O impasse em Cuba, entre EUA e URSS, levou o mundo à beira da guerra nuclear. Apesar de paralelos com a atual ofensiva na Síria, especialistas ressaltam que na Guerra Fria os alvos e tensões eram bem outros.
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Poucos dias atrás, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, dissera que a Rússia devia "se preparar" para uma ofensiva de mísseis em resposta ao suposto ataque com armas químicas na Síria. Complementando, descreveu a relação entre o país e os Estados Unidos como "pior do que nunca, e isso inclui a Guerra Fria". Não demorou muito até alguns observadores invocarem a crise de Cuba de 1962, o episódio mais perigoso do período.
Elmar Brok, ex-presidente do Comitê de Assuntos Estrangeiros do Parlamento Europeu, disse ao jornal alemão Bild que a disputa em torno da Síria é "a primeira ameaça direta de conflito entre as potências nucleares Rússia e EUA desde a crise de mísseis de Cuba".
Falando à agência de notícias AFP, por sua vez, Igor Yurgens, ex-assessor-chefe do primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, foi na mesma linha: "Estamos numa situação que me lembra a crise no Caribe dos anos 1960, quando [o líder soviético Nikita] Khrushchev e [o então presidente americano John F.] Kennedy estavam à beira de um conflito nuclear."
Especialistas duvidam
A crise a que ambos se referem ocorreu em outubro de 1962, quando os EUA descobriram mísseis nucleares soviéticos no Estado insular de Cuba. Depois de Washington ter colocado centenas de seus bombardeiros, armados com ogivas nucleares, em prontidão para atacar o território da União Soviética, a confrontação terminou quando os soviéticos concordaram em retirar os mísseis nucleares, se os EUA retirassem os seus da Turquia, aliada americana na fronteira sul da URSS.
Segundo certos especialistas, contudo, a atual disputa na Síria é bem diferente. "Havia muito mais em jogo naquela época", alega Ivan Tomofeyev, do Conselho Russo de Relações Exteriores, em Moscou. "Os EUA viram o estacionamento de mísseis nucleares soviéticos como uma ameaça a sua existência, e havia uma clara confrontação ideológica", disse, referindo-se à estratégia americana de conter a URSS, a fim de prevenir a difusão do comunismo.
Em 1962, além disso, ambos os lados estavam dispostos a arriscar uma guerra para forçar o outro a ceder, lembra o professor Bernd Greiner, da Universidade de Hamburgo. Forças soviéticas abateram um avião-espião dos EUA, e o piloto foi morto, enquanto Washington iniciou preparativos para lançar bombas nucleares sobre o país inimigo. "A Síria, em contrapartida, é uma crise, mas não uma disputa que vá levar os dois lados à beira de uma guerra mundial."
Perigo das más interpretações
Outra diferença-chave entre 1962 e 2018 são os alvos dos EUA, aponta Steven Pifer, especialista do think tank Brookings Institution. Na Guerra Fria, os americanos planejavam atingir forças soviéticas em Cuba, o que causaria as mortes de centenas de soldados. Atualmente, por outro lado, o país tentaria evitar as forças russas, se realizasse um ataque com mísseis contra alvos do governo sírio.
Contudo, mesmo que uma ofensiva dos americanos contra a Síria matasse acidentalmente russos em terra, Moscou não retaliaria com armas atômicas. "Minha suposição é que as Forças Armadas russas têm uma avaliação bastante exata do que isso acarretaria", tranquiliza Pifer.
Embora o emprego de armas nucleares seja improvável, Tomofeyev admite que, caso soldados russos fossem atingidos, um bombardeio americano contra a Síria poderia desencadear um conflito militar direto com Moscou.
"Mortes russas podem fazer a situação escalar, ao ponto de a Rússia atacar aeronaves ou embarcações da Marinha americana." No fim das contas, "o maior risco são as interpretações erradas das intenções" do outro lado.
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Cronologia da guerra na Síria
O que se iniciou com protestos pacíficos em 2011 virou uma guerra civil brutal que já matou centenas de milhares de pessoas e fez milhões de refugiados. Reveja os principais acontecimentos.
Foto: Reuters/Stringer
2011: O início
Em 15 de março de 2011, protestos pacíficos contra a detenção de jovens acusados de fazer pichações antigoverno em sua escola, na cidade de Daraa, são reprimidos por forças de segurança, que abrem fogo contra manifestantes desarmados, matando quatro. Os protestos continuam por vários dias, fazendo 60 mortos e se espalham por todo o país. Segue-se um período de repressão violenta.
Foto: Anwar Amro/AFP/Getty Images
2011/2012: Isolamento internacional
O ex-presidente Barack Obama insta o presidente Bashar al-Assad a renunciar, e os EUA anunciam sanções a Assad em maio e congelam bens do governo sírio nos EUA em agosto de 2011. A União Europeia também anuncia sanções, em setembro. Em novembro, a Liga Árabe suspende a Síria e impõe sanções ao regime. Também a Turquia anuncia uma série de medidas, incluindo sanções, em dezembro.
Foto: AP
2012: Observadores internacionais desistem
Em dezembro de 2011, a Síria permite a entrada de observadores da Liga Árabe para monitorar a retirada de tropas e armas de áreas civis. A missão é suspensa em janeiro de 2012. Em fevereiro, os EUA fecham sua embaixada em Damasco. Em abril de 2012, chegam observadores da ONU, que partem dois meses depois por falta de segurança.
