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"PEC181 impõe dogmas religiosos ao Estado laico"

Renata Martins
21 de novembro de 2017

Única deputada a votar contra projeto apelidado de "Cavalo de Troia", Erika Kokay diz que aprovação na Câmara dos Deputados representaria retrocesso e profunda invisibilização das mulheres.

Protesto de mulheres contra a PEC 181
Proposta, apelidada de PEC "Cavalo de Troia" motivou protestos de mulheres em todo o paísFoto: Agencia Brasil/Rovena Rosa

Voltam a ser discutidas nesta terça-feira (21/11) as propostas de modificação da PEC 181/15, aprovadas pela Comissão Especial da Câmara de Deputados e que suscitaram uma onda de protestos no país. Apelidada de "Cavalo de Troia", a PEC 181 trata da extensão da licença maternidade em caso de nascimento prematuro, mas teve seu texto modificado para incluir na Constituição o conceito de proteção da vida "desde a concepção".

Leia mais: Como um debate sobre licença maternidade se voltou para o aborto

Na prática, essa modificação restringiria completamente o aborto no país, inclusive em casos já permitidos pela legislação. Desde 1941, a interrupção da gravidez é permitida quando há de risco de morte para a mulher ou é fruto de estupro. A partir de 2012, a intervenção também foi legalizada em casos de fetos anencéfalos.

O texto modificado da PEC181/15 foi aprovado no dia 8 de novembro por 18 votos a um. O voto contrário foi da deputada Erika Kokay, única mulher a votar na comissão. Em entrevista à DW Brasil, ela fala sobre o impacto dessa PEC para as mulheres brasileiras. 

Deutsche Welle: O que representa para a vida das mulheres brasileiras a PEC181/2015, cuja principal modificação aponta "a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção"?

Erika Kokay: Ela representa um profundo retrocesso, uma profunda invisibilização das mulheres. É preciso dizer de forma muito nítida que nós, mulheres, existimos; não somos só um útero; somos pessoas e que a nossa vida importa. Nós já nascemos numa sociedade machista e sexista, sem o controle sobre os nossos corpos. Os homens nascem com um corpo lhes pertencendo, mas nós, mulheres, lutamos todos os dias para ter o domínio sobre nossos corpos, que são agredidos por um índice estimado de 500 mil estupros todos os anos. Pela PEC 181/15 como está redigida hoje, ainda que a mulher morra, que a gravidez seja fruto de um estupro, ou ainda que o feto seja anencéfalo, a mulher seria obrigada a manter essa gravidez.

DW: Se for aprovada, qual seria o seu impacto sobre a mortalidade das mulheres no país?

EK: Não estamos discutindo a possibilidade ou não de avanço na legislação que assegura os direitos da mulher ao aborto voluntário, mas sim o retrocesso do que já existe há mais de 70 anos. Os fundamentalistas, que acham que possuem os nossos corpos e que invisibilizam as mulheres, estão trabalhando de forma dolosamente fraudulenta para retirar direitos das mulheres baseados em seus dogmas religiosos. Eles propõem um rompimento do Estado laico ao impor seus dogmas religiosos, impondo-os contra a própria Constituição.

Além disso, com essa proibição, estarão negando também a existência do aborto no Brasil. Ora, em um país onde temos como uma das principais causas de morte de mulheres o aborto inseguro, isso vai permitir que a prática continue na clandestinidade e, consequentemente, não seja alvo de políticas públicas. Inclusive, o desenvolvimento de um planejamento familiar seria um outro tema também a ser excluído das políticas públicas com essa PEC. Parte desses deputados fundamentalistas que estão defendendo esse crime contra as mulheres são também contra o planejamento familiar ou até mesmo contra ministrar a pílula do dia seguinte para vítimas de estupro. Com essas medidas, nega-se, na prática, que há abortos no país.

DW: A proibição absoluta do aborto é apoiada por uma parte significativa da sociedade. A que se deve isso, na sua opinião?

EK: Isso é consequência de uma sociedade que ainda não fez o luto do colonialismo, onde os donos das terras, os amigos do rei, se sentiam igualmente donos das mulheres. Esse é um reflexo de uma sociedade que tira da mulher o direto de decisão sobre sua própria vida e seu próprio corpo. A legislação atual não obriga a mulher a interromper a gravidez, ela apenas possibilita a intervenção e dá respaldo legal em determinados casos. Creio que a maioria da população não está a favor do retrocesso na legislação do aborto nos casos já permitidos, embora seja contra a legalização do aborto em todos os casos.

