Por que a China não sufoca os protestos em Hong Kong
Clifford Coonan fc
15 de agosto de 2019
Há razões para tanques chineses ainda não terem cruzado a fronteira: Pequim precisa de Hong Kong e de seu sistema capitalista. Uma repressão dura teria mais poder de minar a estabilidade no país do que os manifestantes.
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A China não precisa tanto da ex-colônia britânica quanto precisava em 1997, quando Hong Kong passou do domínio do Reino Unido para as mãos chinesas. Mas a região administrativa especial continua sendo um canal valioso para Pequim – canal esse que o governista Partido Comunista não pode correr o risco de abalar.
Nas últimas quatro décadas, a China emergiu como a segunda maior economia do mundo e parte integrante do sistema financeiro global. Essa ascensão, porém, foi facilitada por Hong Kong. Com uma reforma econômica ainda atrasada na China continental, é vital para Pequim ter acesso imediato ao capitalismo livre de Hong Kong.
Mesmo antes dos atuais protestos, Hong Kong e China não tinham uma grande relação de amor – apesar de o governo em Pequim expressar com frequência sua afeição por seus compatriotas do território semiautônomo. Para muitos habitantes da China continental, incluindo altas autoridades, Hong Kong não passa de uma criança mimada e indisciplinada.
Mas uma repressão dura liderada por Pequim em Hong Kong poderia minar a estabilidade na China em um grau muito maior do que seriam capazes os manifestantes mascarados. As repercussões logo se espalhariam de Hong Kong para o próprio continente, gerando um sentimento negativo que poderia assustar investidores e comprometer a capacidade da China de comercializar internacionalmente.
Pressão da disputa comercial entre EUA e China
A disputa comercial entre os Estados Unidos e a China e a inclusão da gigante de telecomunicações Huawei numa lista negra colocaram Pequim num impasse. Empresas chinesas foram obrigadas a se tornar menos dependentes da moeda estrangeira e da tecnologia, o que significa um foco maior sobre Hong Kong.
O investimento direto chinês em Hong Kong totaliza 620 bilhões de dólares – 70% a mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) do território semiautônomo. Das dez maiores ofertas públicas iniciais (IPO, na sigla em inglês, quando a empresa abre seu capital e passa a ser listada na Bolsa de Valores) desde 1986, nove são de companhias chinesas.
Em 2017, as empresas da China continental captaram 47 bilhões de dólares em açõese 66 bilhões de dólares em títulos de dívida emitidos por empresas no mercado de Hong Kong.
Apesar de anos de promessas de avançar nessa direção, o yuan ainda não é uma moeda totalmente convertível – capaz de liquidar transações financeiras livremente, ou seja, sem restrições ou dificuldades à compra e venda.
Dessa forma, os controles de capital restringem o movimento de capital financeiro através das fronteiras. Os depósitos de yuan em Hong Kong valem cerca de 100 bilhões de dólares.
Cerca de 60% do investimento externo da China continental – incluindo projetos no âmbito da Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), do presidente Xi Jinping – são canalizados através de Hong Kong.
Parte essencial da Grande Baía
E não são somente os mercados financeiros. Hong Kong é parte integrante do projeto "Área da Grande Baía", que inclui ainda Macau e as nove principais cidades da província de Guangdong. Esse polo tem uma população de 70 milhões de habitantes e um PIB de 1,5 trilhão de dólares.
A China precisa de Hong Kong para atenuar um panorama econômico cada vez mais sombrio. Os tempos de taxas de crescimento de dois dígitos acabaram. Dados mostram que o crescimento da produção industrial e as vendas no varejo – medidas-chave do bem-estar econômico da China – caíram em julho.
A China fez incursões em áreas tradicionalmente dominadas por Hong Kong, como o comércio portuário de contêineres. E o Partido Comunista tem construído alternativas, especialmente na capital financeira Xangai e no centro de inovação Shenzhen, mas eles não estão preparados ainda para substituir Hong Kong.
Em julho, 25 empresas estrearam no novo Conselho de Inovação Científica e Tecnológica, da Bolsa de Valores de Xangai, também conhecida como mercado STAR, que tem como objetivo atrair fundos do exterior, mas também aumentar o poder competitivo de Xangai em relação a Hong Kong.
Hong Kong oferece o tipo de flexibilidade com o qual os concorrentes da China continental apenas sonham. É também uma fonte vital para angariar fundos, como por exemplo, por meio de IPOs, para as empresas do continente. Isso é enfatizado por um ambiente regulatório firme que, para muitos investidores, é o melhor e o mais aberto da região.
Todos os anos por 25 anos, a Fundação Heritage nomeou Hong Kong como a economia mais livre do mundo. Em comparação, a China ocupa o 100º lugar na lista desse think tank.
