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HistóriaReino Unido

Para descolonizar o pensamento

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
19 de setembro de 2022

Tão importante ou mais do que contar as velhas histórias de reis e rainhas é (re)conhecer as trajetórias e lutas de quem acreditou e acredita num mundo mais igualitário e justo.

Rainha Elizabeth 2ª com líderes da Commonwealth em 1962, entre eles o então primeiro-ministro de Trinidad e Tobago, Eric Williams (segundo da esq. para a dir. na fileira de cima)Foto: PA Wire/empics/picture alliance

A morte da rainha Elizabeth 2ª tem tido grande repercussão mundo afora. Não era para menos. Falecida no último dia 8 de setembro, ela foi a monarca que por mais tempo ocupou o trono britânico. Foram sete décadas, um feito que dificilmente voltará a se repetir.

Entronada em 1952, após o falecimento de seu pai, o rei George 6º, Elizabeth herdou um dos mais extensos e poderosos impérios do mundo. Um império, vale dizer, que se organizava por meio da colonização e subjugação econômica, política e cultural de dezenas de sociedades em diferentes partes do mundo.

No entanto, o império que a rainha Elizabeth herdou não foi o mesmo que ela deixou para seu filho, o agora rei Charles 3º. Ao longo dos 70 anos do reinado da monarca, muita coisa mudou. E é sobre isso que eu gostaria de falar.

Não se trata aqui de diminuir o peso e a relevância mundial de Elizabeth 2ª – na realidade, sua importância mundial vem sendo enfaticamente reforçada nos últimos dias, aspecto este que já havia sido amplamente divulgado quando a vida da rainha virou tema da série de sucesso The Crown, da Netfflix.

O que pretendo fazer aqui é complexificar minimamente as histórias que também se conectam às da rainha. E farei isso por meio da vida de duas figuras fantásticas.

A primeira delas é Eric Williams. Para historiadores e historiadoras da escravidão, como eu, Williams é um dos grandes nomes dos estudos que articulam escravismo, colonização e formação do mundo capitalista. Seu livro Capitalismo e escravidão, publicado em 1944, é uma obra ousada, na qual defende que a primazia e as condições que definiram a revolução industrial na Grã-Bretanha foram oriundas dos lucros advindos da colonização nas Américas, sobretudo das colônias escravistas. Mas a história de Eric Williams não para por aí.

Ele nasceu em Trinidad e Tobago em 25 de setembro de 1911, filho de uma família negra de condições módicas, o que permitiu que ele não só completasse seus estudos, como viajasse para a Inglaterra e defendesse seu doutorado na mundialmente conceituada Universidade de Oxford. De volta à sua terra natal, Eric Williams passou a ter uma vida pública e política ativa, que tinha a soberania de Trinidad e Tobago como uma das suas maiores metas. Sua articulação com lideranças da ilha e de outras colônias da Grã-Bretanha, bem como sua ligação com as reivindicações de intelectuais, ativistas e políticos negros foram fundamentais para o processo de independência da ilha, em 1962 (mesmo ano em que a Jamaica conquistou sua independência). A importância de Eric Williams foi tamanha que ele foi o primeiro-ministro da ilha entre 1962 e 1981, ano de seu falecimento.

A outra figura é Margaret Ekpo. Essa mulher de origem yorubá e igbo, nasceu em 1914 em Creek Town, na atual Nigéria, e se formou professora atuando na educação básica entre 1932 e 1938. Durante o tempo que viveu na Irlanda, acompanhando o marido, Margaret Ekpo desenvolveu um olhar afinado sobre a condição feminina, em especial das mulheres negras. De volta à Nigéria, Margaret ajudou a criar a Associação de Mulheres do Mercado de Aba (MWA, na sigla em inglês), se juntando mais tarde ao Conselho Nacional da Nigéria e dos Camarões (NCNC). Defensora dos direitos humanos e das mulheres, Margaret Ekpo também teve forte atuação no processo de independência da Nigéria (em particular) e deoutras sociedades africanas. Ela morreu em 2006.

Histórias incríveis, que se somam às de C.R.L James, Funmilayo Ransome-Kuti, Marcos Garvey, Kwame Nkrumah, Nelson Mandela, entre outros, e nos contam muito sobre a história recente do mundo. Minha pergunta é: quem já ouviu falar desses nomes? Quantos livros, filmes e séries foram produzidos sobre esses homens e mulheres? Quem conhece – talvez à exceção de Mandela – esses sujeitos que protagonizaram transformações importantes, ajudando a desmontar um dos maiores impérios da história da humanidade?

Muitos têm dito que a morte da rainha Elizabeth 2ª marca o fim de uma era. Que esse fim seja acompanhado de um movimento que atravessou e alterou significativamente o Império Britânico: a descolonização.

Porque tão importante, ou mais, do que contar as velhas histórias de reis e rainhas é (re)conhecer as trajetórias e lutas de quem acreditou e acredita num mundo mais igualitário e justo. Não são só povos e sociedades que precisam ser descolonizados; o nosso pensamento, também.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.