Memória paraguaia
29 de novembro de 2011Ao contrário de outros países da região, onde os militares cederam o poder às forças democráticas em um processo negociado, o retorno à democracia no Paraguai teve início com um golpe de Estado em 1989. Ao deposto general Alfredo Stroessner, seguiu-se o general Andrés Rodríguez, que poucos meses depois buscou – e obteve – a legitimação nas urnas.
Ficou assim consagrada a continuação do Partido Colorado no poder. "Não houve uma ruptura clara no sentido de acabar com uma ditadura brutal e sangrenta. No fundo, só mudou a forma jurídica do Estado e da figura do presidente", resumiu o economista alemão Thomas Otter, da Universidade de Göttingen, que trabalhou por muitos anos como consultor independente para várias organizações de ajuda ao desenvolvimento no Paraguai.
Somente 20 anos depois, em agosto de 2008, os paraguaios puseram fim, de forma democrática, a seis décadas de domínio Colorado, colocando o ex-bispo Fernando Lugo na presidência. "Fernando Lugo trouxe muita esperança. Mas logo veio a decepção, porque os três poderes do Estado permaneceram em mãos do Partido Colorado. Lugo está à frente do governo, mas, os colorados, do poder. Foi-se a ditadura, mas continuou a natureza corrupta do Estado. Não há vontade política de mudança", observou o advogado e Prêmio Nobel Alternativo Martín Almada, ao fazer um balanço dos últimos três anos.
Plano Condor
Foi ele que em 1992 descobriu os chamados Arquivos do Terror. Em um quartel da polícia na cidade de Lambaré, nos arredores de Assunção, foram encontradas três toneladas de documentos do Exército e da polícia secreta do Paraguai, testemunhando detalhadamente não só torturas, sequestros e assassinatos de milhares de opositores no Paraguai, mas também o Plano Condor: o pacto clandestino acordado em 1975 entre os serviços secretos dos países do Cone Sul para colaborar na perseguição e extermínio de dissidentes em todos os países da região – plano que foi incentivado pelos EUA.
Almada, que sofreu na pele prisão, tortura e exílio, tem se dedicado à tarefa de resgatar a memória de um país que, até mesmo depois de superada a ditadura, continuou optando durante anos pelo silêncio e pelo esquecimento. "As três décadas de ditadura deixaram a cultura do medo. O medo é a segunda pele do paraguaio", disse Almada. "Durante a ditadura Stroessner, fomos perseguidos pelo Exército e pela polícia. Sob o governo de Lugo, a situação piorou, porque os excluídos, os agricultores, são agora perseguidos pelo Exército, pela polícia e pelo Ministério Público."
Ilusões e desilusões dos agricultores
Com a promessa de uma reforma agrária e de redistribuição de terras, de reconstrução econômica e de luta contra a corrupção, Fernando Lugo incorporou a esperança de uma mudança verdadeira e uma real democratização da sociedade paraguaia, ao tomar posse em 2008. Mas hoje, depois de três anos, essas esperanças se veem frustradas. "A proposta de Lugo, de fazer passar o projeto de reforma agrária pelo Parlamento, foi uma manobra para ganhar votos. Mas o governo nunca apresentou uma proposta séria aos bancos regionais de desenvolvimento para solicitar os fundos necessários para financiar o projeto", criticou Thomas Otter.
Segundo estimativas do Banco Mundial, a reforma agrária teria custado pelo menos 12 milhões de dólares ao Estado paraguaio. Em 2010, foi apresentado um projeto legal de reforma agrária, mas "é um processo lento", salientou Thomas Fischer, cientista político da Faculdade de Estudos Latino-Americanos da Universidade Católica de Eichstätt.
"Em primeiro lugar, é necessário um quadro jurídico, especialmente quando se trata de expropriar legalmente terras improdutivas. Além disso, fundos econômicos são necessários não apenas para indenizar as desapropriações, mas também para disponibilizar ferramentas, sementes e capacitação aos agricultores."
Mesmo assim, cerca de 30 mil hectares de terra foram realocados para famílias de agricultores. Mas ainda existem grandes áreas improdutivas para serem redistribuídas. No Paraguai, 42% dos habitantes vivem no campo – a maior taxa da América Latina. Ao mesmo tempo, o país tem a maior concentração de terras em todo o mundo: 2% dos paraguaios detêm mais de 80% da superfície agrícola.
Durante a ditadura, 11 milhões de hectares de terra foram doados pelo governo a algumas famílias privilegiadas. Até hoje, nove milhões de hectares dessas "terras ilícitas" ainda são propriedade de políticos influentes e de militares. Em contrapartida, 120 mil famílias, um terço da população rural, não tem acesso legal a terras cultiváveis.
