"Os 11 dias pareceram 11 anos": em meio ao luto, moradores do território palestino tentam retomar suas vidas após o cessar-fogo, ainda em estado de choque com a intensidade dos bombardeios de Israel.
Anúncio
Tudo o que sobrou do que um dia foram prédios residenciais e lojas não passa agora de entulho, roupas rasgadas, pedaços de metal – e memórias de vidas perdidas. Adli al-Kolak lamenta a perda de seu irmão e de outros parentes numa tenda de luto que a família ergueu em frente aos escombros de sua casa destruída. Vinte e um membros de sua família foram mortos durante ataques aéreos israelenses nas primeiras horas de 16 de maio. Kolak mora logo ao lado.
"Eu não consigo descrever meus sentimentos muito bem", afirma. "É um misto de depressão, tristeza e medo. Não consigo entender direito o que aconteceu. Estou muito chocado. Em dois ou três minutos, o prédio estava completamente destruído, veio abaixo, e meus familiares se encontravam todos debaixo dos escombros." Ele afirma que ainda ouve gritos de ajuda de parentes, incluindo crianças, que ficaram presos sob os escombros. Apenas alguns conseguiram sair com vida. "O que um bebê de 6 meses tem a ver com isso?", pergunta. "Ele lançou foguetes contra Israel?"
Em um prédio na rua Al Wehda, a casa da família Abu al-Ouf também foi atingida por um ataque aéreo. Anas perdeu a noiva, Shaima Abu al-Ouf, no bombardeio. "Conversamos por telefone durante o dia e também à noite, quando de repente houve esse barulho louco. A linha foi cortada. Mandei uma mensagem para ela, mas ela não respondeu", diz Anas. "Então soubemos que a área havia sido bombardeada." A busca e o resgate duraram mais de dez horas. Ele acabou a encontrando no necrotério.
"Quando a vi, ela tinha um sorriso no rosto", lembra Anas. "Sinto como uma punhalada em meu coração que se aprofunda cada vez mais. Mas agora ela está em um lugar melhor." Shaima foi morta ao lado de vários familiares, incluindo seu pai, Ayman, que era chefe de clínica médica do hospital Al Shifa, em Gaza. O médico também supervisionou o laboratório de coronavírus e a unidade de resposta à covid-19. "Quando precisarmos de algo, ainda temos aquele impulso de ligar para ele para pedir conselhos", conta o colega médico Khaled Khadoura, ao se preparar para seu turno na ala de coronavírus do hospital, acrescentando que a equipe ainda está em choque com a perda.
A morte de tantos civis nesta rua em particular levantou questões éticas sobre o bombardeio de edifícios residenciais.
O conflito de 11 dias matou 248 palestinos. Dezenas deles eram militantes do Hamas, mas entre os mortos também havia pelo menos 66 crianças. Segundo as autoridades de saúde na Faixa de Gaza, mais de 1.900 pessoas ficaram feridas. Em Israel, 12 pessoas, incluindo um soldado e uma criança, foram mortas por foguetes disparados a partir de Gaza.
Enquanto algumas famílias choram por seus entes queridos, outras tentam retomar suas vidas, ainda em estado de choque com a intensidade dos ataques ao pequeno enclave. Poucas horas depois que o cessar-fogo foi anunciado na sexta-feira (21/05), as ruas de repente se encheram de pessoas atarefadas ou simplesmente caminhando pelos bairros para avaliar a extensão do acontecido. Para muitos, foi uma sensação de déjà-vu. Na última década, Gaza viu se desdobrarem três guerras e inúmeras escaladas militares mais curtas entre o Hamas e Israel. E, em meio à destruição generalizada, o grupo militante Hamas, que governa Gaza, reivindica vitória.
"Estou grato por não ter me ferido nesta guerra", diz Tareq Frangi. "Mas estou confuso: não sei se devo ficar feliz ou triste. É uma confusão total."
Outra transeunte, Susanne Abu Shaban, apoia o cessar-fogo, mas não acredita que algo necessariamente vai mudar e tampouco espera uma flexibilização do bloqueio a Gaza ou restrições de viagens. "Isso não vai melhorar nada", diz Abu Shaban. "Acho que muitas pessoas prefeririam deixar Gaza, se pudessem."
Anúncio
'Punição coletiva' de Gaza
O esforço de reconstrução levará tempo. De acordo com as Nações Unidas, mais de 750 unidades habitacionais ficaram inabitáveis, e várias centenas de residências e unidades comerciais foram parcialmente danificadas. Essa última rodada de combates deslocou mais de 70 mil pessoas de suas casas, embora a maioria já tenha retornado.
