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"Política de Estado de direitos humanos está enfraquecida"

Karina Gomes
20 de fevereiro de 2019

Grupo de 20 juristas, intelectuais e ativistas lança a Comissão Arns, para monitorar direitos humanos no Brasil e buscar diálogo. Em entrevista, seu presidente, Paulo Sérgio Pinheiro, fala em escalada de violações.

Pinheiro é presidente da Comissão de Inquérito sobre a Síria da ONU e ex-secretário dos direitos humanos no governo FHC
Pinheiro é presidente da Comissão de Inquérito sobre a Síria da ONU e ex-secretário dos direitos humanos no governo FHCFoto: Fabrice Coffrini/AFP/Getty Images

Dar visibilidade a graves violações na área de direitos humanos e dialogar com autoridades são os principais objetivos da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, lançada nesta quarta-feira (20/02) em São Paulo.

A comissão, batizada com o nome do cardeal que foi um ícone da luta pelos direitos humanos durante a ditadura militar, é formada por um grupo de 20 juristas, intelectuais, jornalistas e ativistas. Entre os membros, estão seis ex-ministros de diferentes governos.

Em entrevista à DW Brasil, o presidente da Comissão Arns, Paulo Sérgio Pinheiro, afirma que há um retrocesso na política de Estado de defesa dos direitos humanos que foi vigente em todos os governos desde a redemocratização. "O Brasil era até então um interlocutor confiável nos organismos internacionais, apesar do nosso recorde de violações em diversas áreas", disse.

Para a comissão, a flexibilização de leis ambientais e de demarcação de terras indígenas, o decreto que permite posse de armas e o pacote anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, são sinais de enfraquecimento da defesa dos direitos humanos no país.  

Pinheiro, que é presidente da Comissão de Inquérito sobre a Síria da ONU e ex-secretário dos direitos humanos no governo FHC, pondera que o objetivo da comissão não é ser oposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro, mas um instrumento de diálogo para dar visibilidade e acompanhar casos graves de violações de direitos humanos no país. "Não é o governo, mas as políticas que o governo decide que são o alvo do nosso diálogo", observa.

Além de Pinheiro, formam a comissão: Margarida Genevois (presidente de honra), André Singer, Antonio Claudio Mariz de Oliveira, Ailton Krenak, Belisário dos Santos Jr., Claudia Costin, Fabio Konder Comparato, José Carlos Dias, José Gregori, José Vicente, Laura Greenhalgh, Luiz Carlos Bresser-Pereira, Luiz Felipe de Alencastro, Maria Victoria Benevides, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Oscar Vilhena Vieira, Paulo Vannuchi, Sueli Carneiro e Vladimir Safatle.

DW Brasil: Como foi articulada a criação da Comissão Arns?

Paulo Sérgio Pinheiro: Essa comissão surge depois de várias reuniões nos últimos três anos, que começaram especialmente depois da deposição da presidenta Dilma. Começamos a ficar impressionados com o fato de que a comunidade dos direitos humanos ficou dividida em relação ao impeachment. Nós achamos que era razoável tentar superar essa divisão e também responder à escalada de violações de direitos humanos no país, com as invasões de universidades federais pela Polícia Federal e de assembleias e sindicatos pelas polícias Civil e Militar, além de violações recorrentes do Brasil, como execuções extrajudiciais, casos de tortura, massacres de adolescentes, racismo e discriminação, e também o discurso de ódio e de intolerância e ameaças – especialmente na última campanha presidencial – contra defensores dos direitos humanos. Mais recentemente, vemos bandeiras de retrocesso em relação à política de Estado que foi vigente em todos os governos, de Sarney até a presidenta Dilma, que implementaram os direitos humanos e não negaram as nossas violações nos órgãos multilaterais. Graças a isso, o Brasil era até então um interlocutor confiável, apesar do nosso recorde de violações. Devido a esses fatores, em novembro do ano passado, nós tomamos a decisão junto com os colegas que estavam disponíveis de propormos a criação dessa comissão.

A comissão afirma que há retrocessos em conquistas na área de direitos humanos asseguradas pela Constituição. De que forma isso tem se agravado? 

Antes de mais nada, eu gostaria de dizer que a comissão não é um órgão de oposição ao atual governo federal. Outras comissões, como a Comissão Justiça e Paz e a Comissão Teotônio Vilela, dialogaram com todos os generais, presidentes, governadores e ditadores. Durante esses 30 anos, essas duas comissões dialogaram com todos os governos pela defesa principal de uma política de Estado. Há um sentimento de que essa política de Estado vem sendo enfraquecida na administração atual com, por exemplo, as medidas de flexibilização de leis ambientais e de demarcação de terras indígenas, a ampliação dos poderes de classificação de sigilo – diminuindo a Lei de Acesso à Informação –, e o decreto estabelecendo a posse de até quatro armas para cada cidadão, quando o planeta inteiro sabe que isso ajuda a aumentar a violência e os homicídios. Há também um grande questionamento sobre a legitimidade de organizações não governamentais, de ativistas, jornalistas e acadêmicos. Nós achamos que tudo isso são sinais, mas não vamos sair agora fazendo campanha contra o governo. O que nós queremos fazer é dialogar respeitosamente sobre políticas concretas. Não é o governo, mas as políticas que o governo decide que são o alvo do nosso diálogo.

A Comissão Arns tem se posicionado de maneira crítica em relação ao pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro. Quais são as principais objeções aos pontos da proposta?

