Paz é poder na retrospectiva de Yoko Ono em Leipzig
Heike Mund av
4 de abril de 2019
Longe de ser "a mulher ao lado de um grande homem", a excêntrica nipo-americana já era uma artista original antes de conhecer John Lennon. Exposição em Leipzig é a maior já vista na Alemanha.
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Yoko Ono ocupa mais de 2 mil metros quadrados de área de exposições no Museu de Artes Plásticas (MdbK) de Leipzig: do térreo ao segundo andar estende-se a mostra mais abrangente das obras da artista que a Alemanha já viu. Para que tudo esteja ao gosto da nipo-americana de 86 anos, o curador in loco é seu amigo de longa data Jon Hendricks.
As obras expostas em Yoko Ono. Peace is power (Paz é poder) vão de pequenos objetos a esculturas e instalações que tomam salas inteiras, num verdadeiro "one-woman show" que abrange dos anos 1960 à atualidade. Não faltam filmes, vídeos e álbuns solo, além de seus raramente expostos desenhos.
Ono ganhou fama mundial em 1969 após o espetacular casamento como o músico John Lennon, dos Beatles. Até hoje, fãs e críticos musicais atribuem a ela o racha que acabou resultando no fim do lendário quarteto. No entanto, ela não era a "mulher ao lado do grande homem", mas uma artista performática independente já muito antes de conhecer Lennon.
Partes do filme desaparecido do famoso bed-in de Lennon e Ono acabam de ser descobertas por acaso num arquivo particular. Após o matrimônio, o casal VIP passou uma semana na cama de um hotel de Amsterdã, de onde deu numerosas entrevistas "em nome da paz mundial", e cujas fotos atravessaram o mundo.
Yoko Ono nasceu em 18 de fevereiro de 1933, na imponente mansão de seus avós em Tóquio. A família tinha boas relações com a casa real japonesa, e dinheiro nunca faltou. A menina cujo nome significa "filha do mar" cresceu num palácio com 30 criados. Teve pouco contato com os pais: só aos 2 anos, quando a mãe se mudou para os Estados Unidos, ela conheceu o pai, que trabalhava como banqueiro na Califórnia.
O ataque japonês ao porto de Pearl Harbour, em 1941, foi um dos fatores que a levariam a tornar-se ativista da paz. Só após o fim da Segunda Guerra Mundial a família voltou ao Japão, onde Yoko frequentou uma escola de elite da nobreza, na mesma classe que os filhos do imperador Hirohito.
Mais tarde retorna aos EUA, para estudar no Sarah Lawrence College de New York. Ela se interessa por filosofia, arte e composição musical, mas não aguenta o estudo por muito tempo: em 1959 abandona a faculdade para mergulhar na cena artística da pulsante metrópole americana.
Ono começa a trabalhar com cinema e música experimentais, associando-se ao movimento Fluxus, inspirado no Dadaísmo de Marcel Duchamp e encabeçado pelo compositor John Cage, que ela acompanhou em turnê pelo Japão.
Desde o início, Ono atuou como artista de vanguarda e questionadora de convenções, trabalhando frequentemente com corpos nus e ações provocadoras, como parte de seu protesto "para superação das barreiras sociais através das quais as mulheres são permanentemente marginalizadas", como expressaria num panfleto feminista. Ela intitula Rape (Estupro) o vídeo de 1970, em que por 23 minutos uma mosca caminha por um corpo feminino despido.
Ela conhece em 1966 o guitarrista e vocalista dos Beatles John Lennon, que fica fascinado ao visitar uma exposição da artista anticonvencional em Londres. Três anos mais tarde, casam-se, e juntos lançam diversos álbuns pacifistas. A recém-formada Yoko Ono Plastic Band alcança sucesso internacional em 1969 com Give peace a chance.
Depois que Lennon se retira quase inteiramente da vida pública, sua esposa assume os negócios. Ela continuou como administradora do patrimônio depois que ele foi assassinado, em 1980.
Uma das mulheres mais ricas dos EUA, ela tem sido chamada de "Dragon Lady" (epíteto pejorativo para asiáticas em posição de poder) e de "a mulher mais odiada da história do rock". Acusada de ter lucrado enormemente com a morte de Lennon, a reconciliação com o ex-Beatle Paul McCartney só veio 25 anos, documentada num álbum conjunto.
Yoko Ono só voltou a se apresentar publicamente como artista em 1995, em seu país natal. A partir de 2008, museus da Alemanha e Reino Unido fizeram retrospectivas de sua produção. No ano seguinte, a Bienal de Arte de Veneza concedeu-lhe o Leão de Ouro pelo conjunto de sua obra; em 2012 recebeu o Prêmio Kokoschka em Viena; em 2014 a Schirn Kunsthalle de Frankfurt organizou uma grande retrospectiva.
A atual mostra em Leipzig inclui um Water Event, em que Yoko convidou artistas alemães a criarem um objeto que ela encherá de água. A nipo-americana desenvolveu essa concepção performática – com que transforma suas exposições também em "obras de arte coletivas" – para uma mostra em Syracuse, EUA, em 1971.
