uma influência ainda maior de Moscou.
A Alemanha, no entanto, não foi mantida "embaixo" por muito tempo, pelo menos o lado ocidental: a República Federal da Alemanha (RFA) logo conquistou tanta confiança que, já em 1955, tornou-se membro da Otan, enquanto a antiga República Democrática Alemã (RDA) se uniu ao antigo Pacto de Varsóvia.
A Guerra Fria, na qual o equilíbrio era garantido pelo poder mútuo de dissuasão, durou cerca de 40 anos. A situação era tensa, mas estável. Tendo em vista as negociações de desarmamento com a União Soviética em 1988, era importante para o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, dizer que Washington sempre teve em vista os interesses dos europeus: "Para mim, manter uma parceria forte e saudável entre a América do Norte e a Europa está em primeiro lugar. Jamais iremos sacrificar os interesses dessa parceria por causa de qualquer acordo com a União Soviética".
Em 1989/90 a situação mudou radicalmente. O comunismo entrou em colapso, a União Soviética se desintegrou. As potências vitoriosas da Segunda Guerra Mundial concordaram com a Alemanha reunificada como membro da Otan. A grande reviravolta europeia também significou que, ao longo de alguns anos, a maioria dos antigos países do Pacto de Varsóvia, como a Polônia, a Romênia ou os países bálticos, se aliasse à Otan.
Atualmente vê-se o retorno a uma situação semelhante a da Guerra Fria. A Rússia afirma ver-se ameaçada pela expansão da Otan para o Leste e está se armando. Isso retarda uma nova ampliação da aliança atlântica. A Geórgia e a Ucrânia, por exemplo, não devem nutrir muitas esperanças de adesão, já que a aliança militar não quer trazer novos conflitos para dentro de casa.
E conflitos não faltam para a Otan. Desde a década de 1990, ela está intervindo cada vez mais fora do território da aliança em regiões de crise em todo o mundo. Na Alemanha, marcada pela culpa em relação ao passado nazista, isso levou inicialmente a discussões acaloradas, mas hoje o país está envolvido numa série de missões estrangeiras, por exemplo, nos Bálcãs e no Afeganistão.
Em seus 70 anos de história, somente uma vez a Otan evocou a cláusula de defesa mútua para defender coletivamente um membro atacado. Isso aconteceu depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA. Mas as consequências desencadearam uma dura briga, que dividiu por anos a aliança militar.
Desde que o presidente Donald Trump assumiu o poder, há dois anos, a Otan está de novo sob pressão. Trump questionou repetidamente o sentido da aliança militar e a obrigação de apoio mútuo.
Em 2018, ele questionou por que os EUA deveriam defender um pequeno Estado-membro, como Montenegro, e arriscar uma "terceira guerra mundial". Ele também destacou que a proteção americana deveria existir apenas para aqueles que pagam o suficiente. Repetidamente, Trump acusou especialmente a Alemanha de gastar muito pouco em defesa.
Na recente cúpula da Otan em 2018, o presidente americano suavizou a sua escolha de palavras, mas manteve a queixa de que os EUA estariam sendo explorados: "Estamos pagando demais para o orçamento da Otan. A aliança é muito importante, mas ela está ajudando mais a Europa do que a nós."
Na mesma cúpula, a chanceler federal Angela Merkel rebateu, dizendo que a Alemanha deve muito à aliança atlântica, mas também faz muito pela Otan. "Nós contribuímos com o segundo maior contingente de tropas. Colocamos a maior parte de nossas capacidades militares a serviço da Otan. E ainda estamos fortemente envolvidos no Afeganistão, e assim representamos também os interesses dos EUA."
Desde uma cúpula em 2014, o objetivo oficial da Otan é aumentar os gastos com a defesa "na direção" de 2% do respectivo Produto Interno Bruto (PIB) até 2024. Em 2018, os EUA gastaram 3,39%. Poucos membros europeus da Otan alcançaram a meta de 2% no ano passado; a Alemanha, apenas 1,23%.
Também no mais recente orçamento público alemão, o objetivo está longe de ser atingido. Merkel prometeu 1,5% até 2024, Trump exige "pelo menos" 2%. O Partido Social-Democrata (SPD), que faz parte da coalizão no poder em Berlim, pressiona para conter os gastos de defesa, em linha com a tradição antimilitarista da Alemanha no pós-Gerra.
