Crise nas penitenciárias leva governo Michel Temer a apontar a cogestão com empresas privadas como uma das saídas para aliviar a superlotação, uma política já defendida em governos anteriores e repleta de controvérsias.
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A delegação de serviços das prisões a empresas da iniciativa privada é um tema cercado de controvérsias jurídicas, éticas e ideológicas que voltam à agenda política do Brasil com a nova onda de massacres em presídios das regiões Norte e Nordeste. A chamada privatização do sistema carcerário é discutida pelo governo federal desde antes dos anos 2000, na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O governo do presidente Michel Temer já havia apontado a celebração de Parcerias Público-Privadas (PPPs) para construção de presídios como solução viável para aliviar a crise de superlotação do sistema carcerário. Agora, com a morte de mais de 130 presos em apenas 15 dias, a pauta das concessões e das PPPs é vista como prioridade pela atual administração.
No governo FHC, Elisabeth Sussekind assumiu a linha de frente da defesa das parcerias com a iniciativa privada no comando da Secretária Nacional de Justiça (1999 a 2002). Enfrentou especialistas e militantes políticos, segundo ela, sem medo de defender seus pontos de vista, ainda que solitária. Hoje a professora de criminologia e direito penal da UFRJ ainda aponta a terceirização de serviços nas penitenciárias como uma saída factível para o poder público, mas faz várias ressalvas e ponderações. Ao deixar o Ministério da Justiça, Sussekind visitou presídios terceirizados na Bahia e em Minas Gerais. Constatou que o estado terceirizou apenas a segurança. O local ficou, de fato, mais seguro, com protocolos e normas internas administradas pelas empresas privadas. Porém, o quesito assistência aos presos seguia sendo um desastre, afirma. "Nada de médicos, estudo ou trabalho. Os locais continuam superlotados, imundos."
O problema crucial do debate, na opinião da ex-secretária de Justiça, é que a privatização aparece no contexto de um discurso político voltado à redução de rebeliões, protestos, fugas e críticas sobre a superlotação. Além disso, não há seriedade no cumprimento do contrato e no controle do Estado sobre as empresas concessionárias. O modelo, reflete a professora, não costuma ser pensado para a ressocialização da população carcerária, para reduzir a reincidência do crime, alfabetizar presos, treinar e capacitar para o trabalho. Ter lucro num negócio como esse não seria um problema, segundo Sussekind, porque toda a iniciativa privada visa o lucro. "E o das prisões se justificaria" se significasse bons serviços ao Estado e à população presa.
Na opinião dos críticos da privatização, o próprio ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, já antecipou um dos problemas centrais ao acusar a empresa Umanizzare, que administra o Complexo Anísio Jobim, em Manaus, de ter "responsabilidade visível e imediata" pela tragédia. A empresa reagiu. Alegou que o contrato com o poder público é de cogestão. "A lei explicita, sem dar margem a dúvida, a contenção de rebeliões como prerrogativa exclusiva do poder público", argumentou a empresa, que atualmente assumiu a cogestão em oito unidades prisionais do Amazonas e de Tocantins.
"Como se sabe, um traço central das modernas democracias é a pretensão ao monopólio estatal do uso legítimo da força. O poder de privar o cidadão de liberdade como medida punitiva e de empregar meios coercitivos para fazê-lo constitui uma das dimensões da própria razão de ser do Estado, e, nessa medida, é intransferível", afirma o professor Laurindo Dias Minhoto, da USP, autor do livro Privatização dos presídios e criminalidade (2000). Nos Estados Unidos, o Texas julgou polêmica semelhante após a morte de um detento por um agente privado. O professor salienta que o Tribunal Federal da Região do Estado do Texas decidiu que "ambos, estados e empresas privadas que administram estabelecimentos penitenciários, são responsáveis em questões relativas ao uso de força letal".