Abismo social cada vez maior
O nepotismo e o clientelismo continuam sendo os alicerces de uma sociedade baseada na exclusão social e econômica de grandes parcelas da população: camponeses, trabalhadores, comunidades indígenas. Entre 2003 e 2007, o Paraguai vivenciou seu maior crescimento sustentado desde os anos 1970. No governo do presidente Fernando Lugo, o boom econômico se consolidou, atingindo um crescimento histórico de 14,5% em 2010.
No entanto, isso não se traduziu numa redução do índice de pobreza absoluta. Segundo dados do Escritório Geral de Estatísticas, Pesquisas e Censos (DGEEC), ele permanece em cerca de 20%, o que significa que mais de 1,1 milhão de paraguaios sobrevive com menos de um dólar por dia. Cerca de 120 mil famílias são beneficiadas por programas sociais do Estado, baseados em ajuda financeira e alimentar. No entanto, o assistencialismo não gera receita.
Não houve sede de justiça
Em meio a esse clima de intranquilidade e estagnação político-social, a luta pelo resgate da memória foi relegada a segundo plano durante muitos anos. "No Paraguai, nunca se soube o número exato de vítimas, o que faz com que a ditadura não tenha uma imagem tão brutal e sangrenta como o regime militar na Argentina, por exemplo", explicou Thomas Otter. "Nunca houve tal sede de vingança e justiça, personificada na Argentina pelas Mães da Praça de Maio. Somente em 2003 estabeleceu-se uma Comissão de Verdade e Justiça. Mas só com a chegada de Fernando Lugo ao poder o trabalho da comissão começou a tomar forma."
O relatório final da Comissão, apresentado em agosto de 2008, é baseado em mais de 2 mil testemunhos, 14 mil documentos, bem como em oito audiências públicas. O documento relata 422 casos de desaparecimentos forçados, quase 1.600 casos de tortura e 290 acusações contra supostos responsáveis.
Entre as recomendações da Comissão de Verdade e Justiça está uma série de medidas "com vista à divulgação completa e pública da verdade", sem causar maiores danos às vítimas e suas famílias, medidas "destinadas à procura de pessoas desaparecidas, da identidade das crianças raptadas e dos corpos das pessoas assassinadas", assim como o "reconhecimento dos fatos e a aceitação de responsabilidades" e "sanções judiciais ou administrativas aos responsáveis pelas violações".
Essas recomendações caíram em esquecimento, criticou Martin Almada: "Apesar de ter sido criada a Comissão de Verdade e Justiça, o Procurador-Geral e a Procuradoria-Geral fizeram pouco ou nada contra os assassinos." Um deles, Sabino Montanaro, morreu no início de setembro aos 89 anos em sua casa em Assunção, onde se recolheu desde seu retorno do exílio em 2009. Montanaro, considerado o braço direito de Stroessner, foi ministro do Interior de 1966 até o fim do regime em 1989. Almada lamenta que "o homem forte da ditadura Stroessner" tenha morrido sem qualquer punição e não na prisão, como muitas de suas vítimas.
Entre o esquecimento e a memória
Martín Almada e Thomas Otter concordam que nem tudo são trevas e apontam que "desde 2008 tem havido melhorias substanciais no sistema de saúde e educação." Um passo importante para a recuperação da memória foi a inclusão da matéria "Autoritarismo na história recente do Paraguai" no currículo da educação escolar básica, salientou Almada. "Da mesma forma, os Arquivos do Terror ou da Operação Condor, instalados no térreo do Palácio da Justiça, recebem milhares de visitas de estudantes."
Também o recém-inaugurado Museu Memória e Verdade sobre o Regime Stroessner (Meves) atrai o interesse de estudantes jovens, para a alegria de Almada: "O Meves representa um avanço na conscientização das pessoas para que conheçam a verdade dos fatos."
O Paraguai tem "a vantagem de ser o único país onde ainda existem arquivos de terror que documentam a Operação Condor. Agora temos que usá-los", exigiu Otter. "Mas as pessoas não vieram em massa consultar esses documentos, como aconteceu na Alemanha com o arquivo federal de documentos da polícia secreta da antiga Alemanha Oriental."
Não há um amplo consenso político e social em torno de um "Nunca mais!", concluiu Thomas Fischer. As vítimas da repressão estatal esperam até hoje para que justiça seja feita, "mas não se nota na sociedade uma percepção generalizada de que há ainda muitas coisas por resolver", ressaltou Thomas Otter.
Autora: Mirjam Gehrke (ca)
Revisão: Roselaine Wandscheer