Yoko Ono. Peace is power poderá ser visitada de 4 de abril a 7 de julho de 2019 no MdbK de Leipzig. A artista anunciou sua presença na vernissage.
1966: o ano em que os Beatles sacudiram a Alemanha
Até a turnê-relâmpago do grupo inglês pelo país, em junho de 1966, os alemães só tinham uma vaga ideia do que "Beatlemania" queria dizer. De Munique a Hamburgo, os músicos provocaram uma onda de histeria.
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Três dias de estado de exceção
A carreira dos Beatles começou em 1962, no Star-Club de Hamburgo, local de rock em que várias bandas se lançaram. Pouco depois, os quatro jovens de Liverpool já eram superstars, desencadeando ataques de histeria onde quer que se apresentassem. Em 1966, eles retornaram à Alemanha para dar uma amostra de sua magia. Durante os três dias da turnê, a imprensa não falou de outra coisa.
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Salve-se quem puder
O avião levando o grupo desembarcou em 23 de junho de 1966 no aeroporto Munique-Riem. A loucura se instaurou já na pista de aterrissagem: 200 policiais tentaram conter os fãs, mas os repórteres invadiram a escada de descida. Enquanto Paul sorria, o agente Brian Epstein gesticulava: "Calma, gente..." John abriu caminho com expressão estressada, e os demais Beatles se perderam na confusão.
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Hotel sitiado
Os fãs aguardavam diante do Bayerischer Hof, onde os "Fab Four" se hospedariam. Munique jamais vira tantos "adolescentes de juba comprida e jaqueta de vagabundo" juntos. Os ídolos eram chamados em coro, enquanto no hotel era preciso regularizar as acomodações: por descuido haviam sido reservados quartos duplos, para desagrado dos músicos. O público foi à loucura quando eles apareceram na janela.
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Trajes típicos e perguntas bobas
Como relatou o jornal "Die Welt", "para seu deleite" os "quatro rapazes do coro" foram presenteados com "lederhosen" com botões de chifre de veado e camisas típicas bávaras. Uma coletiva de imprensa no hotel foi marcada por muitas perguntas bobas. Um repórter do "Bild" perguntou a Ringo se a calça de couro não era grande demais: "Pode ser. Então vou esperar até o bebê crescer dentro."
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Fabulosos, mas nem tanto
Enquanto a juventude alemã entrava em êxtase naqueles dias de verão, os mais velhos expressavam sua desaprovação com epítetos como "bobalhões" e "macacos". E a imprensa estava atônita com o sucesso dos quatro. O "Münchener Merkur" se concentrou nos "defeitos": "O míope John Lennon, o canhoto Paul McCartney, o orelhudo George Harrison e o narigudo Ringo Starr."
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Decibéis incompreendidos
Em 24 de junho os Beatles fizeram dois shows no Circus Krone de Munique, um à tarde e outro à noite. Durante as apresentações, era quase impossível escutá-los, sob a gritaria histérica do público. O "Süddeutsche Zeitung" desaprovou os decibéis: "Quando as guitarras começam com seu ritmo pesado, o barulho é tanto que, por razões médicas, seria melhor ficar bem longe."
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Momentos de histeria
Pela primeira vez a Alemanha vivenciava até onde pode ir a histeria das fãs: uivos de prazer, êxtase até o limiar da dor, desmaios. O repórter do "Main-Echo" capturou alguns desses momentos: "18h56: Uma menina de 16 anos salta de seu lugar, desce correndo os degraus até o palco, cai no chão, aos berros. Os paramédico intervêm e levam a menina para fora."
Foto: Rockmuseum München, Foto: Rainer Schwanke/Archiv Herbert Hauke
Felicidade em Essen
Da capital bávara direto para Essen. Por que essa cidade relativamente pequena, na região industrial e carbonífera do Vale do Ruhr? Antes da viagem, Berlim negociara com os agentes do grupo. Mas nessa turnê-relâmpago os Beatles não queriam tocar em locais gigantescos, como a Waldbühne ou o Estádio Olímpico. Em vez disso, apresentaram-se para um público de 8 mil na arena Grugahalle de Essen.
Foto: picture-alliance/Bildarchiv/Hemann
De volta a Hamburgo
O "Hamburger Morgenpost" noticiou: "Por 25 minutos os jovens hamburgueses endoideceram no frenesi dos Beatles. As garotas se contorciam, gemendo e roucas de gritar, ao ritmo fustigante de seus ídolos. Foi a maior loucura já vista nesta casa de shows." O "Bild" foi mais conciso: "Eles gritavam. Eles choravam. Eles caíam." Os dois concertos no Ernst Merck Halle atraíram 5.700 beatlemaníacos.
Foto: picture-alliance/AP Photo/H. Ducklau
Corações partidos
O que era doce se acabou. No aeroporto de Hamburgo, os fãs se despediram dos Fab Four, que partiram para Tóquio, onde começaria sua turnê pela Ásia. O jornalista do "Die Sonne" de Baden-Baden respirou aliviado: "Sobrevivemos aos Beatles sem danos ao corpo ou à mente." Não exatamente: a turnê relâmpago na Alemanha deixou um saldo de nove cadeiras quebradas. E milhares de corações de fãs partidos.