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Para Anna Karina

J.P. Cuenca
19 de dezembro de 2019

Anna Karina, atriz símbolo da Nouvelle Vague, morreu há pouco em Paris. Mais que musa de Jean-Luc Godard, ela é também autora do movimento que mudou a história do cinema.

Atriz Anna Karina fumando sentada a uma mesa de bar
"Eu amava aquela mulher, cujo charme era simplesmente si mesma"Foto: picture-alliance/Everett Collection

Vi Anna Karina uma vez, na primavera de 2008. Ela estava sentada num café em Saint-Germain, em Paris, com seus olhos de Velázquez pintados de escuro, muito concentrados no livro que tinha nas mãos. Usava um chapéu preto, os cabelos caindo pela franja, e ainda mantinha aquela expressão impossível entre nonchalance, deboche e puro carisma no arco das sobrancelhas. Um raio de comoção me atravessou e comecei a chorar, ali mesmo na calçada da cidade grande, como se algo tivesse me devolvido ao verdadeiro estudante de 1995, quando o amor era mais ternura que desilusão.

Eu amava aquela mulher, cujo charme era simplesmente si mesma – e procurei algo dela em todas as que conheci. Não estou sozinho. Os sete filmes de Anna Karina com Godard não apenas revolucionaram a arte do cinema, mas ensinaram gerações a amar o cinema e o próprio amor. Um tipo bastante específico de amor: engraçado, terrível, grandioso, colorido, absurdo, musical.

Anna Karina dançando sobre a cama, num cabaré subterrâneo, na frente de um prédio em ruínas e de uma jukebox, Anna Karina filmada em contra-plongée navegando por Paris, Anna Karina quebrando a quarta parede no café espelhado, no quarto de hotel, sob uma luz vermelha, azul, branca. Profundamente concentrada e casual, dirigindo a câmera – o filme, a sala de cinema, a cidade, o sistema solar – apenas com os olhos.

Respirei fundo e segui caminhando pelo boulevard onde o vento palpitava nos vestidos coloridos de mulheres finas, soprando uma melodia desconhecida que me empurrava adiante, carregado de futuro. Ou era assim que eu me sentia quando pensava naqueles filmes, tão eternamente à frente do seu tempo.

Colunista J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

Se a maioria das histórias de amor entre artistas pode terminar entre dívidas e mágoas, no rescaldo de manipulações narcísicas e num trauma estéril que não produz obra, o cinema é profícuo em colaborações que alimentam-se de casamentos, como nas duplas Giulietta Masina/Fellini, Liv Ullman/Bergman, Gena Rowlands/Cassavetes etc. Nenhuma delas, entretanto, com a dimensão radical do que Anna Karina fez ao lado de Godard, o amor mais importante da história do cinema.

A filmografia dos dois, sete filmes entre o O pequeno soldado (1960) e Made in USA (1966), é um documento sensível sobre a (des)construção simultânea da linguagem cinematográfica e dos movimentos que compõem uma paixão, os pequenos gestos e olhares, o que está fora de registro, o que é tão sutil que se desmancha no ar antes de ser capturado. A não ser que você viva dentro de um daqueles filmes – e opere como alguém que desmonta um relógio para entender o tempo, fazendo desenhos com suas peças, recriando a verdade 24 vezes por segundo.

Karina ainda filmou com Visconti, Rivette, Fassbinder, dirigiu longas, gravou discos e escreveu quatro romances. Mas respondeu perguntas sobre seus filmes com Godard, os que pavimentaram sua imagem de ícone do cinema, até o fim da sua vida. Conheceram-se quando Godard tinha 28 anos e ela 18, num século 20 profundo em que mulheres tinham pouca autonomia e muito menos espaço para lutar por seus direitos.

Ainda assim, foi uma mulher que mudou o cinema para sempre. Anna Karina não foi simplesmente musa de Godard: mais que coautora desses filmes e da própria Nouvelle Vague, é como se ela tivesse incorporado – e lhe dado os olhos para ver – algo que não existia até então.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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