Peru vira dor de cabeça para a esquerda latino-americana
Emilia Rojas Sasse
16 de dezembro de 2022
Líderes progressistas da região estão divididos entre apoiar Castillo ou reconhecer a sua queda como atuação normal do Estado de direito.
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Enquanto vigora no Peru o estado de emergência e o presidente deposto Pedro Castillo continua em prisão preventiva, o novo governo de Dina Boluarte demonstrou incômodo com o que considera "interferência em assuntos internos" por parte de México, Colômbia, Argentina e Bolívia, e convocou seus embaixadores nesses países para consultas.
Num comunicado em conjunto, esses países expressaram preocupação com o "tratamento judicial" que está sendo dado a Castillo e pediram que "a vontade dos cidadãos expressa nas urnas" seja priorizada. Mas também houve um outro tom em declarações no âmbito da esquerda latino-americana.
O Ministério do Exterior do Chile expressou diplomaticamente o desejo de que a crise se resolva "por meio dos mecanismos democráticos e com respeito ao Estado de direito". O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que "é sempre de se lamentar que um presidente eleito democraticamente tenha esse destino", mas disse entender que "tudo foi encaminhado no marco constitucional".
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Fogo-cruzado
A situação, de qualquer forma, não é cômoda para os governos democráticos da nova "maré rosa" na região. "A esquerda latino-americana está no meio do fogo-cruzado. Se defende Castillo, defende a violação da Constituição peruana, e se defende a Constituição, não pode defender o que Castillo fez quando fechou o Congresso", afirma o sociólogo e cientista político Diego Raus.
O professor da Universidade de Buenos Aires e da Universidade Nacional de Lanús acrescenta que, por isso, a defesa de Castillo alega que ele foi vítima de perseguição, engano e manipulação e que não teria fechado o Congresso. "Ele está dizendo que não disse o que disse, que simplesmente foi pressionado."
Para o cientista político equatoriano Simón Pachano, a ênfase dada pelos presidentes do México, Andrés Manuel López Obrador, e da Colômbia, Gustavo Petro, à perseguição sofrida por Castillo ao longo de seu governo é uma expressão de simpatias ideológicas.
"Essas simpatias os levam, em primeiro lugar, a ignorar que essa perseguição faz parte da política peruana nas últimas duas décadas. Em segundo lugar, os induzem a minimizar ou ignorar o elemento que desencadeou esse episódio, que foi o golpe dado por Castillo", destaca.
Esquerda heterogênea
Não existe uma posição homogênea na esquerda latino-americana. "Isso de governos de esquerda é algo muito ambíguo na América Latina. No momento, são considerados de esquerdas aqueles governos que não são claramente neoliberais, como foi o governo anterior do Chile ou o de Macri na Argentina. Há uma heterogeneidade muito grande", pontua Raus.
Pachano concorda que existe diferenças entre os protagonistas desta "nova onda de esquerda" na América Latina. "Atualmente, essas discrepâncias são mais claras, certamente, porque não há uma corrente ideológica unificadora [como foi o 'socialismo do século 21'] e por não haver uma liderança forte", acrescenta.
O especialista não acredita que a crise peruana tenha um impacto significativo na região, mas vê como um risco para toda a esquerda a posição de países que tentam justificar o golpe de Castillo. "É uma posição injusta com a democracia, e isso pode criar desconfiança entre as forças políticas democráticas", argumenta Pachano.
Raus ressalta que o governo de Castillo nunca foi bem visto na região. "Surgiu legitimamente, de eleições democráticas, mas teve um caminho muito sinuoso". Na sua avaliação, a crise peruana não deve impactar a estabilidade democrática além da fronteira do país. Mas, em vista do crescente descrédito de partidos e instituições, "mina mais uma vez a confiança em governos e na classe política".
Dez ex-presidentes latino-americanos que já foram presos
A recente prisão de Pedro Castillo no Peru não é um caso isolado na América Latina. Líderes de outros países da região, como Argentina, Honduras e Panamá também já enfrentaram problemas com a Justiça.
Foto: Renato Pajuelo/AP/picture alliance
Pedro Castillo (Peru)
Pedro Castillo, destituído da presidência do Peru após ter ordenado a dissolução do Parlamento (07/12), foi detido e levado ao presídio de Barbadillo. Às acusações de corrupção que já enfrentava, o Ministério Público acrescentou a do alegado crime de rebelião "por violação da ordem constitucional". O ex-presidente Alberto Fujimori está detido na mesma prisão.
