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Ponto final! Já era! Fim de papo! Finito!

Simone de Mello30 de agosto de 2005

Confira novas da literatura austríaca nesta edição das Notas Literárias. E a resenha do último romance de Andreas Maier – "Kirillow" – batizado com o nome de um personagem de "Os Demônios", de Dostoiévski.

'Livro é como espelho: quando um macaco o mira, não é um apóstolo que vai olhar de volta.' (Georg Christoph Lichtenberg)Foto: dpa
O Duden de ortografia voltou a se tornar um best-sellerFoto: Duden

A reforma ortográfica nos países de língua alemã entrou definitivamente em vigor em 1º de agosto, após sete anos (bíblicos!) de transição, um período no qual tanto as regras antigas quanto as novas coexistiram. Porém, apenas em parte: algumas questões (casos controversos de divisão de palavras anteriormente escritas juntas, separação de sílabas e pontuação) ainda têm que ser resolvidas pelo Conselho de Ortografia Alemã. Até essas pendências serem solucionadas, porém, os Estados da Baviera e da Renânia do Norte-Vestfália – onde vivem 30 milhões de pessoas, ou seja, um terço da população alemã – preferiram adiar a ratificação da reforma.

Fora da Alemanha, também há outros poréns. Dez dias antes de as novas regras entrarem em vigor, o Ministério austríaco da Educação, Ciência e Cultura divulgou um comunicado: "A reforma ortográfica na Áustria não é nenhum caos!" O ponto de exclamação, perfeitamente condizente com as normas gramaticais, denuncia – porém – um certo desespero: "Nossas escolas precisam de garantia, continuidade e segurança".

Exclamação pontuada!

Elfriede JelinekFoto: AP

O desespero é justificado. Afinal, o boicote contra as novas normas ortográficas parte de vozes como Elfriede Jelinek, prêmio Nobel de Literatura, e Friederike Mayröcker, uma das maiores poetas vivas de língua alemã. Foram as duas que lançaram, junto com Gert Jonke, Julian Schutting e Marlene Streeruwitz, um manifesto intitulado: "Schluss! Aus! Ende! Finito!" (Ponto final! Já era! Fim de papo! Finito!), anunciando o fim da conversa, com quatro pontos de exclamação mais expressivos que os do ministério e um teor bem mais explosivo que as críticas feitas pelos escritores até então.

A crítica mais propagada entre os escritores alemães é a de que determinadas normas, como a separação de palavras escritas até então juntas, eliminam a potencial ambigüidade de uma língua repleta de composições lexicais. Da parte dos austríacos, a tônica sempre foi o efeito unificador da nova reforma e a conseqüente ameaça à pluralidade lingüística.

Camisa-de-força ortográfica

O novo argumento dos austríacos é uma denúncia (nem tão nova) que consta de um livro de Hanno Birken-Bertsch e Reinhard Markner, publicado em 2000 e intitulado Reforma Ortográfica e Nazismo. Os autores, membros da Academia Alemã de Língua e Literatura, mostram uma continuidade entre os planos de unificação ortográfica do Terceiro Reich, suspensos em 1944 por não serem uma prioridade bélica, e as atuais alterações da ortografia.

Os argumentos são semelhantes: facilitar a grafia para o aprendizado nas escolas, com base em justificativas pseudo-etimológicas, e acima de tudo, batendo na tecla da prioridade da língua oral.

Friederike MayröckerFoto: AP

Mesmo nas regiões onde as novas regras já vigoram, as violações das normas ainda pendentes não são consideradas incorretas, mas sim "obsoletas". E com isso, os escritores – renovadores da língua escrita –, se tornaram retrógrados: pelo menos nos olhos da lei.

Gerador de dissensos

'Das war Österreich', de Robert Menasse (Suhrkamp, 2005)

"A Áustria não é nenhum caos!" Esta poderia ser a máxima da Segunda República de Viena continuamente minada pelos intelectuais austríacos. Intelectual – na definição de Robert Menasse, romancista e ensaísta que trabalhou como professor assistente da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo de 1981 a 1988 e ambientou alguns de seus romances (como Espelho Cego) no Brasil – é aquele que transforma o consenso público em dissenso. De fato, na Áustria sobretudo.

Robert MenasseFoto: AP

Em sua recém-publicada coletânea de ensaios Das war Österreich – Gesammelte Essays zum Land ohne Eigenschaften (A Áustria já era – Ensaios Coligidos acerca do País Sem Qualidades. Frankfurt: Suhrkamp, 2005), Menasse investiga e comenta a história austríaca da Segunda República (desde 1945) até hoje. O principal alvo do escritor é a tendência conciliatória e harmonizadora que impera no país e uma sociedade avessa a encarar seus conflitos. O livro foi celebrado pela crítica alemã como uma "explicação da Áustria através do olhar arguto de um espírito alerta como poucos" (Süddeutsche Zeitung).

