Vinte e nove de julho de 1981. Nesse dia, eu e minhas primas acordamos cedo para assistir a uma história que acontecia longe, mas que parecia saída de um conto de fadas: o casamento do então príncipe Charles com Lady Di, assistido por crianças e adultos do mundo inteiro com fascinação.
Mais de 40 anos se passaram. De lá para cá, descobrimos que esse casamento real era super infeliz. Diana se sentia presa e tinha depressão. Charles também era infeliz e mantinha um relacionamento com uma mulher casada, Camilla, hoje sua esposa e rainha.
Nada era o que parecia. Afinal, contos de fadas não existem. Nos últimos 40 anos, o mundo mudou muito. Palavras como colonialismo, antirracismo e feminismo estão na boca de todos (ainda bem). Mas o fascínio pela realeza, tão contrário a todas essas questões atuais, parece intacto para muitos.
Absurdo e fascinante
A prova: no último fim de semana, a coroação do rei Charles 3º e da rainha Camilla gerou uma comoção parecida com a daquela manhã de quase 43 anos atrás. Milhares de pessoas mundo afora assistiram pela TV ao evento do fim de semana, que teve toda a pompa e circunstância e ingredientes que remetem à Idade Média: abadias, trajes com ouro e peles de animais, gritos de "Deus salve o rei" e por aí vai.
Os festejos custaram cerca de 100 milhões de libras (R$ 632 milhões) e foram pagos com dinheiro público, num momento em que a Europa passa por uma guerra e uma crise econômica.
Absurdo? Sim. Mas ao mesmo tempo fascinante para milhares de pessoas. Esse tipo de show ainda faz sucesso – e muito.
Mesmo sendo sabido que a família real britânica foi parte de um império que invadiu, torturou e roubou riquezas de vários países mundo afora. Falamos em reparação e nas feridas causadas pela escravidão. Mas tudo isso parece ficar de lado quando um grande evento real acontece. O brilho do ouro e dos diamantes (na maioria tirados de ex-colônias) parece cegar.
Não dá para achar que príncipe encantado existe
Algo em nossas mentes ainda se atrai por esse tipo de espetáculo. Talvez por lembrar seriados como The Crown (que conta a história da coroa britânica) e outros mais levinhos e incrivelmente escapistas, como Rainha Charlotte, parte da série Bridgerton, uma das mais assistidas da Netflix atualmente.
Eu também assisto. Esse tipo de conteúdo é relaxante e escapista. Só que, no caso de eventos reais atuais, suas incoerências e os absurdos praticados pelo Império Britânico são bem reais.
Ver isso como entretenimento, apesar de tudo, é algo que dá para entender. Mas vamos com calma, gente. Não dá para achar que isso é a vida real e que príncipe encantado existe.
No domingo, enquanto os festejos da coroação prosseguiam, no Twitter, fãs da princesa Diana estavam revoltados. Segundo esses fãs, um grupo formado principalmente por mulheres, era um absurdo que Camila fosse coroada rainha. A verdadeira rainha seria, para sempre, Diana! Como se ser rainha fosse algo como um lugar maravilhoso a ser alcançado. De novo: como se estivéssemos vendo um conto de fadas.
Mulheres vistas como destruidoras de lares
Também adoramos uma fofoca real. E, de novo, me incluo. E, como acompanho essas notícias, lembro que Diana nem queria tanto ser rainha. Ela só queria ser livre – algo quase impossível dentro da família real. Ou será que ainda tem mulher que acredita em príncipe encantado?
Nessas fofocas reais, mulheres são constantemente culpadas (o que torna a família real e suas celebrações ainda mais anacrônicas).
Diana morreu em um trágico acidente de carro em Paris, enquanto fugia de paparazzi, uma tragédia muito simbólica. E Camilla, agora rainha, sofre ataques desde que seu caso com Charles foi revelado. Ela foi tratada como uma espécie de destruidora do lar real. Não é surpresa que o ódio a ela voltasse a ser manifestado no dia da coroação.
Mais recentemente, a bruxa má da vez passou a ser Meghan Markle (que nem estava presente na cerimônia de coroação de Charles), esposa do príncipe Harry, acusada de ter feito o marido brigar com a família real e abandonar seus afazeres. Mulheres sempre foram vistas como destruidoras de lares, mesmo que seja o lar real.
Escândalos e incoerência
Mas alguns escândalos da realeza são muito mais mais pesados. O príncipe Andrew, por exemplo, teve que abdicar de títulos militares e cargos honorários e por conta de uma acusação de abuso sexual contra uma menor de idade, uma adolescente de 17 anos. Uma história de terror da vida real.
Abuso, genocídios, escravidão: é realmente horrível lembrar dessas coisas. Talvez seja por isso que muitos se distraem, por exemplo, avaliando as roupas das mulheres presentes nos eventos da realeza. Mais uma atitude anacrônica.
Talvez esses eventos sirvam para isso: mostrar que somos incoerentes e menos modernos do que pensamos.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.