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"População tem que participar da transformação do Rio"

Fernando Caulyt27 de abril de 2016

A cem dias para o início dos Jogos, observador alemão critica preparação da Rio 2016 e modelo de cidade-empresa. Segundo ele, isso entra em conflito com interesses de classes sociais na organização do espaço público.

Brasilien Carioca Arenen im Barra Olympic Park in Rio de Janeiro
Foto: picture-alliance/dpa/R. Sette Camara

A cem dias do início dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, a população e turistas veem transformações profundas na cidade. Por todos os lados, as obras das instalações esportivas e de mobilidade urbana, como metrô e corredores de ônibus, seguem a todo vapor.

Porém, para Dawid Danilo Bartelt, diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil, o processo de preparação e o modelo usado para a cidade receber os Jogos têm problemas.

"A concepção das obras para esses megaeventos segue a lógica de maximizar a realização dos interesses dos investidores", afirma. "Ao mesmo tempo, a cidade pode – e deve – ser vista como um espaço de convivência de diferentes grupos e classes sociais que têm interesses diferentes em organizar os espaços públicos."

DW Brasil: Como o senhor vê o entusiasmo e o espírito olímpico dos cariocas faltando cem dias para o início dos Jogos Olímpicos?

Dawid Bartelt: No estado espiritual atual dos cariocas, os Jogos não têm nenhuma prioridade. Por enquanto, a venda de ingressos está aquém das expectativas dos organizadores. Mas podemos esperar que, assim que os Jogos começarem, com uma cobertura maciça pela mídia, as pessoas vão se interessar. Acho até compreensível, porque as pessoas realmente têm outros problemas para se preocupar, alguns com a situação política em Brasília e outros com a possibilidade de se tornarem desempregados, caso já não estejam. A crise econômica, evidentemente, já faz seus efeitos. O desemprego ainda não é alarmante, mas está aumentando.

A instabilidade política e a crise econômica devem atrapalhar a grande festa do esporte?

O Brasil está novamente na mira da mídia internacional, depois de um período de pouco interesse depois da Copa do Mundo. Pegando carona nos Jogos, o público internacional está tomando conhecimento da crise política no Brasil e a preocupação no exterior é se isso vai afetar a organização e execução do evento. Eu acredito que não, até porque a execução dos Jogos é principalmente uma tarefa do estado e do município. Ainda que saibamos que o estado do Rio de Janeiro não vá bem financeiramente, acredito que as autoridades estão preparadas.

Como você avalia a preparação da cidade para os Jogos?

A preparação para os megaeventos é um processo que vem ocorrendo "de qualquer jeito". Entre os exemplos, o aeroporto internacional ainda está em obras, mas, de alguma maneira, ele vai ficar apresentável para os turistas e atletas, assim como as instalações esportivas. Mas esse "de qualquer jeito" tem um preço: como exemplo, a morte de pessoas na semana passada após o desabamento de parte de uma ciclovia em São Conrado, construída de maneira absolutamente falha.

O setor de construção, que está no centro de um dos maiores escândalos de corrupção do período pós-ditadura, demonstra que a execução de obras está sendo seriamente prejudicada por esquema de desvio de dinheiro neste setor que é especialmente suscetível a corrupção – uma coisa que não vale só para o Brasil, mas também para o mundo inteiro.

Como você vê a cidade sendo palco de inúmeros megaventos?

Há muito tempo o Rio de Janeiro vem se apresentando e concorrendo com outras cidades para receber os megaeventos. E, assim, aplica-se um modelo de cidade em que você poderia chamar de cidade-empresa: a cidade é um ator econômico e, antes de mais nada, compete internacionalmente com outras cidades por fluxos de capital que procuram possibilidades de investimentos. A concepção das obras para esses megaeventos segue essa lógica, de maximizar a realização dos interesses dos investidores.