O resto do mundo também precisa de Hong Kong
Não apenas a China, mas o resto do mundo também precisa de Hong Kong. Investidores gostam do acordo "um país, dois sistemas" celebrado com o Reino Unido em 1997, que garante sistemas legislativo e jurídico próprios, bem como sua própria moeda e economia capitalista até 2047.
A Autoridade Monetária de Hong Kong (banco central) e a Comissão de Valores e Futuros (agência que regulamenta os mercados de valores mobiliários e futuros) são vistas como instituições confiáveis e sofisticadas. É por isso que Hong Kong é a base para mais de 1,5 mil empresas multinacionais que usam isso como forma fácil de entrar no mercado chinês – 60% do investimento estrangeiro é feito através de Hong Kong.
Acima de tudo, Hong Kong oferece segurança aos investidores, incluindo alguns altos quadros do Partido Comunista que não gostariam que a crise perturbasse a economia. A liderança chinesa tem investimentos suficientes em blocos de apartamentos em Hong Kong e em ações de empresas importantes para manter a Polícia Armada Popular (força policial militar chinesa empregada para conter revoltas e protestos) à distância neste momento.
Duas décadas depois de Hong Kong retornar ao domínio chinês, predomina entre muitos moradores a insatisfação com a ingerência de Pequim e o desejo por mais democracia.
Foto: Reuters/D. Martinez
1997 - Devolução à China
Após 156 anos de domínio britânico, Hong Kong era devolvida à China exatamente à zero hora de 1º de julho de 1997. Soldados do Exército de Libertação Popular içaram a bandeira chinesa, em sinal de supremacia sobre a antiga colônia britânica. O contrato para a devolução já havia sido assinado em 1984.
Foto: Reuters/D. Martinez
1998 - Ameaça de crise econômica
A crise financeira asiática de 1997-98 levou economias emergentes a impor controles comerciais ou à compra de ativos para tranquilizar investidores. Hong Kong surpreendeu o mercado em agosto de 1998 com uma intervenção de 15 bilhões de dólares para se defender de ataques especulativos. Os apoiadores da iniciativa dizem que isso salvou a cidade.
Foto: Reuters/L. Chan
1999 - Reagrupamento de famílias
As esperanças de um rápido reagrupamento das famílias separadas pela fronteira foram logo destruídas. Embora a Suprema Corte de Hong Kong tivesse concedido amplos direitos de residência, o governo chinês derrubou a decisão a pedido do governo de Hong Kong. Na foto, mais de cem visitantes da China continental protestaram para obter permissão de residência imediata em Hong Kong.
Foto: Reuters/B. Yip
2000 - Sucesso com a bolha
Em fevereiro de 2000, investidores entraram numa fila diante do banco HSBC para comprar ações da empresa Tom.com. Ao se lançar na bolsa de valores, a empresa – que existia apenas na internet – do bilionário Li Ka-shing conseguiu angariar quase 100 milhões de dólares pouco antes de estourar a bolha "dot-com".
Foto: Reuters/B. Yip
2001 - Conflito com grupo espiritual
Seguidores do movimento espiritual Falun Gong protestam regularmente em Hong Kong desde que o grupo foi banido pela China em 1999, sob a acusação de divulgar superstições e manipular as pessoas psicologicamente. Em 2002, 16 seguidores foram condenados por causa de protestos diante da representação da China em Hong Kong. A Suprema Corte do território reverteu metade das sentenças.
Foto: Reuters/K. Cheung
2002 - Famílias desesperadas
A questão das autorizações de residência acirrou-se em 2002, quando Hong Kong começou a deportar 4 mil chineses continentais que haviam perdido batalhas legais para residir no território. Houve protestos dos solicitantes e de seus apoiadores. Na foto, parentes de migrantes chineses depois de terem sido expulsos de um parque no centro de Hong Kong.
Foto: Reuters/K. Cheung
2003 - Nas mãos de um vírus
A Sars, uma doença viral semelhante à gripe, atingiu Hong Kong de tal forma que, em março de 2003, a Organização Mundial da Saúde a declarou uma pandemia. Até a cidade ser considerada livre da doença, em junho, 299 pessoas morreram, entre elas Tse Yuen-man. A médica de 35 anos esteve entre os primeiros voluntários a cuidar de pacientes com Sars. Em seu funeral, ela recebeu as mais altas honras.
Foto: Reuters/B. Yip
2004 - Frustração com Pequim
Centenas de milhares de pessoas participaram de protestos no sétimo aniversário da devolução à China. Pequim descartou o sufrágio universal em Hong Kong em 2007 ou 2008 e continuou freando as reformas políticas. Além disso, a China decretou que o governo de Pequim precisa aprovar qualquer alteração no direito de voto em Hong Kong, o que praticamente elimina qualquer aspiração democrática.
Foto: Reuters/B. Yip
2005 - Violência em protestos
Reuniões da Organização Mundial do Comércio regularmente são alvos de protestos dos adversários da globalização. Em Hong Kong, no final de 2005, não foi diferente. A polícia usou canhões de água e gás lacrimogêneo contra os manifestantes.