Diário de um nômade

'Gestern Unterwegs', de Peter Handke (Jung und Jung, 2005)

A recém-publicada coletânea de esparsos de um outro austríaco, desta vez Peter Handke, também fascinou a crítica alemã. Com Gestern Unterwegs – Aufzeichnungen November 1987 bis Juli 1990 (Ontem a Caminho – Anotações de Novembro de 1987 a Julho de 1990, Wien, Jung und Jung Verlag, 2005), Handke lança mais um de seus cahiers – um gênero que o escritor cultiva desde Gewicht der Welt (Peso do Mundo, Suhrkamp, 1977) até Am Felsfenster morgens (Na Janela do Rochedo de Manhã, Residenz Verlag, 1998).

Peter HandkeFoto: dpa

Durante o período indicado pelo título, o autor viveu sem residência fixa, de forma que as anotações são uma espécie de diário de um nômade. O itinerário começa nos vilarejos do Karst – região da Eslovênia e Croácia caracterizada pela erosão fluvial (carso) –, atravessa a Iugoslávia até o sul, chega até a Grécia, salta para o Egito e Inglaterra, Espanha e Portugal, França e Itália, Alasca e Japão. O que a crítica reconhece neste novo volume de Handke é a apurada observação de um romancista escolado na arte da descrição. "Um livro a ser lido como que em transe." (tageszeitung)

Leia a seguir a resenha de Kirillow, de Andreas Maier (Suhrkamp, 2005).

'Kirillow', de Andreas Maier(Suhrkamp, 2005)

Leia abaixo a resenha de Kirillow, de Andreas Maier (Suhrkamp, 2005).

Andreas MaierFoto: dpa

Em seus dois primeiros romances – Wäldchestag (2000) e Klausen (2002) – o escritor Andreas Maier, nascido em 1967, conquistou público e crítica com uma narrativa que consiste apenas de boatos, sem que se possam destilar fatos por trás do emaranhado de opiniões e versões diversas. O uso radical da forma verbal conjuntiva, usada na língua alemã especificamente para indicar citação, foi derivado diretamente do austríaco Thomas Bernhard, sobre o qual Maier escreveu sua tese de doutorado.

Em seu mais recente romance, Kirillow (2005), Maier mantém esta tônica, mas se afasta da pureza de suas formas narrativas iniciais, talvez após a crítica já ter começado a reclamar que Maier só faz diluir Bernhard, cujo humor ferino parece realmente inimitável. Os fatos contam neste livro, embora não apareçam desvinculados de uma aura discursiva. Conflito de jovens rebeldes sem causa contra o establishment, confronto de estudantes radicais com um grupo de russos de ascendência alemã, manifestações contra o transporte do lixo atômico – eventos sempre entremeados de muita retórica.

Será que existe um mundo além da retórica? Talvez apenas post mortem. Pelo menos o que protagonista Julian propaga é que a única ação possível é o suicídio. Aliás, Kirillow é o personagem suicida de Os Demônios, de Dostoiévski. Neste romance, no entanto, Kirillow é um russo que escreveu um manifesto, nada mais que um tratado sobre o estado do mundo. Para esse misterioso pensador, sobre o qual circulam apenas boatos, sem que ninguém o tenha conhecido pessoalmente, a razão de todo o mal é a busca da felicidade. Só quando o ser humano parar de buscar a felicidade é que poderá ser feliz.

Mas a grande busca de Maier em Kirillow é pelo que está por trás das palavras. Enquanto o gesto retórico dos romances anteriores era auto-suficiente e os personagens fossem mais locutores e porta-vozes de um discurso esvaziado de individualidade, as personagens deste novo livro são mais consistentes. Os protagonistas masculinos, o agitador Julian Nagel e o lacônico Frank Kober, representam duas faces do mesmo dilema: a retórica e o silêncio.

Thomas Bernhard (1931–1989), foto de junho de 1976Foto: dpa

No mais tardar com a publicação deste livro, a crítica deixou de associar Maier a Bernhard. O livro causou pouco entusiasmo em quem o elogiou pela arte narrativa ou pelo teor crítico. Mas provocou diversas reações avessas. O que mais incomodou a crítica foi o fato de Maier não fazer "distinção entre comentários cretinos e inteligentes" (Frankfurter Rundschau) e recorrer a um "humor de tio" para transmitir a "mensagem de que tudo necessariamente desaparece em meio ao falatório" (Süddeutsche Zeitung).

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