Foto: Renato Pajuelo/AP/picture alliance
Lula (Brasil)
Lula, que governou o Brasil entre 2003 e 2010, passou 580 dias na prisão entre abril de 2018 e novembro de 2019, após ser condenado por corrupção. Em março de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou as duas sentenças por irregularidades processuais cometidas pelo Ministério Público e pelo juiz do caso. Assim, conseguiu disputar a eleição de 2022, na qual derrotou Jair Bolsonaro.
Foto: Reuters/R. Buhrer
Alberto Fujimori (Peru)
Alberto Fuijimori, que governou o Peru entre 1990 e 2000, deu um autogolpe em 1992. Seu governo foi marcado por vários casos de corrupção, e ele cumpre pena de 25 anos de prisão por homicídio qualificado, usurpação de funções, corrupção e espionagem, além de desvio de fundos e peculato.
Foto: Martin Mejia/AP/picture alliance
Ollanta Humala (Peru)
Ollanta Humala (2011-2016) completou seu mandato presidencial no Peru, mas, um ano depois, foi colocado em prisão preventiva. Ele e a esposa estão sendo investigados pelo suposto recebimento ilegal de dinheiro da Odebrecht para a campanha presidencial peruana em 2011. Em abril de 2018, o Tribunal Constitucional do Peru revogou a prisão preventiva, mas o processo continua.
Foto: El Comercio/GDA/ZUMA Press/picture alliance
Jeanine Áñez (Bolívia)
Jeanine Áñez assumiu a presidência interina da Bolívia em 12 de novembro de 2019 como segunda vice-presidente do Senado, dois dias após a renúncia de Evo Morales. Ela foi detida em 13 de março de 2021, e numa decisão polêmica, um tribunal a condenou a 10 anos de prisão pelos crimes de violação de deveres e resoluções contrárias à Constituição. Ela está presa em La Paz.
Foto: Juan Karita/AP Photo/picture alliance
Otto Pérez Molina (Guatemala)
Um tribunal condenou em 07/12 o ex-presidente Otto Pérez Molina, general aposentado que governou a Guatemala de 2012 a 2015, a 16 anos de prisão por liderar uma rede milionária de fraudes alfandegárias que o obrigou a renunciar em 2015. Pérez havia sido preso em 3 de setembro de 2015 após grandes protestos e está em prisão domiciliar desde novembro de 2021.
Foto: Luis Vargas/AA/picture alliance
Juan Orlando Hernández (Honduras)
O ex-presidente hondurenho Juan Orlando Hernández (2014-2022) foi extraditado para os Estados Unidos em abril de 2022, onde é acusado de conspiração para importar cocaína, posse de metralhadoras e armas pesadas e conspiração para possuir tais armas. Ele está detido na Penitenciária Federal do Condado de Brooklyn e pode pegar prisão perpétua se for condenado.
Foto: Andy Buchanan/AFP
Ricardo Martinelli (Panamá)
Ricardo Martinelli, que governou o Panamá de 2009 a 2014, foi preso em junho de 2017 na Flórida. No ano seguinte, ele foi extraditado pelos EUA para ser julgado em seu país num caso sobre escutas ilegais, do qual foi posteriormente absolvido. O ex-presidente também enfrenta um julgamento por suposta cobrança de propina da brasileira Odebrecht.
Foto: picture-alliance/AP Images/A. Franco
Álvaro Uribe (Colômbia)
Acusado de fraude processual e suborno, o ex-líder colombiano Álvaro Uribe (2002-2010) ficou 67 dias na prisão em 2020 "devido a possíveis riscos de obstrução da Justiça". O Ministério Público, no entanto, anunciou que solicitará o encerramento da investigação, após concluir que não houve crime e que a responsabilidade criminal de Uribe não pode ser comprovada.
Foto: Long Visual Press/LongVisual/ZUMA Press/picture alliance
Carlos Menem (Argentina)
O presidente argentino Carlos Menem (1989-1999) enfrentou diversos processos. Em seu primeiro julgamento, em 2008, ele era acusado de tráfico de armas para o Equador e a Croácia entre 1991 e 1995. Ele passou seis meses em prisão domiciliar preventiva em 2001, e foi solto depois que a Suprema Corte anulou as acusações. Desde 2005 teve imunidade como senador, cargo que ocupou até sua morte em 2021.