Agentes negros morrem mais do que colegas brancos e são minoria desproporcional nos cargos mais altos. Mesmo sofrendo racismo organizacional, muitos enxergam o mundo e agem pela lente da instituição, diz especialista.
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Em média, um policial foi assassinado - dentro ou fora do serviço - no Brasil a cada dois dias em 2020, segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ao todo, são 194 policiais, entre civis e militares. Destes,121 eram negros, o equivalente a seis em cada dez.
Policiais negros são a minoria nas policias do Brasil. Na Polícia Militar, são cerca de 150 mil dos mais de 385 mil PMs. Já na Polícia Civil, são ainda menos presentes, menos de 24 mil dentre 94 mil.
A presença de policiais negros nos efetivos não impede que a maior parte das vítimas da letalidade policial no país também sejam negras. Em 2019, mais de 6.351 pessoas foram mortas por policiais civis e militares, destas, cerca de 5.000 eram negras — oito em cada dez.
Os números falam por si, mas não explicam por que a presença de policiais negros nas forças de segurança não impede a violência contra a população negra.
Isso acontece porque policiais negros são, sobretudo, policiais, segundo Livio Rocha, investigador da polícia civil e conselheiro do FBSP.
"Ser policial é um modo de vida. Na polícia, é o modo de ver o mundo, pela lente da instituição", afirma.
A pesquisa de doutorado de Rocha na Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo, abrange o que chama de racismo organizacional, aquele que parte da instituição contra as pessoas negras que integram a própria instituição.
Embora o racismo organizacional não esteja restrito à polícia, o investigador ressalta que a prática discriminatória dentro das forças de segurança eleva o perigo da violência nas ruas.
"O policial carrega na cintura o poder entre a vida e a morte, por isso é essencial combater o racismo na polícia."
A farda como ascensão social
A busca por ascender socialmente é um dos fatores que podem levar jovens a ingressarem nas forças de segurança, em especial na Polícia Militar, que tem um salário atrativo e requer um diploma de conclusão do Ensino Médio.
"Um policial militar com Ensino Médio começa ganhando mais de R$ 3.000. Que outro emprego cujo exigência é ter Ensino Médio completo e que abre milhares de vagas por ano que paga mais de R$ 3.000 como salário inicial?", diz.
Para se ter uma ideia, no Rio Grande do Norte, estado com a menor remuneração do país para soldados da Polícia Militar, o salário inicial líquido em 2021 era de R$ 3.500. A média brasileira é de 5.800.
O salário não é o único fator. Questões externas à polícia também podem levar negros ao ingresso na corporação.
Jovens negros têm maior taxa de desemprego. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua (PNAD) de agosto de 2022, negros representam quase dois terços dos desempregados do país.
"Um cara que não recebe educação, saúde ou respeito da segurança pública, uma hora, decide virar o carrasco, ter respeito. Isso porque vivemos em uma sociedade violenta na qual aquele que tem poder de fogo é respeitado", analisa Rocha.
O desejo de estar do outro lado da abordagem policial, para evitar truculência e ter reconhecida a sua integridade ética e moral, pode ser um fator para o ingresso de negros nas polícias, segundo a antropóloga Aline Maia, pesquisadora do Laboratório de Antropologia e História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Ascensão pela farda não é novidade
A ascensão social de negros por meio da farda não é novidade. Durante a escravidão, negros escravizados e alforriados ingressavam nas forças de segurança em busca da fuga de senhores de engenho e de respeito.
Apesar disso, hoje, os negros ainda são minoria nas patentes mais altas das forças de segurança. Há uma disparidade dentro das policiais entre os postos mais altos e mais baixos da cadeia de comando, segundo Maia.
"Na polícia há uma estratificação na voz de comando das hierarquias. Os praças são majoritariamente negros e os oficiais são pessoas que se autodeclaram brancas. Algumas carreiras de prestígio, como a de delegado, tem uma camada acentuada de pessoas brancas", diz.
