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Estado de DireitoChile

Pinochet, o mito do ditador que resiste a cair no Chile

Victoria Dannemann
10 de setembro de 2023

Morto em 2006, ele segue bem visto por mais de um terço dos chilenos – e sua figura reaparece como "imaginação nostálgica" em momentos de crise, como alta da criminalidade ou agitação social.

Pinochet fardado conversa com sua esposa, Lucia Hiriart
Pinochet com sua esposa, Lucia Hiriart, em 1998 na cerimônia de sua aposentadoria do ExércitoFoto: Cris Bouroncle/AFP

O caso chileno é singular: o país pôs fim a uma ditadura de 17 anos por meio de um plebiscito. Augusto Pinochet deixou o poder em 1990, mas manteve um lugar-chave na vida política. Não apenas como comandante em chefe do exército e senador, mas como figura e símbolo para setores da direita.

Cinquenta anos após o golpe, e apesar das violações de direitos humanos que deixaram mais de 3 mil mortos e desaparecidos, Pinochet ainda goza de razoável aprovação no Chile: 36% consideram seu golpe militar legítimo, de acordo com uma pesquisa feita pelo CERC-Mori. Apenas em julho deste ano, em uma sessão tensa e com placar de votação apertado, a Câmara dos Deputados aprovou uma moção para que Pinochet não figure mais nos registros da Biblioteca do Congresso como "presidente".

Guardadas as devidas diferenças, esse cenário contrasta com a situação na Alemanha pós-nazista ou a de algumas ditaduras latino-americanas onde houve maior consenso na rejeição de ditadores, como na Argentina. Mas a história chilena tem paralelos com a brasileira, onde o fim da ditadura também foi parcialmente conduzido pelos militares e sem a responsabilização dos ditadores.

Especialistas consultados pela DW identificam vários fatores que constituíram esse panorama no Chile.

"Na Alemanha ou em outras ditaduras que foram derrotadas militarmente, como na Itália e no Japão, é mais difícil que ressurja um setor da população que a reivindique", diz o historiador Manuel Gárate. "Na Alemanha, embora ainda houvesse partidários do nazismo, com o passar do tempo houve uma desnazificação e a sociedade fez uma mudança em direção à democracia e à valorização dos direitos humanos", diz o acadêmico do Instituto de História da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile.

Na opinião do cientista político Veit Straßner, "ao contrário da Argentina, onde a ditadura deixou o poder em meio a uma derrota moral, política e econômica, a transição no Chile foi liderada pelos militares com suas próprias regras e eles seguiram nas esferas de poder. Eles deixaram o poder sem perdê-lo."

Straßner também observa que "a ditadura chilena foi bem-sucedida em mudar as regras do jogo, e a Constituição de 1980 ainda está em vigor. Os militares impuseram uma visão neoliberal e mudaram o país política e economicamente. Eles falharam na distribuição de riqueza, mas em termos macroeconômicos foram mais bem-sucedidos do que em ditaduras de outros países".

"Na Argentina, a ditadura perdeu uma guerra com a Inglaterra e ficou desacreditada. No Chile, a única coisa que aconteceu foi que ela perdeu um plebiscito, e por uma margem que não era tão alta. Nos últimos 30 anos, quando a questão dos direitos humanos, as contas do Banco Riggs e o enriquecimento ilícito de Pinochet se tornaram conhecidos, ele perdeu força na arena pública, mas muitas pessoas continuaram a apoiá-lo em silêncio", diz Gárate.

Pinochet morreu sem enfrentar a Justiça

Pinochet perdeu o plebiscito de 1988, mas não foi deslegitimado. Quase metade da população (44%) era a favor de que ele permanecesse no poder por mais oito anos. "Não me surpreende que essa polarização continue até hoje. As famílias transmitem certas narrativas do que aconteceu durante o governo de Allende e o regime militar, que são visões opostas, nas quais não há muito espaço para nuances", diz Straßner, que fez doutorado em políticas de verdade, justiça e memória.

A socióloga chilena Oriana Bernasconi aponta para a questão judicial: "Apesar de haver mais de 400 julgamentos de figuras de seu entorno, que somam mais de mil anos de sentenças, Pinochet morreu sem enfrentar a Justiça no Chile."

