Já estamos nos encaminhando para o fim de janeiro de 2022, e a sensação é de uma exaustão tremenda, que embaralha nossa visão e a forma como lidamos com o tempo, fazendo parecer que 2020 – o ano 1 da pandemia de covid-19 – ainda não terminou.
Grande parte desse cansaço vem da sensação de que não estamos saindo do lugar. Mais um surto, de uma nova variante do vírus, coloca à prova nosso pacto social, nosso bom senso (ou a falta dele) na maneira como nos relacionamos coletivamente. E o cansaço só aumenta quando lembramos que, sim, vacinas já existem. No plural. Vacinas que, se utilizadas de forma adequada, dentro de uma política bem desenhada de saúde pública, salvam vidas, literalmente. Então, a exaustão se junta ao espanto diante do modo como algumas autoridades do país estão lidando com um problema de escala mundial, cuja solução cabe dentro de uma seringa.
Mas, o Brasil não é mesmo para principiantes.
Não bastasse a pandemia-sem-fim-mas-com-vacina, estamos vivendo um tempo que parece colocar nosso passado e nosso futuro em xeque. Não é de hoje que historiadores e cientistas sociais precisam vir a público com frequência para defender a existência e o caráter deletério da escravidão, a longa duração do genocídio indígena, ou então para afirmar e comprovar a dimensão estrutural e sistêmica do racismo brasileiro. Mas os usos do passado estão ganhando contornos ainda mais preocupantes, uma vez que a integridade de documentos que permitem o acesso a esse passado estão em perigo.
Neste mesmo janeiro de 2022, o Arquivo Nacional, órgão federal e uma das mais importantes instituições arquivísticas do país, que resguarda parte importante da documentação sobre a gestão pública brasileira, foi atingido pela exoneração de profissionais altamente qualificados. Exonerações essas sem nenhum tipo de justificativa. Na realidade, se recuperarmos a história recente da instituição, veremos que essa medida aparentemente descabida, anda de mãos dadas com uma gestão dos dados públicos que defende a eliminação de arquivos, sem que para isso haja a necessidade de aprovação do Arquivo Nacional.
Isso mesmo: pilhas e mais pilhas de documentos que tratam de questões centrais da história do Brasil podem ser descartadas sem que profissionais qualificados sejam consultados. Os mesmos profissionais qualificados que estão sendo descartados, sem nenhum tipo justificativa plausível, a não ser o uso de seu profissionalismo na defesa da missão principal do Arquivo Nacional, que prevê o tratamento, categorização e acesso a documentos que tanto versam sobre diferentes momentos e aspectos da história do país, como também são peças importantes na defesa dos direitos dos cidadãos brasileiros.
Infelizmente, tais ações não se restringem à administração do Arquivo Nacional, demonstrando que há um conjunto de medidas muito bem orquestradas em relação ao acesso às informações contidas nas instituições arquivísticas. O que equivale a dizer que há uma reorganização e redefinição daquilo que deve e daquilo que não deve ser a História do Brasil.
Mas o perigo não se restringe aos usos do passado e dos suportes que nos permitem conhecer melhor o tempo pretérito. No primeiro mês do ano que começou, sem que o anterior tenha terminado, vemos uma cruzada contra a vacinação infantil. Justamente aqui, no Brasil, o país com uma das maiores coberturas vacinais do mundo, há um atraso e um questionamento infundado na aplicação de vacina contra a covid-19 em crianças entre 5 e 11 anos, vacinação essa que já foi aprovada pelos órgãos responsáveis. Uma vacinação que pode e tem salvado milhares de vidas de crianças e jovens, mas que também pode agilizar o processo de retorno aproximado da vida como conhecíamos antes de março de 2020.
Imaginem como seria saudável (mental, física e economicamente), que o retorno presencial das escolas no ano letivo de 2022 fosse marcado pela vacinação massiva do público alvo das escolas: as crianças e jovens? Como mães, pais, alunos, alunas, professores, e demais profissionais da educação poderiam respirar aliviados, sabendo que há um pacto coletivo pelo bem social sendo respeitado e propagado.
Mas vivemos um tempo de exaustão. Uma exaustão que, assim como o descarte de documentos históricos e o questionamento da vacinação infantil, é arquitetada para nos extenuar.
E se habitamos um tempo no qual o passado e o futuro estão abertamente em perigo, então, que presente é este que vivemos?
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
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