Por que a eleição argentina é importante para o Brasil?
Fernando Caulyt22 de novembro de 2015
Sucessor de Cristina Kirchner é definido no momento em que Brasil, apesar de ser o maior parceiro econômico da Argentina, vê instabilidade em suas exportações ao vizinho e avanço da influência chinesa.
Anúncio
Os argentinos vão às urnas neste domingo (22/11) para escolher o sucessor da presidente Cristina Kirchner. Brasil e Argentina têm forte parceria econômica e política. E, dependendo de quem vencer o pleito, poderá haver mudanças na linha que Buenos Aires seguirá em relação à parceria comercial, presença brasileira no país, no Mercosul e apoio a Brasília.
No páreo estão o governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli, candidato do partido de Cristina, e o atual prefeito da capital, o opositor Maurício Macri.
"Nos últimos 30 anos houve um crescimento gigantesco do intercâmbio não só econômico, mas também cultural e social. Hoje, por exemplo, vemos uma presença maciça de turistas brasileiros nas cidades argentinas. A interação das duas economias é muito significativa", afirma o professor de direito econômico e comercial Miguel Angel de Dios, da Universidade del Salvador de Buenos Aires (USAL).
Brasil é o maior parceiro da Argentina
A Argentina passa por uma crise econômica desde 2001, quando o país decretou moratória, estabelecendo o maior calote da dívida externa pública da História. Como resultado, o país enfrenta falta de credibilidade no mercado internacional; a população sofre com a alta inflação – de mais de 20% ao ano, de acordo com consultorias privadas – e o aumento da pobreza.
Com a crise econômica argentina, as exportações do Brasil para o vizinho se tornaram irregulares, indo dos 3,88% do total brasileiro de 2002 aos 9,17% de 2010. No ano de 2000, elas correspondiam a 11,32% e, em 2014, caíram para quase a metade: 6,34%.
Mesmo com uma relação comercial intensa, a Argentina instituiu restrições às importações não só provenientes do Brasil, mas também de outros países-membros do Mercosul, para tentar frear a perda de reservas internacionais.
As barreiras protecionistas – como a exigência do uso de licenças não automáticas de importação por empresas argentinas – trazem consequências graves para a exportação de companhias brasileiras.
Mercosul vai alvancar?
As trocas comerciais entre Brasil e Mercosul estão estagnadas há mais de dez anos. Enquanto o comércio brasileiro com o bloco sul-americano perde espaço, o Brasil não consegue avançar, junto com o Mercosul, num acordo de livre-comércio com a União Europeia, que se arrasta desde 1999.
Para especialistas, o bloco sul-americano tem sido um fardo para o Brasil, já que, em nome da integração regional, Brasília fica de mãos atadas para negociar outros acordos separadamente, ao mesmo tempo em que a participação das exportações brasileiras para o bloco perde peso – foi de 17% em 1998 para 9% em 2014.
Com a mudança da liderança argentina, o novo presidente do país poderá ter condições de alavancar o acordo com a União Europeia, o que possibilitará a abertura de novos mercados na Europa – principalmente em relação a commodities – e ajudar o Brasil neste momento de crise política e econômica.
"As eleições podem mudar o 'mantra' negociador argentino, que sempre foi mais protecionista e alinhado com a ideia de que, pelo menos durante o período Néstor-Cristina Kirchner, o Mercosul deveria primeiro se consolidar como plataforma política antes de ambicionar voos mais altos em termos econômicos", afirma Marcos Troyjo, diretor do BRICLab da Universidade de Columbia, nos EUA. "Isso acabou colocando obstáculos à abertura e integração com outros blocos como a União Europeia."
Apoio argentino ao governo brasileiro
Apesar do protecionismo da Argentina dificultar o ingresso de produtos brasileiros no país e o fechamento de um acordo de livre-comércio com a União Europeia, a presidente Dilma Rousseff não tem o costume de criticar, pelo menos publicamente, a mandatária argentina. Por sua vez, Cristina Kirchner também deixa as rusgas de lado quando se trata da relação com Brasília.
Por conta da forte relação econômica e por comandarem os dois maiores países da América do Sul, as duas presidentes, em encontros realizados tanto na Casa Rosada e no Palácio do Planalto, sempre pregavam a integração regional. Mas, para especialistas, independentemente de quem entrar na Casa Rosada, os dois países vão continuar – e até mesmo tentar – fortalecer a parceria.
"As eleições se dão num contexto em que o Brasil é comparativamente menos importante para a Argentina desde que os dois países regressaram à democracia nos anos 1980", opina Troyjo. "Os dois são os maiores países da América do Sul, e é difícil imaginar um item da agenda internacional – na ONU, na Organização Mundial de Comércio ou no campo do combate às drogas – em que não tenham que coordenar posições."