A meta de 2,0% não deve ser tratada como um "fetiche", disse o porta-voz de política externa do SPD, Nils Schmid. "A questão decisiva é ampliarmos as capacidades militares, e estamos fazendo isso." A luta, como se vê, continua.
O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, alertou recentemente: "Não está escrito na pedra que a ligação transatlântica durará para sempre". Isso pode ser entendido mais como um incentivo a Berlim. Em todo caso, Stoltenberg alimenta a esperança ao se referir ao passado: "Já tivemos muitas diferenças de opinião na história da Otan, e sempre as superamos porque, no final, todos concordamos que a América do Norte e a Europa juntas são mais seguras".
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Há 20 anos, após o 11 de Setembro, os EUA enviavam seus primeiros soldados ao país. Reveja os principais acontecimentos desde então: da operação Liberdade Duradoura à retomada do país pelos fundamentalistas do Talibã.
Foto: Evan Vucci/AP Photo/picture alliance
Operação Liberdade Duradoura
Em outubro de 2001, menos de um mês após aos ataques de 11 de Setembro, o presidente George W. Bush lança no Afeganistão a operação Liberdade Duradoura, depois que o regime Talibã se recusa a entregar Osama bin Laden. Em semanas, os americanos derrubam o Talibã, que ocupava o poder desde 1996. Cerca de mil soldados são enviados ao país em novembro, aumentando para 10 mil um ano depois.
Foto: picture-alliance/DoD/Newscom/US Army Photo
Talibã se reagrupa
A invasão do Iraque em 2003 se torna a maior preocupação dos EUA e desvia a atenção do Afeganistão. O Talibã e outros grupos islamistas se reagrupam em seus redutos no sul e leste do Afeganistão. Em 2008, Bush concorda em enviar soldados adicionais ao país em meio a pedidos por uma estratégia efetiva contra o Talibã. Em meados de 2008, há 48.500 soldados americanos no país.
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Obama é eleito
Em sua campanha, Barack Obama promete encerrar as guerras no Iraque e no Afeganistão. Mas nos primeiros meses de sua presidência, em 2009, há um aumento no número de soldados no Afeganistão para cerca de 68 mil. Em dezembro, o número cresce ainda mais, para 100 mil, com o objetivo de conter o Talibã e fortalecer instituições afegãs.
Foto: AP
Morte de Bin Laden
Osama bin Laden, líder da Al Qaeda que esteve por trás dos ataques de 11 de Setembro, é morto em maio de 2011 em seu esconderijo, durante uma operação de forças especiais americanas no Paquistão.
Foto: picture-alliance/dpa
Acordo com Afeganistão
O Afeganistão assina em setembro de 2014 um acordo bilateral de segurança com os EUA e texto similar com a Otan: 12.500 soldados estrangeiros, dos quais 9.800 norte-americanos, permaneceriam no país em 2015. Mas a situação de segurança piora. Em meio à ressurgência do Talibã, Obama diminui a velocidade de retirada em 2016, afirmando que 8.400 soldados permaneceriam no Afeganistão.
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Bombardeio de hospital em Kunduz
Em outubro de 2015, no auge do combate entre insurgentes islâmicos e o Exército afegão, apoiado por forças da Otan, um ataque aéreo dos EUA atinge um hospital dirigido pela organização Médicos Sem Fronteiras na província de Kunduz. O ataque deixa 42 mortos, inclusive 24 pacientes e 14 membros da ONG.
Foto: Getty Images/AFP
"Mãe de todas as bombas"
Em abril de 2017, forças americanas atingem posições do "Estado Islâmico" (EI) no Afeganistão com a maior bomba não nuclear já usada pelo país em combate, matando 96 jihadistas. Em julho, é morto o novo líder do EI no país.
Foto: Reuters/U.S. Department of Defense
"Estamos diante de um impasse"
Em fevereiro de 2017, um relatório do governo dos EUA mostra que as perdas entre as forças de segurança afegãs subiram 35% em 2016 em relação ao ano anterior. Pouco depois, o general americano à frente das forças da Otan, John Nicholson (esq., ao lado do secretário da Defesa John Mattis), alerta que precisa de mais milhares de soldados: “Acredito que estamos diante de um impasse."
Foto: Reuters/J. Ernst
Trump anuncia nova estratégia
Em 21 de agosto de 2017, o presidente Donald Trump anuncia nova estratégia para o Afeganistão, fazendo da caça a terroristas a principal prioridade. Trump não especifica um aumento do número de soldados como esperado, mas diz que os objetivos incluem "obliterar" o Estado Islâmico, "esmagar" a Al Qaeda e impedir o Talibã de dominar o Afeganistão.