DW: Quem se beneficiaria com a aprovação dessa proposta de emenda constitucional modificada?

EK: Os parlamentares que fazem essa defesa montaram um discurso fundamentalista que subalterniza e invisibiliza as mulheres. Eles estão prestando contas das propostas de campanha construídas para se elegerem. Eles tentam se beneficiar reafirmando o compromisso com dogmas e propostas que defenderam em palanques macabros. As mulheres não se beneficiam com isso, a sociedade também não. Com isso, você estimula o clima de ódio misógino, consequência de uma cultura do medo. Um ódio que parte do feminicídio simbólico – quando se busca retroceder na legislação – e atinge o feminicídio literal – sempre precedido do simbólico num processo em curso de desumanização das mulheres.

DW: Na votação do último 8 de novembro, a senhora foi a única voz feminina contrária às mudanças propostas para a  PEC181/15 em meio a 18 votos a favor. Por que não havia mais mulheres na votação?

EK: Eu não fui a única mulher a discutir, mas fui a única a conseguir votar a tempo. Participaram de forma muito ativa da discussão antes da votação Jô Moraes (PCdoB-MG), Luiza Erundina (PSOL-SP), Jorge Ssola (PT-BA) e eu. A comissão foi suspensa em um determinado momento, retornando em seguida para concluir a discussão e começar com a votação. De forma deliberada, quando o quórum de 18 votos necessário para validar a proposta foi atingido, a votação foi encerrada e não houve tempo para os outros parlamentares votarem. Os deputados Jô Moraes e Jorge Ssola solicitaram o direito ao voto, mas isso lhes foi negado. Essa manobra foi feita de propósito para construir uma unanimidade. Se houvesse o mínimo de tempo possível para todos votarem, penso que teríamos outros votos contra essa PEC, ainda que fôssemos uma flagrante minoria.

Ainda é necessário esclarecer que a construção dessa comissão, desse golpe, surgiu depois da decisão do Supremo Tribunal Federal de descriminalizar o aborto em até 90 dias de gestação. Houve, então, a pressão para formar essa comissão e sacaram uma PEC já existente e que não tinha nenhuma relação com a interrupção da gravidez. Essa atitude desses deputados dificulta, inclusive, a aprovação de uma PEC que é necessária para bebês prematuros e suas mães, colocando em risco uma proposição importante para o país. Isso é um desrespeito às mulheres, à Constituição, às mães de prematuros e a esses bebês.

DW: As deputadas e senadoras se unem o suficiente no Congresso em torno de temas de interesse das mulheres?

EK: Há duas unidades aqui na Câmara numa bancada heterogênea: uma delas diz respeito ao aumento da representação política das mulheres – com a qual estamos de acordo de forma unânime; e a outra diz respeito ao combate à violência contra as mulheres. Mas há percepções muito diferentes do que seria violência contra a mulher na bancada do Congresso. Por exemplo, eu considero esse relatório uma violência contra as mulheres. Mas o tema de violência doméstica contra a mulher guarda muita unidade na bancada. Além dessas duas vertentes, vejo que temos dificuldades em buscar um consenso feminino aos temas relacionados aos interesses das cidadãs brasileiras.

DW: Como está sendo interpretada a mobilização pública de milhares de mulheres contrárias à aprovação da PEC 181/15 desde o dia 8 de novembro?

EK: A mobilização da sociedade é absolutamente fundamental. São as mulheres que, quando se mobilizam, não conquistam apenas os seus direitos, mas também os direitos de toda a sociedade, reafirmando, com isso, a democracia. Nós não temos uma democracia representativa que seja digna da sociedade brasileira. Esse Parlamento é um pacto de casacas, cartolas e bengalas. Portanto, ele está muito distante do que é uma democracia representativa e necessitaria de uma reforma política mais profunda. Por isso, é necessária a mobilização popular das mulheres, para afirmar "a nossa vida importa e nós queremos deliberar sobre os nossos direitos".

Os homens não podem se apossar do nosso destino, da nossa vida, não podem reafirmar uma lógica sexista e machista que provoca tantos feminicídios e tantas desumanizações. A discussão de direitos das mulheres é estruturante, porque mais de 50% da população brasileira é composta por mulheres. Por não serem donas de seus corpos, do seu próprio destino e reconhecidas como sujeitos – uma vez que reconhecemos nossa humanidade somente na liberdade – elas se encontram em um estado de desumanização que alastra por todas as camadas sociais, apostando na perenização de uma sociedade extremamente violenta.

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