Flerte entre Buenos Aires e Pequim
Com a crise econômica e o acesso bloqueado aos mercados de capitais desde 2011, a Argentina se rende à ajuda de países como a China. Em uma visita a Buenos Aires em julho de 2014, o presidente chinês, Xi Jinping, anunciou a liberação de um crédito de cerca de 5,5 bilhões de euros para ser investido no país.
Ao retribuir a visita, Cristina e Xi Jinping anunciaram, em fevereiro deste ano, em Pequim, acordos de cooperação bilateral, incluindo a construção de duas novas usinas nucleares na Argentina.
O aumento da parceria entre Argentina e China se traduz, principalmente, no crescimento das importações por Buenos Aires de produtos chineses. De acordo com a consultoria argentina Abeceb, em 2001 os argentinos importaram 5,2 bilhões de dólares do Brasil e somente 557 milhões de dólares da China. Já em 2014, os brasileiros exportaram 14,4 bilhões de dólares ao vizinho, enquanto os chineses alcançaram o valor de 10,7 bilhões de dólares.
Esse é somente um dos sinais de um flerte entre Buenos Aires e Pequim que ameaça o prestígio e a participação brasileira em mercados tradicionais. Atualmente, há uma forte presença chinesa em setores como bancos, transportes e projetos de infraestrutura na Argentina.
"As eleições argentinas se dão num momento em que o Brasil se encontra particularmente fragilizado. As empresas brasileiras estão perdendo mercados tradicionais de maior valor agregado em razão de uma maior presença de companhias chinesas", completa Troyjo.
O fim da era Cristina Kirchner
Após 12 anos de kirchnerismo, a Argentina elege um novo presidente. Relembre a trajetória de Cristina Fernández de Kirchner, que deixa tanto problemas econômicos quanto avanços sociais como herança de seu governo.
Foto: Getty Images/AFP/F. Monteforte
Cristina Fernández, "relato" e dramaturgia
Em oito anos de governo, Cristina se destacou por seu estilo e a tendência ao drama – foi acusada, inclusive, de criar um "relato" próprio da realidade da Argentina. Neste ano, ela deixa a Casa Rosada, e a era Kirchner chega ao fim. Com uma maioria kirchnerista no Congresso, porém, Cristina promete seguir influenciando a vida política do país.
Foto: Getty Images/A.Pagni
A sucessora de Néstor Kirchner
Cristina começou sua carreira política em 1989, como deputada pela província de Santa Cruz. Conheceu Néstor Kirchner durante a militância peronista, em 1974, e os dois se casaram no ano seguinte. Ele foi presidente da Argentina de 2003 a 2007, ano em que a mulher ganhou as eleições para sucedê-lo. A morte de Néstor, em 27 de outubro de 2010, foi um duro golpe para Cristina e seus dois filhos.
Foto: D. Garcia/AFP/Getty Images
Laços estreitos com o Mercosul
Na foto, Cristina e o presidente da Bolívia, Evo Morales, vestem trajes típicos bolivianos durante uma cerimônia na Casa Rosada, sede da presidência em Buenos Aires. Ela sempre defendeu laços estreitos com os países vizinhos. Em 2013, anunciou que aceleraria "a reconstituição do Mercosul" e, no mesmo ano, disse que a espionagem dos EUA sobre o Brasil afetava a "dignidade" de toda a América do Sul.
Foto: Reuters/M. Brindicci
A reeleição
Em 2011, Cristina foi reeleita presidente da Argentina com 54,11% dos votos. Na foto, ela posa entre os dois filhos, Máximo e Florencia, em frente ao Congresso Nacional, em Buenos Aires, após tomar posse. Atualmente candidato a deputado, Máximo está sendo investigado sob suspeita de manter contas secretas nos Estados Unidos e Irã. Ele nega as acusações.
Foto: picture-alliance/dpa/C. de Luca
Um vice em apuros
Amado Boudou, então ministro da Economia, foi nomeado vice-presidente no segundo mandato de Cristina. A escolha foi mais tarde criticada, principalmente pelas polêmicas acusações que emergiram contra ele. O escândalo político conhecido como Ciccone, por exemplo, ligou Boudou à compra de uma falida empresa monopolista a fim de operar com o Estado na impressão de notas e documentos fiscais.
Foto: picture-alliance/dpa/S.Goya
A luta contra o "Clarín"
O debate sobre a concentração da mídia segue aberto na Argentina. Cristina Kirchner travou uma longa batalha contra o grupo argentino "Clarín", acusando-o de monopólio midiático. Ao mesmo tempo, foi criticada por estimular a criação de um grupo de "veículos viciados no governo", segundo apontou, em entrevista à DW, a jornalista Laura di Marco, autora de uma biografia não autorizada da presidente.