Minhoto considera que a experiência norte-americana deve ser levada em conta pelo governo brasileiro. Nos Estados Unidos, o governo Barack Obama decidiu acabar gradualmente com a privatização do sistema carcerário. Auditoria do Departamento de Justiça detectou que o setor privado "não é capaz de prover o mesmo nível de recursos e de qualidade dos programas e serviços correcionais" dos estabelecimentos públicos. Constatou-se, ainda, que não há redução de custos. "As prisões privadas não são menos onerosas para estados e contribuintes nem tampouco operam em níveis minimamente aceitáveis de eficiência. Ao contrário, ao configurar um contexto institucional em tudo avesso a estratégias de reabilitação de detentos, o funcionamento concreto das prisões privadas vai desmanchando qualquer aparência de efetividade de metas e indicadores de qualidade fixados em contratos de gestão", argumenta o professor da USP.
Já a ex-secretária nacional de Justiça afirma que a experiência americana não pode ser comparada à brasileira, já que a política dos Estados Unidos não foca em reabilitação, mas somente em hotelaria, limpeza, alimentação, acesso a médicos e segurança. Para Sussekind, se houvesse no Brasil dois ou três contratos terceirizados em cada estado, monitorados e devidamente controlados pelo poder público, a experiência poderia ser positiva, e o Brasil poderia ter dados para fazer comparações. Somente a partir destes dados, diz ela, os estados poderiam readaptar as experiências ou simplesmente encerrar os processos de terceirização.
Diante do grave quadro do sistema penitenciário, o brasileiro certamente poderá dar aval à privatização, diz o professor, usando a seguinte reflexão: "O que poderia ser pior do que o atual modelo?" A barbárie estrutural das prisões brasileiras, afirma Minhoto, reflete a realidade social e política que se vê do lado de fora dos cárceres. "Em várias sociedades, o nível de barbárie do lado de dentro é indicativo do nível de barbárie do lado de fora."
Em 2014, a Pastoral Carcerária fez um estudo profundo sobre a privatização de presídios. Há hoje no país 30 prisões privatizadas nos estados de Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas e Amazonas. Os contratos mais comuns são de cogestão, em que o estado é responsável pela direção da unidade, da guarda e de escolta externa, enquanto a empresa privada assume serviços de saúde, alimentação, limpeza, vigilância e escolta internas, além da manutenção das instalações.
Os contratos de PPPs são para projetar, construir e financiar presídios, em concessões que podem durar 30 anos. "Efetivamente, não há informações suficientes para realizar uma análise segura da efetividade da privatização no âmbito dos estados, a começar pela falta de transparência. Os governos estaduais e as empresas privadas resistem em oferecer informações dos processos de licitação", diz trecho do documento elaborado pela Pastoral. A organização é contra o processo de terceirização, argumentando com os altos custos ao poder público (em média R$ 3 mil por preso) e pela ineficácia. A Pastoral sugere uma parceria com organizações da sociedade civil e sem fins lucrativos para que sejam oferecidos aos presos serviços de alimentação, assistência médica e educação mais dignos. "Uma terceira via ainda não foi adequadamente testada e investigada."
Cronologia da crise nos presídios
Ano de 2017 começa com crise inesperada para o governo Temer: na primeira quinzena de janeiro, 120 presos são barbaramente assassinados dentro de presídios do norte do país, com ação de facções criminosas.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Eles se matam, e a polícia não age
1º de janeiro: presos iniciam uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. A polícia decide não entrar para conter o massacre. Autoridades locais alegam que tomaram tal decisão para evitar uma tragédia semelhante à do Carandiru, quando 111 presos morreram num motim com a ação policial, em São Paulo, em 1992.
Foto: picture-alliance/Zumapress/A Critica
56 mortos, corpos decapitados e esquartejados
2 de janeiro: a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas divulga o número de mortos: 56 presos assassinados, boa parte deles decapitada e esquartejada. Foram mais de 17 horas de massacre. As autoridades de Manaus atribuem a tragédia à disputa entre as facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Família do Norte (FDN). Em desespero, famílias aguardam identificação de corpos.
