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Pé na praia: Os Jogos Olímpicos e o castelo encantado

Thomas Fischermann
24 de maio de 2017

Quase um ano depois do evento, ainda resta um pouco da Vila Autódromo: 20 famílias vivem lá até hoje, em casas simples construídos pelo governo. Entre eles, o morador símbolo da resistência.

DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Tenho o hábito de, muitos meses após uma reportagem, voltar ao mesmo local. Não consigo fazer isso sempre neste imenso país, mas há pouco tempo fui novamente à Vila Autódromo – uma comunidade no Recreio dos Bandeirantes, no Rio. Em 2014 viviam aqui 600 famílias, mas para a prefeitura e os empreiteiros a Vila ficava muito próxima dos Jogos Olímpicos. Assim foi que, em 2016, quase toda a mídia do mundo noticiou sobre sua demolição. Ocorreu apenas poucos dias antes do começo do Jogos.

Desde então, raramente se ouviu falar a respeito. Em minha visita pude ver que ainda restou um pouco da Vila Autódromo: 20 famílias vivem lá até hoje, em bangalôs simples construídos pelo governo. Em seu entorno vi quilômetros de estacionamentos, ruas, um hotel de pouco movimento e muita terra inutilizada. Ah – e reencontrei Delmo de Oliveira. Ele mora na Vila até hoje, da mesma forma que, antigamente, em uma casa de tijolo aparente construída por ele mesmo. O senhor de 53 anos de idade quer ficar. Ele tem grandes planos para este lugar.

Para ser sincero, na época das Olimpíadas, achei que Delmo de Oliveira era um pouco maluco por não aceitar as ofertas de indenização para mudar-se de lá. Neste meu retorno reforcei, inicialmente, a minha opinião. Seu casebre agora tem dois andares e meio, é feita de hastes de metal e muito material de construção inacabado. Trepadeiras se agarram às paredes e escadas duvidosas. A casa tem algo de um castelo encantado. Ok: de um castelo encantado, coberto de cima até em embaixo com dizeres políticos sobre "exclusão étnica e social”, e "corrupção da justiça”. Durante os Jogos Olímpicos, o proprietário continuou a construir com mais ânimo ainda.

O negócio é o seguinte: quanto melhor a gente conhece Delmo de Oliveira, menos ele parece louco. Ele me contou que foi um dos primeiros assentadores aqui na Vila Autódromo, há 26 anos. Tinha seu negócio, uma oficina de metal. Não queria ser expulso como a maioria de seus antigos vizinhos. E mesmo assim luta nos tribunais até hoje, para que não autorizem a demolição e que permitam que sua casa permaneça como a única de seu tipo. As escavadeiras já estiveram bem perto, chegaram até ele mais ou menos uma semana antes dos Jogos Olímpicos. Ele me contou isso, orgulhoso, mostrando várias plantas e fotos de satélite, escritos para os tribunais e suas respectivas respostas. Citou parágrafos de leis ambientais - e eu comecei a ficar com medo.

Conheço esse tipo de conversa com defensores entusiasmados de seus direitos. Algumas vezes senta-se por horas e fica-se conhecendo todos os detalhes, muitos do quais nunca poderão ser utilizados em uma matéria. Só queria saber como estava a vida dele atualmente!

"Eu sou um fator de incômodo”, disse Delmo de Oliveira. Nem mesmo as 20 famílias restantes estariam mais conversando muito com ele. Até a Associação dos Moradores queria expulsá-lo. Os vizinhos só queriam seu sossego, disse Delmo, mas ele está certo de que não o têm. Muito em breve o próximo projeto de construção vai se aproximar ainda mais, e então essas 20 famílias também seriam removidas. "Ainda vão se espantar.” "Com certeza” isso seria assim.

Ele próprio já teria sido ameaçado e espancado em sua casa, mas não tinham sido os vizinhos. Outras pessoas que deveriam  expulsá-los. Quando ele está em sua casa, disse Delmo, está sempre prevenido. Abriu uma mochila e mostrou uma penca de chaves: "30 chaves”, me disse. Seriam de habitações de antigos companheiros de luta, que da mesma forma gostariam de ter permanecido na Vila Autódromo, mas teriam sido derrotados. Atualmente moram em outros locais, e deram suas chaves para Delmo para que ele pudesse ir até eles em caso de perigo. "Fujo tanto que comecei a me sentir como um criminoso”.

Mesmo assim, pareceu-me que Delmo de Oliveira também se divertia com sua luta. Por exemplo, há meses que já não recebia mais correspondências – e ele afirmou ser boicote dos Correios. Conseguiu nos tribunais uma sentença que estabelece que ele ganhe 1000 reais de multa se não receber nenhuma correspondência por um mês seguido. "Na ocasião, o juiz tinha me mandado um telegrama, e notou que fora devolvido pelos Correios como ‘endereço desconhecido'”, disse Delmo, rindo. "E ainda teve o meu processo contra a companhia telefônica."

"Delmo, quantos processos você move no momento?”

"Oito”, veio a resposta. "E ainda virão outros."

Ele ainda me contou muitas histórias. Sobre amigos, que deixaram suas casas de imediato, que acreditaram em promessas de indenizações, e acabaram não recebendo nada. Disse que algumas pessoas já haviam sido removidas em massa. Foram alojadas em algum lugar, de onde com certeza começaria a próxima luta. Por isso pareceu a Delmo muito mais lógico resistir contra todas as adversidades e permanecer no local. Apesar de tudo já faz mais de um quarto de século que está lá. Quer até mesmo conseguir um usucapião para sua casa e toda a terra em redor. Uma firma de advocacia estava pronta a defende-lo sem custos. "Existem pessoas nessa cidade que conseguiram um apartamento em Ipanema através do usucapião”, disse, "e eu estou tentando aqui”.

Nós nos despedimos após algumas horas. Acho que em um ano mais ou menos voltarei a visitar Delmo de Oliveira de novo para ver o que aconteceu com ele. Não sei se seu plano audacioso pode ter sucesso. Mas entendi que ele não vai abandonar voluntariamente seu castelo encantado, que não vai se render à lógica de que são sempre os mais pobres que devem ceder.

"Quando eu vencer, não haverá mais brigas com os vizinhos”, ele me disse, ao nos despedirmos. "Então toda essa terra me pertencerá, e poderei escolher os meus próprios vizinhos. Só vou convidar as pessoas que lutaram comigo. Seremos uma comunidade que luta!”

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão Die Zeit na América do Sul. Em sua coluna Pé na Praia, faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos – no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.

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