Bartelt: Vila dos Atletas é um dos exemplos do modelo de cidade-empresaFoto: picture-alliance/dpa/M. Sayao

Ao mesmo tempo, a cidade pode – e deve – ser vista como um espaço de convivência de diferentes grupos e classes sociais que têm interesses diferentes em organizar os espaços públicos. Uma cidade é mais do que um lugar de investimentos para grandes capitais. E essas duas concepções entram em conflito, principalmente numa cidade cujos dirigentes não se cansam em atrair e executar megaeventos um atrás do outro, a exemplo dos Jogos Pan-Americanos [2007], Mundiais Militares [2011], Jornada Mundial da Juventude [2013], Copa do Mundo [2014] e, agora, os Jogos Olímpicos.

Pela experiência até agora vista no Rio, vale a pena receber os Jogos?

Os megaeventos ficaram muito caros. Na década de 1990, cada edição dos Jogos custava na casa dos milhões de dólares e, hoje, estão na casa dos bilhões de dólares. A Copa do Mundo no Brasil foi a mais cara da história. Já houve Jogos Olímpicos mais caros, mas o evento no Brasil vai custar bem mais que a Copa, oficialmente quase 40 bilhões de reais. Nos dois eventos, de fato a maior parte dos custos está sendo coberto pelo orçamento público. A população brasileira tem o grande mérito de ter sido a primeira de um país-sede de megaeventos a ter feito protestos em junho de 2013 e ter chamado a atenção internacional a essa problemática.

Isso também foi uma lição que o município e o estado aprenderam, que você não pode fazer um megaevento sem apresentar um bom legado à população. O legado é peça-chave do discurso legitimador de megaeventos. Enquanto que na Copa discutimos muito sobre os chamados elefantes brancos, acredito que nos Jogos essa não será a questão principal, já que uma parte das instalações esportivas é temporária e vão ser desmontadas.

Como você avalia o fato de o bairro Barra da Tijuca, uma região longe do Centro, ser um dos palcos do evento?

Os Jogos estão servindo para valorizar e executar um processo que já vem desde os anos 1970 de desenhar um novo Rio de Janeiro na Barra da Tijuca, um local livre de favelas, de classe média e com um alto padrão de consumo. E esse processo foi intensificado e coroado, de certa forma, por meio dos Jogos. A ideia de atrair os Jogos e fazê-los na Barra, e não em outros lugares próximos do Centro, mais acessível, deve ser visto totalmente em função dessa lógica de valorização e investimentos imobiliários: milhares de apartamentos de alto luxo, em forma de condomínios, foram construídos na Vila dos Atletas e já estão sendo vendidos para uma população de alta renda.

Analista critica adiamentos constantes da despoluição da Baía de GuanabaraFoto: picture-alliance/dpa/Scorza

Então neste legado há também efeitos negativos?

Os benefícios são efeitos colaterais. Visto o dinheiro que foi investido, o legado poderia ter sido muito maior. Na região portuária, a revitalização é positiva, inclusive com a implantação de Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs), mas houve muito pouca preocupação com cerca de 30 mil pessoas que viviam na área. O aluguel social não dá para nada, e as habitações sociais previstas na região, se é que serão realmente construídas, abrigarão apenas uma pequena parte desta população que é de baixa renda.

Quanto à despoluição da Baia de Guanabara, se gastou mais de 1 bilhão de dólares, mas não houve melhora. Inclusive houve gafes em construir estações de tratamento e depois descobrirem que a rede de esgoto ainda não havia sido construída. A promessa era reduzir 80% da poluição da Baía toda. Agora, até 2030. Mas, com as condições financeiras do estado do Rio, estou muito cético de que as condições da Baía vão melhorar.

Não sou contra a realização de eventos de esportes de alto nível. Mas não podemos ser ingênuos no sentido de dizer que os Jogos são somente uma grande festa esportiva e não tem nenhuma implicação. A população deve participar da transformação da cidade onde mora, por isso os processos dos megaeventos no Brasil e no mundo apresentam falhas que são preocupantes e que têm que ser discutidas publicamente e, claro, melhorados nos futuros eventos.

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