Cinquenta e três escolas e 11 clínicas de saúde primária foram prejudicadas, além dos sistemas de água, esgoto e energia. Tudo isso se soma a uma longa crise econômica marcada por um desemprego brutal e uma pobreza crescente.
O território se encontra sob um bloqueio imposto por Israel e Egito há quase 14 anos. Após o Hamas tomar o poder da Autoridade Palestina à força em 2007, Israel reforçou seu controle sobre a terra, o mar e o ar da Faixa de Gaza. Os residentes palestinos em Gaza chamam o bloqueio de "punição coletiva".
A importação de materiais de construção através da fronteira de Kerem Shalom com Israel deve permanecer tarefa complicada. Israel continuará proibindo a entrada em Gaza de artigos que descreve como materiais de dupla finalidade – bens que poderiam ser usados tanto para reconstrução como para propósitos militantes, como a construção de túneis.
Após a última grande guerra, em 2014, um mecanismo especial de reconstrução teve que ser criado por países doadores para ajudar a reconstruir Gaza. Isso permitiu que governos que consideram o Hamas uma organização terrorista contribuíssem para a reconstrução sem lidar diretamente com o grupo que domina Gaza.
Esse esforço de reconstrução será "enorme", diz Mohamed Abu Mughaiseeb, coordenador da organização Médicos Sem Fronteiras. A unidade de esterilização da clínica de saúde do grupo e a área da sala de espera foram danificadas em um ataque aéreo contra outro prédio na mesma rua. "Mas também no âmbito da saúde mental", continua Abu Mughaiseeb. "Acho que os dois milhões de habitantes de Gaza sofrerão muitos problemas psicológicos nos próximos anos. A luta foi muito intensa. Os 11 dias pareceram 11 anos."
Na rua Al Wehda, o som distante de um gato gritando por socorro sob os escombros chama a atenção dos moradores. Mahmoud Shagalaih, que dirige um pequeno abrigo para gatos em Gaza, é chamado. Ele localiza o animal, ainda preso sob as pilhas de entulho. "Ele está vivo e com boa saúde", diz ele, no que constitui uma rara notícia boa naquele dia. "Vamos tirá-lo de lá de alguma forma – mas, mesmo para um pequeno gato, não há lugar seguro em Gaza."
A longa história do processo de paz no Oriente Médio
Por mais de meio século, disputas entre israelenses e palestinos envolvendo terras, refugiados e locais sagrados permanecem sem solução. Veja um breve histórico sobre o conflito.
Foto: PATRICK BAZ/AFP/Getty Images
1967: Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU
A Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 22 de novembro de 1967, sugeria a troca de terras pela paz. Desde então, muitas das tentativas de estabelecer a paz na região referiram-se a ela. A determinação foi escrita de acordo com o Capítulo 6 da Carta da ONU, segundo o qual as resoluções são apenas recomendações e não ordens.
Foto: Getty Images/Keystone
1978: Acordos de Camp David
Em 1973, uma coalizão de Estados árabes liderada pelo Egito e pela Síria lutou contra Israel no Yom Kippur ou Guerra de Outubro. O conflito levou a negociações de paz secretas que renderam dois acordos 12 dias depois. Esta foto de 1979 mostra o então presidente egípcio Anwar Sadat, seu homólogo americano Jimmy Carter e o premiê israelense Menachem Begin após assinarem os acordos em Washington.
Foto: picture-alliance/AP Photo/B. Daugherty
1991: Conferência de Madri
Os EUA e a ex-União Soviética organizaram uma conferência na capital espanhola. As discussões envolveram Israel, Jordânia, Líbano, Síria e os palestinos – mas não da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) –, que se reuniam com negociadores israelenses pela primeira vez. Embora a conferência tenha alcançado pouco, ela criou a estrutura para negociações futuras mais produtivas.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Hollander
1993: Primeiro Acordo de Oslo
Negociações na Noruega entre Israel e a OLP, o primeiro encontro direto entre as duas partes, resultaram no Acordo de Oslo. Assinado nos EUA em setembro de 1993, ele exigia que as tropas israelenses se retirassem da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e que uma autoridade palestina autônoma e interina fosse estabelecida por um período de transição de cinco anos. Um segundo acordo foi firmado em 1995.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Sachs
2000: Cúpula de Camp David
Com o objetivo de discutir fronteiras, segurança, assentamentos, refugiados e Jerusalém, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, convidou o premiê israelense Ehud Barak e o presidente da OLP Yasser Arafat para a base militar americana em julho de 2000. No entanto, o fracasso em chegar a um consenso em Camp David foi seguido por um novo levante palestino, a Segunda Intifada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/R. Edmonds
2002: Iniciativa de Paz Árabe
Após Camp David, seguiram-se encontros em Washington e depois no Cairo e Taba, no Egito – todos sem resultados. Mais tarde, em março de 2002, a Liga Árabe propôs a Iniciativa de Paz Árabe, convocando Israel a se retirar para as fronteiras anteriores a 1967 para que um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e em Gaza. Em troca, os países árabes concordariam em reconhecer Israel.
