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Perdemos o caminho de casa

J.P. Cuenca
17 de abril de 2020

A quinta semana de confinamento nos leva a revisitar o passado e pensar sobre como chegamos até aqui. Nunca estivemos tão juntos – e tão sozinhos em nossos quartos.

"Wanderer über dem Nebelmeer", de Caspar David Friedrich"Wanderer über dem Nebelmeer", de Caspar David Friedrich"Wanderer über dem Nebelmeer", de Caspar David Friedrich
"Wanderer über dem Nebelmeer", de Caspar David FriedrichFoto: picture-alliance/akg-images

1.

Volte para o quarto da sua infância que não existe mais. Antes disso, tente reconstruí-lo intacto, suspenso no ar.

O cômodo era simples, quadrado, uma cela com as dimensões da que você ocupa hoje, décadas depois. Em frente ao catre, uma mesinha com o tesouro mais valioso: uma caixa robusta de metal, um Gradiente MSX, ligado ao televisor de tubo e ao teclado. Ali você se debruçava para datilografar linhas em BASIC reproduzidas de compilações com encadernação colorida. Eram formas geométricas em arranjos cinéticos, objetos craquelados, enigmas, ilusões, livro-jogos que você reinventava – para depois perdê-los num átimo, a cada tomada elétrica.

Não havia conexão telefônica, discos, nem sequer fitas-cassete num datacorder, seu som estridente transformando-se em código. O aparelho não guardava nada, o jovem monge recopiava.

Na cabeceira, um pequeno refletor iluminava sobre os lençóis pilhas de livros, ele próprio equilibrado sobre outra. Junto à janela, uma amendoeira antiga, e às vezes o vento levava uma grande folha cor de cobre – gentileza da amendoeira. Que tinha outras: rolinhas cinzentas que entravam corredor adentro, seguindo riscos de alpiste até a sala.

E, no verão, como as cigarras zuniam. E, toda noite, como os boêmios urravam – vivíamos sobre um bar. Em certas tardes mudas dos finais de semana, você desenterrava um carretel parrudo e traçava teias, amarrando os móveis uns aos outros até que ninguém pudesse passar por ali, o derradeiro laço envolvendo o nó de porcelana da porta, agora fronteira trancada entre você e o mundo.   

2.

Andamos com mania de passado.

Cada dia trancado em casa, um passo montanha acima, de onde tentamos contemplar o caminho que nos trouxe até aqui – sobre um mar de névoa, como naquele óleo de Caspar David Friedrich.

J.P. Cuenca, colunistaJ.P. Cuenca, colunista
J.P. Cuenca vive hoje entre São Paulo e BerlimFoto: privat

E lembrar, talvez de quartos em que a porta podia ser aberta, o barbante cortado. Onde fomos felizes com amores antigos, que nos vêm de assalto, como um sopro de ar quente no meio de uma dessas tardes tão iguais à ontem. Quartos de onde vimos os fascistas marchando pela janela, enquanto nossa cama convertia-se num porão. Quartos, ainda, onde olimpicamente sozinhos abandonamos toneladas de horas encarando o teto, mas cujas regras e horários de entrada e saída eram definidas pelo nosso desejo – ou equilíbrio dos neurotransmissores, que seja.

Hoje, vivemos em cidades sem cigarras e pássaros, nossos apartamentos da infância já foram demolidos. Trancar-se não é mais uma opção, e as portas apenas sublinham nossa fragilidade. Do alto da montanha, quando as nuvens se dissipam, finalmente enxergamos um labirinto. Como Paul Valéry olhando a lua ao amanhecer, "como se eu não estivesse em meu coração".

Todos perdemos o caminho de casa, todos – e ao mesmo tempo.

3.

Minha amiga em Berlim diz que as pessoas estão experimentando um tipo de depressão forçada. Algo que nós, jedis do claustro, conhecemos bem. Lanna escreve: "Nós compartilhamos esse ciclo desafortunado de notícias, novas mortes, esse e aquele desastre, regras contra o contágio, e a dúvida se isso vai mudar tudo, e se nada for igual de novo, e o que isso significa? Quantas mortes hoje, as pessoas estão exagerando, quais são as regras, como lavo as mãos, e se eu não estiver lavando minhas mãos o suficiente? E daí nós tentamos nos distrair com filmes, ou pornografia, ou lendo, e ficamos cada vez mais tempo com a tela, sozinhos. Parece demais e não o suficiente ao mesmo tempo."

Meu amigo em Paris está visitando hospitais para escrever sobre a pandemia. Mario escreve: "Hoje fui a uma unidade dos pacientes mais críticos. Grande maioria de homens. Muitos usando um pulmão artificial. Não é um respirador. É uma máquina que drena teu sangue, oxigena e injeta de novo no teu corpo. Perguntei pro médico qual era a porcentagem de pacientes curados. Ele me disse que 30%. Até agora não sei se entendi direito, embora faça todo o sentido pelo que se vê. Vários ali já parecem mortos. Todos na faixa dos 35 aos 55 anos, sem patologias prévias."

"Tudo bem?" – minha amiga de São Paulo pede desculpas antes de desabafar: "Você quer mesmo saber? É que hoje 'tudo bem' deixou de ser uma pergunta retórica."

4.

Uma pandemia vivida 24/7 online: talvez não exista outro evento histórico a unir tantos seres humanos sob a mesma circunstância. Mesmo as Guerras Mundiais do século passado desenrolaram-se com lógica mais fragmentada, espalhadas pela cronologia e pelo espaço. Mas hoje parecemos estar sob a mesma ameaça, com os mesmos temores, ao mesmo tempo.

Nunca antes tão juntos – e tão sozinhos em nossos quartos.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

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