Foto: picture alliance/dpa Fotografia
Direitos humanos
Cristina deu continuidade às políticas de direitos humanos de Néstor: aprovou leis acerca do casamento gay e da transexualidade e apoiou a busca por crianças desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Na foto, ela conversa com Estela de Carlotto, presidente da organização Abuelas de Plaza de Mayo. Seu neto, Guido, recuperou a verdadeira identidade ao ser encontrado em 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
Discurso em rede nacional
A presidente está acostumada a falar em rede nacional – algo aplaudido por seus seguidores e criticado pela oposição. Ao se dirigir ao público, Cristina mantém um estilo sempre muito pessoal e, para muitos, carismático. "O kirchnerismo trouxe independência à Argentina", disse ela em um de seus discursos, em julho de 2015.
Foto: picture-alliance/dpa/L. La Valle
Falta de transparência
Em junho de 2015, Cristina enviou ao Congresso um projeto de lei para que alguns programas sociais sejam ajustados de tempos em tempos. Entre eles está o Benefício Universal por Filho (AUH, na sigla em espanhol), equivalente ao Bolsa Família. Esses avanços na área social, porém, acabam sendo ofuscados pela falta de transparência com os índices de pobreza, a alta inflação e o déficit fiscal.
Foto: Reuters/E. Marcarian
Argentina versus "fundos abutres"
A batalha contra os chamados "fundos abutres" segue no país. Em setembro de 2015, a ONU aprovou uma resolução, recomendada pela Argentina, que propõe a criação de um marco legal para a reestruturação da dívida soberana. O ministro da Economia, Axel Kicillof (dir.), comemorou a decisão como "um passo fundamental".
Foto: Leo La Valle/AFP/Getty Images
Cristina, papa e "Estado Islâmico"
Em setembro de 2014, o papa Francisco recebeu Cristina, sua compatriota, no Vaticano. Após um encontro privado com o pontífice, a presidente revelou ter sofrido ameaças do grupo extremista "Estado Islâmico" (EI) por conta de sua posição diplomática diante dos conflitos no Oriente Médio – ela é favorável à existência de dois Estados: o da Palestina e o de Israel.
Foto: picture-alliance/dpa
Incentivo à cultura
Em nível nacional, o governo Cristina Kirchner deu um impulso importante à realização de eventos culturais e artísticos, mas com um estilo claramente personalista. Na foto, a presidente argentina participa da inauguração do Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, em maio de 2015. Na ocasião, ela classificou o local como o "mais importante centro cultural da América Latina".
Foto: Reuters/Argentine Presidency
Duas cirurgias
Em seu segundo mandato como presidente da Argentina, Cristina foi submetida a dois procedimentos cirúrgicos sérios: um para remover um tumor na tireoide, em janeiro de 2012, e outro para drenar um hematoma cerebral, em outubro de 2013. Ela teve boa recuperação em ambos os casos, mas precisou ficar afastada do trabalho por um curto período de tempo.
Foto: picture-alliance/dpa
Negócios com a Rússia
Cristina se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, em abril de 2015, e do encontro pode ter saído muito mais que os acordos energéticos e econômicos firmados. Em ano eleitoral na Argentina, o gesto chegou a ser interpretado como um esforço da presidente para afastar o país de seu tradicional alinhamento com os Estados Unidos e a União Europeia e estimular uma aproximação com os Brics.
Foto: Reuters/A. Nemenov
Caso Nisman choca o país
A morte do promotor Alberto Nisman abalou a sociedade argentina e continua sem esclarecimento perante a Justiça. Ele foi encontrado morto em casa em 18 de janeiro de 2015, dias antes de divulgar um relatório polêmico contra a presidente. Nisman acusaria Cristina de ajudar a acobertar o pior ataque terrorista da história do país: o atentado a bomba à Associação Mutual Israelita Argentina, em 1994.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Pisarenko
Sucessor da era Kirchner?
Daniel Scioli, da coligação Frente para a Vitória, é o candidato à presidência argentina capaz de dar continuidade ao programa político do kirchnerismo. Segundo especialistas, o governo deixa como herança para o próximo presidente graves problemas econômicos e estruturais, mas também avanços sociais e um aumento no nível de consumo da população.
Foto: Reuters/A.Marcarian
Adeus à figura que polariza
Com seu estilo autoritário e maternal, Cristina Kirchner polarizou a sociedade argentina. Esteve cercada de acusações de corrupção, e a insegurança jurídica cresceu durante seu governo. Por outro lado, deu impulso à cultura e aos direitos civis. Ao dizer adeus, Cristina deixa um legado complexo à próxima administração, e é improvável que se afaste totalmente da agenda política do país.