Manifestante nostálgico de Pinochet segura placa em ato por segurança pública em Santiago, em abril de 2023 Foto: Esteban Felix/AP/picture alliance

Na opinião da professora do Departamento de Sociologia e pesquisadora do Centro de Direitos Humanos da Universidade Alberto Hurtado (UAH), "a sociedade também não teve essa instância e o espaço pedagógico para educar as novas gerações, como o Julgamento das Juntas na Argentina. Pinochet não enfrentou os relatos dos crimes nem sua responsabilidade [colocada] por uma sentença. Isso afeta a maneira como processamos sua figura. Se isso tivesse acontecido, seria muito mais difícil que ainda houvesse vozes que o aprovassem".

Relativização em tempos de crise

O fenômeno é cíclico e também se insere no atual ressurgimento da extrema direita em todo o mundo. Diante de uma crise, como o aumento da criminalidade ou os protestos de massa de 2019 – que ficaram conhecidos como estallido social –, a figura do ditador, que morreu há quase 17 anos, reaparece.

"Muitos disseram que com Pinochet isso não teria acontecido. Em situações de crise, o que aconteceu durante o regime militar é reinterpretado, e grande parte da sociedade chilena está disposta, pelo menos, a relativizar as violações dos direitos humanos", alerta Straßner. Ganha força o discurso de que essa violações são o custo pago para ter progresso, ou que as vítimas merecem porque "devem ter feito alguma coisa".

"Busca-se uma figura do passado para marcar uma posição política no presente. As vozes que estavam silentes ganham força e hoje sentem que têm uma justificativa para dizer que Pinochet foi uma figura importante no Estado chileno, ou mesmo um estadista", diz Gárate.

Soma-se a isso a memória construída pela ditadura, que persiste até hoje, diz Bernasconi: "Foram 17 longos anos em que Pinochet teve todos os aparatos do Estado cooptados para reproduzir incansavelmente sua propaganda, incluindo montagens, discurso golpista e a ideia da guerra contra o câncer marxista".

O mito Pinochet

"Pinochet em si, como pessoa, não é tão importante, mas sim como um símbolo. Sua figura é simplesmente uma imaginação nostálgica, que para um setor representa a ordem ou a luta contra o crime", diz Gárate.

"Tem algo simbólico que vai além da pessoa. Representa diferentes visões da economia e da construção de uma sociedade", concorda Straßner. "Para alguns, ele representa estabilidade econômica e tempos melhores, embora hoje saibamos que os melhores números de crescimento econômico foram nos primeiros anos da transição democrática, quando a Concertación estava no poder", diz Gárate.

Regime de Pinochet deixou mais de 3 mil mortos e desaparecidosFoto: epa AFP Bouroncle/dpa/picture-alliance

A história também desmistificou a lenda de que ele é o único ditador que deixou o poder democraticamente e que, além disso, não enriqueceu. "Esses dois mitos caíram por terra: sabemos que em alguns momentos ele não quis reconhecer a vitória do NÃO [no plebiscito] e que ele e sua família enriqueceram ilicitamente", diz o historiador da PUC.

A imagem de Pinochet é incômoda e "está contaminada pela traição a Allende, pela forma como se deu o golpe de Estado, pelas violações dos direitos humanos, pelo exílio, pelos presos desaparecidos e pelo enriquecimento ilícito. Para um setor da sociedade, Pinochet significa 'ele nos salvou do comunismo' e 'ele restaurou a ordem', mas consideram sua biografia muito difícil de defender", diz Gárate.

A direita, que colaborou com a ditadura e se beneficiou dela, "continua hesitante em relação a Pinochet e não construiu uma narrativa", além de resgatar as supostas "partes boas" daquele período, afirma a socióloga da UAH.

"Há um grupo de civis que, em vez de serem leais a Pinochet, são leais às realizações do regime, e por isso estão interessados em preservar a Constituição e a ideia do modelo econômico", diz Gárate. Nesse contexto, quando ainda existem aqueles que justificam o golpe e as violações dos direitos humanos como um custo aceitável, uma condenação pública unânime de Pinochet ainda parece muito distante.

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