Pé na Praia: Se Beira-Mar fosse lutar contra as drogas
2 de agosto de 2017Era uma dessas situações em que o meu trabalho como jornalista me constrange. Ia entrando no local, e portas de aço pesadas fechavam-se atrás de mim. Caminhava acompanhado por homens bem armados através de corredores sombrios. Via por toda parte grades e muros de concreto.
"Tudo bem?” o meu entrevistado me perguntou e sorriu para mim. Ele estava bem receptivo, aparentava até alegria, mostrou para mim os seus dentes. Mas era o único que sorria. Do lado de fora, no corredor, em frente a uma cela do presídio de alta segurança de Porto Velho, estava um grupo nervoso de agentes de segurança. Usavam uniformes pretos, portavam cassetetes, pistolas e armas de choque. Quando entrei, sentei-me em uma cadeira de plástico, assim como meu entrevistado: o chefe do tráfico Fernandinho Beira-Mar.
Nós nos examinamos mutuamente. Eu suava um pouco enquanto ligava meu gravador, estava quente dentro daquele presídio. Beira-Mar estava usando uma espécie de pijama de tecido azul-claro. Na camisa e na calça estava escrito: "102”. Desde o começo do milênio o prisioneiro de número 102 está preso em sucessivas prisões de segurança máxima. Formação de quadrilha, tráfico de drogas, assassinato, tudo isso consta nas acusações da justiça e da polícia.
"Meu jornal alemão está fazendo uma reportagem sobre como funciona o tráfico de drogas, e gostaria de entrevistá-lo como especialista no assunto.”
"Tudo bem”, disse Beira-Mar.
Em que tom, com qual atitude a gente entrevista o Beira-Mar? Todo mundo sabe quem é o homem – ou pelo menos pensa que sabe. Um dos maiores Senhores do Comando Vermelho, um gênio do crime. Fenando Beira-Mar assumiu algumas das acusações contra ele, mas não todas. "Quantas pessoas você mandou matar?” perguntei a ele, mas não recebi resposta. "Não sou nenhum santo”, disse para mim em um trecho da entrevista – tudo bem, não, com certeza ele não é. "Fui tão massacrado pela mídia”, reclamou em outro trecho. Massacrar? Não estava lá para isso.
No meu trabalho para o semanário alemão Die Zeit, já entrevistei criminosos algumas vezes. Para quem não é jornalista isto soa como perigoso e até irresponsável, mas na minha experiência não é. Acontece com frequência um homem do crime querer mostrar seu ponto de vista sobre um tema específico, e não vejo problema em encontrá-lo. É de interesse mútuo, e bom procurar a visão de todos os lados. Também acho correto tratar um criminoso de maneira tão profissional e justa quanto o chefe de uma rede de supermercados ou o deputado de uma facção do congresso.
Nos preparativos de minha entrevista vi as gravações de outros jornalistas que tinham sido recebidos por Beira-Mar no passado. Alguns passavam uma grande parte da entrevista xingando o traficante de drogas, fazendo acusações, mostrando superioridade moral, protegidos por muitos agentes de segurança. Fico me perguntando se não era isso que Beira-Mar quis dizer com "massacrado”? Não sei, mas tive a impressão que ele também se divertiu nestas conversas meio hostis, dava respostas bastante afiadas. Posso imaginar muito bem porque um jornalista de televisão se apresenta assim: não deve pairar nenhuma dúvida diante dos espectadores de que o tráfico de drogas seja uma coisa ruim. Eu mesmo configuro minhas entrevistas de outra forma, acho mais importante entender bem.
Acabou que conversamos longamente – sobre os negócios, sobre violência, sobre o efeito afrodisíaco do "poder”. Tocamos até mesmo na formação em teologia que Beira-Mar completou há alguns anos dentro da cadeia. "Você acha que ainda pode ir para o céu?”, indaguei ao chefe do tráfico, mas ele não achou engraçado e respondeu outra coisa. Não, ele não acredita em céu.
No final eu queria saber como se pode combater os negócios violentos do tráfico. Como ele, Beira-Mar, faria isso? Como ele reprimiria a violência letal das facções no Rio de Janeiro, São Paulo e em outros lugares, se amanhã ele fosse nomeado secretário de Segurança?
Beira-Mar respondeu detalhadamente. Citava estudos, experiências, sabias de preços e condições de negócio. O passo mais importante, ele disse, seria a liberação das drogas – primeiro maconha, depois cocaína. "Loucura”, eu pensei, pois já conhecia estes argumentos: há alguns anos, no decorrer das Olimpíadas no Rio, vindos da boca do próprio secretário de Segurança da época, José Mariano Beltrame. Em entrevista para mim, ele também tinha mencionado argumentos a favor da liberação de uma parte deste mercado. Beira-Mar e Beltrame, pensei, com certeza não são amigos, mas neste aspecto estavam próximos um do outro.
Após o mercado ser legalizado, disse Beira-Mar, os preços vão baixar. "Tu não tens interesse de brincar com tiro". Poderia haver inspeção do estado. Cobrança de impostos, que poderiam ser empregados na educação de crianças pobres das favelas. Poderiam vender ou alugar áreas de venda, então não haveria mais motivos para lutas armadas.
"Vai destruir os negócios!”, comentei. "Também atingiria o Comando Vermelho!”
Beira-Mar acenou com a cabeça. Entendi que ele não tinha dito isso necessariamente como uma sugestão. Só queria ser franco, pergunta direta, resposta direta. "Não vejo outro caminho.” Disse que no tráfico, entre seus conhecidos, somente poucas pessoas queriam saber da liberação de drogas. E então nos despedimos novamente – eu para a liberdade, ele para o pátio da prisão.
"Bill Gates vai montar uma plantação para ele”, disse Beira-Mar no final, sobre um futuro mundo com drogas liberadas. Não me pareceu que estava fazendo uma piada. "Os cara que é empresário vão montar”. Isso é a outra tarefa neste tipo de entrevista: escutar bem, e sempre manter o olhar crítico.
Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. Em sua coluna „Pé na Praia" faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.