Maia explica que a criação do que seria a polícia militar como a conhecemos hoje nasce com a chegada da coroa portuguesa ao Brasil no século 19. Ela afirma que a massa de escravizados no país e a iminência da escravidão contribuíram para a um policiamento cujo princípio era garantir a supremacia branca.
Ela diz ainda que posições mais baixas nas cadeias de comando se devem ao que chama de trabalho sujo e que isso também não é novidade.
A pesquisadora cita a guerra do Paraguai como exemplo. O decreto Nº 3.725, de novembro de 1866, determinava que os escravos que estivessem em condições de servir o Exército na guerra contra o país vizinho seriam libertos.
"O racismo estrutural faz com que essas posições de menor prestígio tenham uma ocupação massiva da população negra. São trabalhos que a branquitude não quer fazer", afirma a antropóloga.
O racismo e os filmes hollywoodianos
O drama "Green Book" foi premiado com o Oscar de melhor filme de 2019. O tema da segregação racial já foi abordado por Hollywood diversas vezes no passado.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
Melhor filme de 2019
A história contada pelo diretor Peter Farrelly é baseada em fatos reais. Viggo Mortensen (esq.) faz o papel de um chofer de um pianista negro que viaja pelos estados do sul dos EUA, orientando-se pelo "Green Book: o Guia". A particularidade: o livro informa motoristas sobre restaurantes e hotéis que são exclusivamente para pessoas negras – um sinal claro de segregação racial.
Foto: picture alliance/AP/Universal/P. Perret
"Infiltrado na Klan"
Em 2019, o Oscar do melhor roteiro adaptado foi para um filme que também aborda a segregação racial. "Infiltrado na Klan", do diretor Spike Lee, remonta igualmente a uma história verídica. Nos anos 1970, um policial negro consegue se infiltrar na Ku Klux Klan. Desde a década de 1980, o cineasta afro-americano vem abordando o tema do racismo nos EUA.
Foto: D. Lee/F. Features
"Pantera Negra"
Um terceiro filme que aborda – no sentido mais amplo – o tema do racismo também arrebatou três Oscar este ano. "Pantera Negra", adaptação de HQ dos estúdios Marvel, apresentou pela primeira vez um super-herói negro. Os autores de quadrinhos Stan Lee e Jack Kirby criaram os personagens na década de 1960, no auge do movimento pelos direitos civis.
Foto: picture-alliance/Marvel Studios
Homens brancos julgam…
Em 1957, o filme "Doze homens e uma sentença" foi uma das primeiras obras do cinema americano a tratar do racismo. Como thriller judicial em primeira linha, a estreia cinematográfica do diretor Sidney Lumet também abordava os preconceitos dos doze jurados brancos, responsáveis pelo veredicto contra um jovem porto-riquenho no tribunal.
Foto: picture-alliance/United Archives
"No calor da noite"
Dez anos depois, foi Sidney Poitier quem abriu mais portas em Hollywood. No drama "No calor da noite", Poitier interpreta um policial do norte que tem de resolver um caso no sul dos EUA e se depara com um racismo abismal. O filme foi premiado com cinco Oscars – e coroou Poitier como primeiro superastro afro-americano do cinema do país.
Foto: picture-alliance/United Archiv/TBM
"Mississippi em chamas"
Rodado nos EUA pelo diretor britânico Alan Parker, em 1988, "Mississippi em chamas" aborda assassinatos de negros e investigações do FBI. Um crítico escreveu: "A direção sensacionalista de Parker (faz) praticamente tudo para transformar 'Mississippi em chamas' num pastiche de filme de gângster. Mesmo assim, a película rompe um tabu: põe a culpa em toda uma camada burguesa de americanos brancos."
Foto: ORION PICTURES CORPORATION
"Conduzindo Miss Daisy"
Um ano depois, o australiano Bruce Beresford trouxe às telas a história sentimental produzida em Hollywood "Conduzindo Miss Daisy". Da mesma forma que "Green Book: o Guia", este filme também foi um exemplo de como se pode lidar com o tema no cinema: de forma conciliatória e sentimental. Ele conseguiu levar quatro Oscars.