Foto: Getty Images/C. Kealy
2003: Mapa da Paz
Com o objetivo de desenvolver um roteiro para a paz, EUA, UE, Rússia e ONU trabalharam juntos como o Quarteto do Oriente Médio. O então primeiro-ministro palestino Mahmoud Abbas aceitou o texto, mas seu homólogo israelense Ariel Sharon teve mais reservas. O cronograma previa um acordo final sobre uma solução de dois estados a ser alcançada em 2005. Infelizmente, ele nunca foi implementado.
Foto: Getty Iamges/AFP/J. Aruri
2007: Conferência de Annapolis
Em 2007, o então presidente dos EUA George W. Bush organizou uma conferência em Annapolis, Maryland, para relançar o processo de paz. O premiê israelense Ehud Olmert e o presidente da ANP Mahmoud Abbas participaram de conversas com autoridades do Quarteto e de outros Estados árabes. Ficou acordado que novas negociações seriam realizadas para se chegar a um acordo de paz até o final de 2008.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
2010: Washington
Em 2010, o enviado dos EUA para o Oriente Médio, George Mitchell, convenceu o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a implementar uma moratória de 10 meses para assentamentos em territórios disputados. Mais tarde, Netanyahu e Abbas concordaram em relançar as negociações diretas para resolver todas as questões. Iniciadas em setembro de 2010, as negociações chegaram a um impasse dentro de semanas.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Milner
Ciclo de violência e cessar-fogo
Uma nova rodada de violência estourou dentro e ao redor de Gaza no final de 2012. Um cessar-fogo foi alcançado entre Israel e os que dominavam a Faixa de Gaza, mas quebrado em junho de 2014, quando o sequestro e assassinato de três adolescentes em mais violência. O conflito terminou com um novo cessar-fogo em 26 de agosto de 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
2017: Conferência de Paris
A fim de discutir o conflito entre israelenses e palestinos, enviados de mais de 70 países se reuniram em Paris. Netanyahu, porém, viu as negociações como uma armadilha contra seu país. Tampouco representantes israelenses ou palestinos compareceram à cúpula. "Uma solução de dois Estados é a única possível", disse o ministro francês das Relações Exteriores Jean-Marc Ayrault, na abertura do evento.
Foto: Reuters/T. Samson
2017: Deterioração das relações
Apesar de começar otimista, o ano de 2017 trouxe ainda mais estagnação no processo de paz. No verão do hemisfério norte, um ataque contra a polícia israelense no Monte do Templo, um local sagrado para judeus e muçulmanos, gerou confrontos mortais. Em seguida, o plano do então presidente dos EUA, Donald Trump, de transferir a embaixada americana para Jerusalém minou ainda mais os esforços de paz.
Foto: Reuters/A. Awad
2020: Tiro de Trump sai pela culatra
Trump apresentou um plano de paz que paralisava a construção de assentamentos israelenses, mas mantinha o controle de Israel sobre a maioria do que já havia construído ilegalmente. O plano dobrava o território controlado pelos palestinos, mas exigia a aceitação dos assentamentos construídos anteriormente na Cisjordânia como território israelense. Os palestinos rejeitaram a proposta.
Foto: Reuters/M. Salem
2021: Conflito eclode novamente
Planos de despejar quatro famílias palestinas e dar suas casas em Jerusalém Oriental a colonos judeus levaram a uma escalada da violência em maio de 2021. O Hamas disparou foguetes contra Israel, enquanto ataques aéreos militares israelenses destruíram prédios na Faixa de Gaza. A comunidade internacional pediu o fim da violência e que ambos os lados voltem à mesa de negociações.
Foto: Mahmud Hams/AFP
2023: Terrorismo do Hamas e retaliações de Israel
No início da manhã de 7 de outubro, terroristas do grupo radical islâmico Hamas romperam barreiras em alguns pontos da Faixa de Gaza, na fronteira com Israel, e, em território israelense, feriram e mataram centenas de pessoas, além de sequestrarem mais de uma centena. Devido a isso, Israel declarou "estado de guerra" e iniciou uma série de bombardeios, deixando partes da Cidade de Gaza em ruínas.