Foto: REUTERS
2013: Ataque com gás
Em março, um ataque com gás mata 26 pessoas, ao menos a metade deles soldados do governo, na cidade de Khan al-Assal. Investigação da ONU conclui que foi usado gás sarin. Em agosto, outro ataque com gás mata centenas em Ghouta Oriental, um subúrbio de Damasco controlado pelos rebeldes. A ONU afirma que mísseis com gás sarin foram lançados em áreas civis. Os EUA e outros países culpam regime sírio.
Foto: picture-alliance/AP Photo
2013: Destruição de armas químicas
Em agosto, investigadores da ONU chegam à Síria para averiguar o uso de armas químicas, em meio a denúncias de médicos e ativistas. EUA afirmam que 1.429 pessoas morreram num ataque, e Obama pede ao Congresso autorização para ação militar. Em setembro, o Conselho de Segurança da ONU ameaça usar a força e, em outubro, Damasco inicia a destruição de seu arsenal declarado de armas químicas.
Foto: AFP/Getty Images
2014: EUA atacam "Estado Islâmico"
Em setembro, os EUA iniciam ataques aéreos a alvos do "Estado Islâmico" na Síria. Em outubro, o mediador da ONU, Staffan de Mistura, começa a negociar uma trégua ao redor de Aleppo, mas o plano fracassa meses depois.
Foto: picture-alliance/AP Photo/V. Ghirda
2015: Rússia entra no conflito
Em setembro, a Rússia, que desde o início fornecera ajuda militar ao governo sírio nos bastidores, entra ativamente no conflito, bombardeando opositores do regime. A ajuda se mostra decisiva, e a guerra civil passa a pender para o lado de Assad, que nos meses seguintes recupera território perdido para os rebeldes.
Foto: Reuters/Rurtr
2016: Governo controla Aleppo
A ONU e a Opac afirmam que tanto militares sírios quanto o "Estado Islâmico" usaram gás em ataques a opositores. O ano é marcado por várias tentativas de tréguas. Em setembro, a cidade de Aleppo é alvo de 200 ataques aéreos por forças pró-Assad num fim de semana. Em dezembro, as forças governamentais assumem controle de Aleppo, encerrando quatro anos de domínio dos rebeldes.
Foto: Getty Images/AFP/G. Ourfalian
2017: Ataque em Idlib
Em fevereiro, Rússia e China vetam resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo sanções ao governo sírio pelo uso de armas químicas. Em abril, ao menos 58 pessoas morrem na província de Idlib, dominada pelos rebeldes, no que aparenta ser um ataque com gás. Testemunhas afirmam que o ataque foi executado por jatos sírios e russos, mas tanto Moscou quanto Damasco negam bombardeio.
Foto: Getty Images/AFP/O. H. Kadour
2017: Resposta dos EUA
Em abril, os EUA lançam dezenas de mísseis sobre a base militar de onde se acredita ter saído o ataque em Idlib. Em maio, o presidente Donald Trump aprova planos para armar combatentes das milícias curdas YPG na luta contra o "Estado Islâmico". A medida enfurece a Turquia, que vê as YPG como um grupo terrorista. Em outubro, o "Estado Islâmico" perde o controle de Raqqa, sua autoproclamada capital.
Em janeiro, aviões turcos bombardeiam a região curda de Afrin, dando início à operação contra as YPG intitulada "Ramo de Oliveira". A Turquia anuncia a morte de centenas de "terroristas", mas entre os mortos estão dezenas de civis, dizem ativistas. Em fevereiro, as milícias YPG chegam a acordo com o regime sírio para o envio de tropas pró-governo para auxiliar no combate aos turcos em Afrin.
Foto: picture alliance/AA/E. Sansar
2018: Ofensiva em Ghouta Oriental
Em 21 de fevereiro, tropas pró-regime executam ofensiva em larga escala contra enclave rebelde localizado ao leste de Damasco. Em torno de 400 mil civis ficam sitiados, com acesso limitado a alimentos e cuidados médicos. Os ataques matam centenas de pessoas. No dia 24 de fevereiro, o Conselho de Segurança da ONU aprova trégua humanitária de 30 dias vigente em todo o território sírio. Ela fracassa.
Foto: Reuters/B. Khabieh
2018: O bombardeio ocidental
Após dias de ameaça, em 14 de abril Trump anuncia o lançamento de mais de cem mísseis, em conjunto com França e Reino Unido, na Síria. O ataque é uma retaliação ao ataque químico na cidade de Duma, que matou dezenas de civis e que o Ocidente atribui ao regime de Bashar al-Assad.
Foto: picture-alliance/AP Photo/L. Matthews
2019: Estados Unidos começam a se retirar da Síria
Em janeiro de 2019, os Estados Unidos começaram a se retirar da Síria. O presidente americano afirmou que o Estado Islâmico havia sido derrotado e, por isso, a presença dos EUA não seria mais necessária. A decisão foi contestada dentro do próprio governo e também pelas milícias curdas na Síria, aliadas dos EUA, que temiam enfraquecer-se.
Foto: Getty Images/AFP/D. Souleiman
2019: fim do autoproclamado califado do EI
Em março de 2019, as Forças Democráticas Sírias (FDS), aliança liderada por curdos, anunciaram que o autoproclamado califado do Estado Islâmico foi totalmente eliminado, após combates em Baghouz, considerado o último reduto jihadista na Síria. Militantes curdos e árabes das FDS, apoiados pela coalizão internacional liderada pelos EUA, combatiam há várias semanas os jihadistas.