Foto: Reuters/L. Jae-Won
2006 - Conflito com o Japão
A China e o Japão disputavam um grupo de ilhas desabitadas. Acreditava-se que perto delas houvesse reservas de petróleo e de gás. Em outubro, um barco com ativistas de um comitê para defender as ilhas Diaoyi e que tem base em Hong Kong se aproximou 20km da ilha principal até ser interceptado por um barco de patrulha japonês.
Foto: Reuters/P. Yeung
2007 - Preservar a história
Um píer da era colonial tornou-se pivô de nova polêmica. O governo queria removê-lo para recuperar terras e construir estradas. Ativistas furiosos que consideravam o píer um local histórico lutaram pela sua preservação. O embate atingiu seu ponto alto em agosto, quando a polícia removeu um acampamento de ativistas e pessoas em greve de fome que já durava três meses. Em 2008, o píer foi demolido.
Foto: Reuters/P. Yeung
2008 - Morar em gaiolas
Terrenos cada vez mais caros tornaram os aluguéis impagáveis para muitas pessoas em Hong Kong. Milhares de moradores passaram a viver em gaiolas, onde dispunham de cerca de 1,4 m2. Em geral, um cômodo tem oito dessas caixas de arame. Em 2017, estima-se que 200 mil pessoas vivam assim ou disponham de apenas uma cama em apartamentos divididos.
Foto: Reuters/V. Fraile
2009 - Contra o esquecimento
Moradores de Hong Kong vestidos de preto e branco fizeram uma vigília no 20º aniversário da violenta repressão aos manifestantes pró-democracia na Praça da Paz Celestial em Pequim em 1989. O Victoria Park, no centro de Hong Kong, transformou-se num mar de velas.
Foto: Reuters/A. Tam
2010 - Projetos indesejados
Crescia em Hong Kong a insatisfação devido à falta de democracia e o fato de o governo não ter de prestar contas. As raiva coletiva é descarregada em forma de protestos contra os planos do governo de construir um trajeto para trens de alta velocidade ligando Hong Kong ao continente. O projeto ferroviário, não implementado até hoje, previa a destruição de um vilarejo.
Foto: Reuters/B. Yip
2011 - Protestos com papel
Um controverso projeto de lei que eliminou o mecanismo de eleições suplementares para o Conselho Legislativo gerou vários dias de protestos em frente ao prédio do conselho. Centenas de manifestantes jogaram aviões de papel com mensagens políticas contra o prédio.
Foto: Reuters/B. Yip
2012 - Desafios da administração
Leung Chun-ying (à esquerda) presta juramento como chefe de governo da região administrativa especial, diante do então presidente chinês, Hu Jintao. Ele prometeu mais democracia e moradias mais acessíveis. Apesar de medidas de contenção, os preços continuaram subindo, e as reformas políticas ainda estão emperradas. Leung Chun-ying não concorreu a um novo mandato.
Foto: REUTERS/File Photo/B. Yip
2013 - Hong Kong no foco da imprensa
Quando começaram a ser publicadas notícias sobre Edward Snowden e segredos dos EUA, o especialista em TI estava em Hong Kong. Apesar de os Estados Unidos terem pedido sua extradição, Hong Kong deixou Snowden voar para Moscou, onde ele recebeu asilo político. Enquanto alguns veem em Snowden um denunciante corajoso, outros o consideram um traidor da pátria.
Foto: Reuters/B. Yip
2014 - Protestos de guarda-chuva
Durante dois meses, Hong Kong teve grandes manifestações pró-democracia. A exigência era a escolha completamente democrática do chefe de governo. A marca registrada dos protestos foram os guarda-chuvas usados pelos manifestantes para se proteger do spray de pimenta da polícia. As manifestações são vistas como o maior desafio à autoridade da China desde o movimento por mais democracia, em 1989.
Foto: Reuters/T. Siu
2015 - Liberdade de expressão no estádio
A partida de futebol entre China e Hong Kong pelas eliminatórias da Copa de 2018 foi palco de protestos. Torcedores de Hong Kong empunharam cartazes com os dizeres "Hong Kong não é China" enquanto era tocado o hino nacional chinês. Há muita tensão entre os dois lados desde os "protestos dos guarda-chuvas". O jogo acabou em 0 a 0.
Foto: Reuters/B. Yip
2016 - Até correr sangue
Novos protestos foram realizados em Hong Kong. Mais uma vez, a polícia usou spray de pimenta e cassetetes. A razão: as autoridades tentaram remover vendedores de rua ilegais num bairro operário. Foram as mais violentas batalhas de rua desde os protestos de 2014.
Foto: Reuters/B. Yip
2017 - O tempo passa
No parque memorial rei George 5º, um dos poucos parques onde ainda há uma ligação com o passado colonial, as raízes de uma figueira cobrem uma placa, 20 anos após a devolução de Hong Kong à China pelos britânicos.