Foto: Reuters/M. Dantas
"Tudo sob controle"
3 de janeiro: o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, visita o Complexo Anísio Jobim, onde aconteceu a rebelião de Manaus, e diz que situação está "sob controle". Moraes afirma que governo não corrobora a tese de confronto entre facções. Uma rebelião como a de Manaus, diz, é provocada por um somatório de fatos que ainda precisariam ser analisados pelo governo.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justica e Cidadania
"Ninguém ali era santo"
4 de janeiro: o governador do Amazonas, José Melo de Oliveira (Pros), faz uma declaração chocante sobre a matança no presídio: "Não tinha nenhum santo. Eram estupradores, matadores (...) e pessoas ligadas a outra facção, que é minoria aqui no Estado do Amazonas". O governo estadual decide, só depois da tragédia, retirar os presos ameaçados de morte e transferi-los para outro local.
Foto: Divulgacao/SECOM/H. Pereira
Protagonismo do Supremo
5 de janeiro: a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, assume um papel de protagonismo na crise. Um dia após a tragédia, ela decide viajar a Manaus e afirma que a situação é explosiva. No Amazonas, faz reuniões com juízes e desembargadores. Por orientação dela, o Conselho Nacional de Justiça monta uma força-tarefa para supervisionar as medidas do estado do Amazonas sobre a crise.
Foto: Divulgacao/SCO/STF
"Mais do mesmo"
5 de fevereiro: o governo anuncia o Plano Nacional de Segurança em resposta à crise. O ministro da Justiça apresenta, entre as medidas, a construção de cinco presídios de segurança máxima, sem detalhar custos e prazos. Especialistas ouvidos pela DW dizem que programa reedita propostas dos governos Lula e Dilma, é genérico e não dá nova perspectiva para o fim do aprisionamento em massa.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justiça e Cidadania
O silêncio e o acidente
5 de janeiro: o presidente Michel Temer faz o primeiro comentário sobre as mortes, referindo-se aos massacres como "acidente pavoroso". "Eu quero me solidarizar com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus." O presidente, que já tinha sido criticado por seu silêncio e omissão, foi reprovado pelo uso da palavra acidente.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Em Roraima, outra barbárie
6 de janeiro: na madrugada, outro massacre é iniciado, desta vez na penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Roraima. Mais 33 presos são mortos. O governo classifica as mortes de barbárie e diz não ter indícios claros se o massacre tem relações com vingança de facção criminosa.
Foto: Getty Images/AFP/V. Almeida
Baixa no governo
6 de janeiro: a crise penitenciária produz a primeira baixa no governo. O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, é demitido após declarações polêmicas publicadas no "Globo". "Tinha que fazer uma chacina por semana", teria dito. Ele negou ter feito a afirmação. À "Folha de S. Paulo", disse: "Fico triste porque não estão dando tanta importância para as pessoas de bem que morrem todo dia".
Foto: Divulgacao/JPMDB
A matança continua
8 de janeiro: mais quatro presos são mortos em novo motim no Amazonas. A rebelião, desta vez, é na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus. Três detentos são decapitados, e um foi morto por asfixia.
Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo
Reforço tardio
9 de janeiro: o governo federal autoriza envio de cem homens da Força Nacional de Segurança a Manaus e outros cem para Roraima. Ministro da Justiça se compromete a atender pedidos de sete estados das regiões Norte e Centro-oeste para auxiliar no policiamento e segurança, autorizando transferência de presos para penitenciárias federais e liberando recursos.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Após a tragédia, a tentativa de controle
10 de janeiro: a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e a PM do Amazonas fazem revistas nas unidades prisionais da capital. A ação dos policiais foi iniciada no dia 5. Na ala dos presos que cumprem regime semiaberto do Complexo Penitenciário Anísio Jobim são encontrados pen-drives, walkie-talkies, cabos telefônicos, celulares, alicates, facas, martelos e outras ferramentas.