São 14 leis mudando. Os temas que mais nos preocupam são a anulação de recursos no processo criminal, a impunidade para crimes de homicídio cometidos por policiais militares e o agravamento de penas, que é tiro no pé garantido e não aumenta a segurança da população. A permissão de posse de armas também irá agravar o número de homicídios no Brasil. O Estatuto do Desarmamento, ao contrário, tinha ajudado a diminuir. Então, alguns aspectos desse pacote poderão merecer a atenção da comissão. Nós não estamos saindo em campanha contra o ministro da Justiça. Isso é furado e não tem nenhum sentido. O que nós queremos é um diálogo de alto nível e respeitoso sobre as objeções que juristas, advogados e a sociedade civil e os centros de pesquisa têm feito e que não estão sendo levados em conta, como o Fórum Brasileiro de Segurança e o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). Há 12 anos, o Fórum tem produzido ciência sobre como diminuir a criminalidade e tudo isso não está sendo levado em conta. Eu acho que a sociedade civil tem que ter a oportunidade de opinar sobre essas medidas que estão sendo propostas.    

Na semana passada, os senhores se reuniram em Brasília com membros do Conselho Nacional de Direitos Humanos e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge. A Comissão Arns prevê algum tipo de articulação com o atual governo?

Foi uma reunião de duas horas e meia com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que é uma antiga defensora dos direitos dos povos indígenas e está extremamente preocupada com esses ataques contra as demarcações de terras indígenas e o desrespeito aos direitos dessas populações. Nós começamos a dialogar e vamos certamente fazer outras visitas objetivando a discussão sobre problemas concretos.

Qual será o principal trabalho da comissão? Além do diálogo, os senhores farão monitoramento de violações ou apresentar propostas ao governo?

Primeiro, deve ficar claro que a comissão não vai ser um escritório de recebimento de demandas, casos ou reclamações. A comissão vai selecionar alguns casos exemplares que nós achamos que poderemos dar visibilidade. Já que tem vários colegas bastante visíveis e com experiência tanto na sociedade civil, quanto em governos democráticos, nós achamos que podemos ajudar nesse sentido. Nessa semana, nós tivemos uma reunião com 70 participantes de 30 entidades de São Paulo, entre organizações de direitos humanos das periferias, redes populares e redes de advogados, para avaliar como poderemos interagir. É o que a Comissão Teotônio Vilela fez durante 30 anos, de 1983 a 2013, como visitar locais e autoridades, fazer conferências de imprensa, emitir pronunciamentos e criar seminários e conferências sobre temas precisos. Por exemplo, a doutora Raquel Dodge nos ofereceu acolher reuniões desse tipo em Brasília. Então, é um cardápio muito variado que vai ser determinado pelo acompanhamento da situação dos direitos humanos no Brasil pelos nossos vários colaboradores, incluindo estudantes e ativistas, em termos de selecionarmos algumas pautas. Vamos decolar o bonde nesta quarta-feira. Nós não temos ainda um plano de rota claramente estabelecido. A partir da semana que vem, um grupo executivo dos 20 membros fundadores vai tentar mapear quais intervenções nós poderemos ainda ter neste semestre.

A comissão pretende trabalhar juntamente a organismos internacionais?

É claro que nos valendo do prestígio do Brasil nos órgãos bilaterais, tanto o sistema ONU quanto o sistema interamericano de direitos humanos estão certamente no horizonte da nossa prática.

Os direitos humanos são frequentemente vistos no Brasil com certa desconfiança e até hostilidade. A comissão prevê alguma iniciativa para mudar essa percepção?

Nesses 30 anos de defesa de direitos humanos, houve altos e baixos em termos da percepção da população brasileira. Dado o caos da segurança pública, a população mais pobre tem toda a razão de querer mais segurança, mas ela não será atendida pelas medidas do pacote anticrime de Moro. Aumentar a impunidade de execuções extrajudiciais, aumentar as penas e a população carcerária – e boa parte está presa ilegalmente sem nenhuma sentença – não funciona. Para lidar com o crime organizado, isso não vai adiantar nada. É preciso inteligência, infiltração e não essas medidas de bangue-bangue que foram propostas pelo ministro da Justiça. Certamente, a questão da percepção dos direitos humanos por aqueles grupos sociais discriminados que são as maiores vítimas do desrespeito aos direitos humanos precisa ser aperfeiçoada. Isso ficou muito claro numa pesquisa eleitoral em que a bandeira da ‘mão dura' prevaleceu, mas os que escolheram apoiar essa bandeira não sabem que eles serão os pilotos de prova dessas políticas. Não são os brancos, não são as elites, não são os adolescentes brancos de classe média, mas os jovens e adolescentes negros, os pobres e miseráveis, tradicionalmente as vítimas de homicídio no Brasil.

A comissão homenageia dom Paulo Evaristo Arns, que foi um símbolo da defesa dos direitos humanos e da democracia durante a ditadura militar e também criador da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. Tentou-se estabelecer algum paralelo entre o trabalho das duas comissões?

Por um lado, Dom Paulo tem todo um papel em relação ao funcionamento da Igreja Católica nas comunidades de base, assim como na criação da Comissão de Justiça e Paz e o centro de apoio aos refugiados latino-americanos. Dom Paulo também foi chave na preparação do dossiê sobre tortura e desaparecimentos "Brasil: Nunca Mais”, que foi o primeiro relatório sobre os crimes praticados por agentes de Estado durante a ditadura militar. O Dom Paulo que é referência da nossa comissão é também o autor da transição democrática, junto com Tancredo Neves, Leonel Brizola, Franco Montoro e Teotônio Vilela. Tanto numa atuação quanto na outra ele sempre se baseava no respeito aos direitos humanos. Então, nossos colegas acharam que essa seria uma oportunidade de relembrar esse legado de Dom Paulo. 

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