Foto: picture-alliance/Pool via CNP/MediaPunch/M. Wilson
EUA negociam com rebeldes
Em julho de 2018, sob o governo do presidente Donald Trump, os EUA entram em negociação com o Talibã, sem envolver o governo afegão eleito ou os parceiros da Otan.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Photo/Qatar Ministry of Foreign Affairs
Trump cancela encontro com Talibã
Em setembro de 2019, o presidente Trump cancela na última hora uma reunião marcada em sigilo com líderes do Talibã e do Afeganistão, após o grupo islamista assumir a autoria de um ataque em Cabul que matou um soldado americano e outras 11 pessoas.
Foto: Getty Images/M. Wilson
EUA e Talibã assinam acordo de paz
Em fevereiro de 2020, sob o regime Trump, os governos dos EUA e do Afeganistão anunciam a retirada completa das tropas americanas e de outros países da Otan. O pacto assinado pelo negociador especial dos EUA para a paz, Zalmay Khalilzad, e pelo líder político talibã mulá Abdul Ghani Baradar, prevê que o número de militares estrangeiros seria reduzido gradualmente, ao longo de 14 meses.
Foto: AFP/G. Cacace
Biden anuncia retirada total das tropas
Em 14 de abril de 2021, o presidente Joe Biden comunica à população americana que a guerra mais longa do país terá fim, com as tropas dos EUA e da Otan se retirando inteiramente do Afeganistão até 11 de setembro, 20º aniversário dos ataques terroristas em Nova York.
Foto: Andrew Harnik/AFP/Getty Images
EUA e Otan iniciam retirada
EUA e Otan iniciam formalmente, em 1º de maio de 2021, a retirada de todas as suas tropas do Afeganistão. A previsão era retirar até 11 de setembro entre 2.500 e 3.500 soldados americanos e cerca de outros 7 mil soldados da Otan. Estima-se que os EUA tenham gasto mais de 2 trilhões de dólares no país, em 20 anos, de acordo com o projeto Costs of War da Universidade Brown.
Foto: Michael Kappeler/dpa/picture alliance
Americanos entregam base ao governo afegão
Em 2 de julho de 2021, tropas dos EUA partem da base aérea de Bagram, ponto focal da guerra, e entregam o local ao governo afegão. Permanecem no país asiático alguns poucos soldados, numa pequena base na capital Cabul.
Foto: Rahmat Gul/AP/picture alliance
Talibã toma capitais regionais
Aproveitando o vácuo deixado pela retirada das tropas de paz internacionais do Afeganistão, guerrilheiros do Talibã tomam, no inicio de agosto de 2021, capitais regionais como Sheberghan, Kunduz e Zaranj, num duro golpe para o governo afegão, que lutava para defender as cidades mais importantes da ofensiva do grupo extremista.
Foto: Abdullah Sahil/AP Photo/picture alliance
EUA retiram seus cidadãos do Afeganistão
Em meados de agosto, Estados Unidos e outros países começam a retirar seus cidadãos do Afeganistão, enquanto forças militares americanas se esforçam para proteger e manter funcionando o aeroporto de Cabul. Com todos os voos comerciais cancelados, milhares de afegãos invadem a pista do aeroporto desesperados, tentando embarcar em qualquer aeronave que fosse decolar.
Foto: Wakil Kohsar/AFP
Talibã ocupa palácio presidencial
O Talibã toma a capital Cabul, em 15 de agosto de 2021, dissolvendo o governo e estendendo seu controle sobre todo o Afeganistão. A capital era um dos últimos redutos ainda sob a autoridade do presidente Ashraf Ghani. Assim como ocorreu com dezenas de outras cidades, ele é tomada sem resistência efetiva das tropas governamentais. Ghani foge do país.
Foto: Zabi Karim/AP/picture alliance
Biden defende retirada das tropas
Um dia depois da tomada de Cabul, o presidente dos EUA, Joe Biden, defende a decisão de pôr fim à presença americana no Afeganistão e condena líderes e políticos afegãos que abandonaram o país, abrindo caminho para a tomada de poder pelo Talibã. Biden culpa ainda o ex-presidente Donald Trump, por ter fortalecido o grupo rebeldes e deixado os talibãs em sua melhor situação militar desde 2001.