Foto: Bruno Zanardo/Secom
Mais um capítulo da crise: 26 mortos no RN
15 de janeiro: um novo motim ocorre no presídio de Alcaçuz, na cidade de Nísia Floresta, região metropolitana de Natal. O governo do estado confirmou a morte de 26 detentos. Assim como em outras rebeliões do Norte, os corpos estavam desfigurados. A perícia levará 30 dias para fazer as identificações. Após a rebelião, presos foram revistados nus. Houve auxílio da Força Nacional de Segurança.
Foto: picture-alliance/dpa/F. Marcone
Confusão sem fim em Alcaçuz
16 de janeiro: Um dia após o motim que terminou com ao menos 26 mortos, a penitenciária de Alcaçuz (RN) volta a ser palco de tumultos. Em dia de "clima tenso”, um grupo de detentos voltou a ocupar os telhados dos pavilhões e proferir ameaças contra facções rivais de dentro do presídio. Agentes da PM, do Bope e do GOE não conseguiram controlar a situação. A Força Nacional teve de ser acionada.
Foto: Reuters
Onda de rebeliões chega a Minas Gerais
17 de janeiro: Cerca de 1.200 detentos do presídio Antônio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves (MG), anunciam um motim para reivindicar a saída do diretor da prisão e a melhora no tratamento de familiares e presos. Em vídeos que circulam pela internet, eles ameaçam uma carnificina caso não sejam ouvidos. "Vai morrer muita gente, o massacre vai começar", diz um dos presos encapuzado de vermelho.
Foto: Quelle: Youtube/Portal O TEMPO
Forças Armadas entram nos presídios
17 de janeiro: Governo autoriza que as Forças Armadas passem a inspecionar materiais proibidos, como armas e drogas, dentro dos presídios estaduais. A segurança interna continua, porém, sob responsabilidade de agentes penitenciários e policiais. Segundo a presidência, a "operação visa restaurar a normalidade e os padrões básicos de segurança nos estabelecimentos carcerários brasileiros."
Foto: picture-alliance/AP Photo/E. Peres
Agentes penitenciários protestam por trabalho
17 de janeiro: Em Brasília, agentes penitenciários reivindicam a contratação de profissionais aprovados em concursos públicos e melhores condições de trabalho. Segundo a Federação Brasileira dos Servidores Penitenciários, o Brasil teria de aumentar em 30 vezes o número de agentes penitenciários para atender à recomendação nacional de um agente para cada cinco presos.
Foto: Agência Brasil/M. Casal Jr.
Caos chega às ruas de Natal
18 de janeiro: Na capital Natal, ao menos 14 ônibus, dois micro-ônibus, um carro do governo, cinco viaturas da polícia, duas delegacias e um prédio de uma secretaria de Saúde foram alvos de atos criminosos. O vandalismo ocorreu depois de 220 detentos terem sido transferidos do presídio de Alcaçuz (RN). A polícia também registrou quebradeiras nas cidades de Macau, Parnamirim e Caicó.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Proteção às fronteiras
19 de janeiro: O ministro da Defesa, Raul Jungmann, visita o Sistema Integrado de Sensoriamento em Dourados (MS), próximo à fronteira com o Paraguai. O governo investirá 450 milhões de reais no Sisfron, que usará radares e câmeras para monitorar os mais de 16 mil km de fronteiras contra o narcotráfico. O Brasil é hoje o principal ponto de saída de cocaína produzida na América do Sul para a Europa.
Foto: Agência Brasil/V. Campanato
Campo de guerra em Alcaçuz
19 de janeiro: A confusão no presídio de Alcaçuz, em Nísia Floresta (RN), pulou os muros da penitenciária e chegou às ruas de Natal e cidades próximas, que foram palco de ao menos 26 veículos incendiados e diversos prédios apedrejados. Militares foram acionados para tomar o controle da segurança nas cidades.