Foto: picture-alliance/Mary Evans Picture Library/Majestic Films
"Gran Torino"
Em 2008, o diretor e estrela de Hollywood Clint Eastwood surpreendeu seus fãs com o drama "Gran Torino". Nele, Eastwood interpreta um americano racista, que nutre preconceitos principalmente contra a população de origem asiática nos EUA. No decorrer do filme, o personagem interpretado por Eastwood se transforma por meio de vivências pessoais para melhor.
Foto: Imago//Unimedia Images
Mais Clint Eastwood
Um ano depois, Eastwood abordava novamente, de outra forma, o tema do racismo. No drama biográfico esportivo "Invictus", ele conta a história da seleção sul-africana de rúgbi. "Conquistando o inimigo" foi o título do livro original. Eastwood lançou um olhar sobre a África do Sul na era pós-apartheid. Morgan Freeman fez o papel de Nelson Mandela.
Foto: AP
"O mordomo da Casa Branca"
Este filme também se encaixa na tradição de filmes americanos sobre o racismo com o ímpeto esclarecedor: "O mordomo da Casa Branca" (2013), com Forest Whitaker e Oprah Winfrey nos papéis principais. Ele conta a história baseada em fatos verídicos autênticos do mordomo afro-americano Eugene Allen, que trabalhou para oito presidentes dos EUA. A película também reflete a recente história americana.
Foto: picture alliance/AP Images
"Doze anos de escravidão"
Lançado nos cinemas em 2013 e premiado com o Oscar de melhor filme um ano depois, "Doze anos de escravidão" faz um retrospecto dos primórdios da escravatura nos EUA. O filme do artista britânico Steve McQueen, que também faz sucesso como diretor de longas-metragens, encenou o drama sobre racismo com atores famosos – e convenceu a Academia de Hollywood.
Um ano depois, a diretora americana Ava DuVernay também mergulhou na história. Em "Selma", ela abordou as marchas de ativistas dos direitos dos negros e da população em geral da cidade de Selma para Montgomery, no estado do Alabama. No filme, David Oyelowo interpreta Martin Luther King, Tom Wilkinson (foto) aparece como o insensível presidente Lyndon B. Johnson.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Nishijima
"Loving: uma história de amor"
Três anos atrás, o diretor americano Jeff Nichols surpreendeu o público com o sensível drama "Loving: uma história de amor", no qual também se resgata um capítulo da história do racismo nos EUA. O filme destaca a luta de um casal que se rebela contra a lei dos casamentos mistos proibidos – conseguindo êxito em tribunal.
Foto: picture-alliance/ZUMAPRESS.com/Focus Features
"Corra"
Certamente uma das contribuições mais originais sobre o tema do racismo no cinema foi o filme "Corra" em 2017. Ao contrário de tantas produções hollywoodianas bem-intencionadas, mas muitas vezes piegas, o diretor afro-americano Jordan Peele fez um filme de gênero no qual o racismo é apresentado com elementos de terror e comédia – o resultado é uma mescla de gêneros muito original e convincente.
No mesmo ano, o diretor Barry Jenkins conquistou o Oscar de melhor filme com "Moonlight: sob a luz do luar". Em três capítulos, Jenkins conta a história de um homossexual afro-americano. Esteticamente convincente, o filme é um exemplo de obra cinematográfica formalmente interessante e que implementa seu tema embasada e diferenciadamente, dispensando melodrama e sentimentalismo.
Foto: picture alliance/AP Photo/D. Bornfriend
"Eu não sou seu negro"
Além dos muitos filmes com os quais o cinema americano tem contribuído para o assunto nas últimas décadas, houve documentários esporádicos. Em "Eu não sou seu negro" (2016), o diretor haitiano Raoul Peck baseou de forma muito convincente seu olhar retrospectivo sobre o racismo nos EUA, especialmente em textos do escritor afro-americano James Baldwin.