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Por que Nietzsche é tão popular no Brasil

André Bernardo
15 de outubro de 2024

De Mário de Andrade a Belchior e "roba-brisa", filósofo alemão nascido há 180 anos, autor de 'Assim falou Zaratustra', inspirou livros, filmes, cursos, peças teatrais, músicas. E transformou numerosas vidas.

Ator Ranieri Gonzalez representa Nietzsche no musical 'O fantasma de Friedrich', de Dimis Jean Soares
Ator Ranieri Gonzalez representa Nietzsche no musical 'O fantasma de Friedrich', de Dimis Jean SoaresFoto: Gutyerrez Erdmann

O diretor e roteirista Dimis Jean Soares tinha 15 anos quando leu Friedrich Nietzsche (1844-1900) pela primeira vez. O livro foi O nascimento da tragédia (1872), o primeiro dos 19 publicados em vida pelo filósofo alemão. À época, Soares sofria de depressão.

"Ler a obra de Nietzsche me ajudou a entender que é preciso aceitar o caos para enxergar a beleza. Isso me levou a pesquisar sobre a vida dele e a descobrir os sérios problemas de saúde mental que enfrentou. Mesmo assim, até o último minuto de vida, encontrou esperança na arte."

Hoje, aos 35 anos, Soares é autor e diretor do musical O fantasma de Friedrich – Uma pop ópera punk, em que o espectro do protagonista ajuda um grupo de jovens a escaparem de uma instituição psiquiátrica. Depois de estrear no Festival de Curitiba, sua trilha foi lançada no Spotify. "Acho que, por trás dos textos sombrios, existe em Nietzsche um certo otimismo de que a humanidade será salva pela reflexão."

Não é a primeira vez que a vida e a obra de Nietzsche inspiram uma peça de teatro. Muito antes de Ranieri Gonzalez dar vida ao trágico personagem, ele já tinha sido interpretado por Cássio Scapin no espetáculo Quando Nietzsche chorou, adaptação do best-seller de Irvin D. Yalom.

O homem, a filosofia, o bigode: Nietzsche aos 31 anosFoto: public domain

Filosofia, uma eterna procura

Outro admirador confesso de Nietzsche é o diretor Amir Haddad: o criador do grupo Tá na Rua transpôs Assim falou Zaratustra (1883) para os palcos. "Os gregos diziam que a verdade é algo que não muda. Já Nietzsche defendia a ideia de que nada é imutável. O princípio de todas as coisas, portanto, não é a verdade, mas a mudança."

A afirmação é de Viviane Mosé, doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e parceira de Haddad no espetáculo Zaratustra: uma transvaloração dos valores: "Não há uma verdade última e definitiva. O que há, são diferentes perspectivas. O contrário de verdade não é a mentira: é a diferença. O maior desafio hoje é conviver com essas diferenças."

Haddad começou a se interessar por Nietzsche depois de ganhar Assim falou Zaratustra de presente de uma amiga, a atriz Camila Amado (1938-2021). Dos livros do autor, é o mais conhecido – e também o mais hermético. "Não comecem a ler Nietzsche por Zaratustra", aconselha Scarlett Marton, doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). "Apesar de parecer fácil, é um livro que traz enormes dificuldades."

Aos 73 anos, Marton é uma das maiores especialistas em Nietzsche do Brasil. Dos 22 livros que escreveu, 20 são sobre o pensador alemão, sendo o mais recente Filósofo da suspeita (editora Autêntica). Nele, desfaz mal-entendidos, como, por exemplo, de que o filósofo teria sido um precursor do nazismo.

"Nietzsche é, acima de tudo, um provocador. Provoca o leitor a questionar o mundo. E a suspeitar de tudo: de suas crenças, preconceitos, convicções... Precisamos exercer nosso espírito crítico", exorta a filósofa. Em além do bem e do mal (1886), o autor compara a figura do filósofo a alguém que está em busca de um tesouro. "Dentro de uma caverna, há outra caverna. E, dentro da outra, uma terceira. E assim por diante. A busca nunca termina", ensina Marton.

Richard Wagner (1813-1883): de ídolo e figura paterna a alvo de críticas impiedosas para NietzscheFoto: akg-images/picture-alliance

"O que não me mata me faz mais forte"

No Brasil, Nietzsche deu origem a peças teatrais, livros e cursos. Marton é, inclusive, autora de um deles, Vida, obra e legado, disponível na Casa do Saber. Em 2001, o filósofo inspirou até o longa-metragem Dias de Nietzsche em Turim, do cineasta Júlio Bressane. Protagonizado por Fernando Eiras, ele retrata os nove meses em que o filósofo viveu na cidade italiana, entre abril de 1888 e janeiro de 1889. Nesse período, escreveu Crepúsculo dos Ídolos (1888), que traz um de seus aforismos mais famosos: "O que não me mata me faz mais forte".

"A obra de Nietzsche é sedutora. E, em geral, mais lida do que a de outros filósofos. Seus textos são curtos e contém alegorias e metáforas. Mas, é preciso ler Nietzsche como ele gostaria de ser lido: de maneira lenta, como se se estivesse ruminando. Caso contrário, pode não entender o que está lendo ou, então, perder o interesse pela leitura", alerta Saulo Krieger, doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e tradutor de Além do bem e do mal, Assim falou Zaratustra e Crepúsculo dos Ídolos, todos editados pela Edipro.

Por pouco, o historiador Marcelo Marques, de 22 anos, não desistiu de Crepúsculo dos Ídolos. Ganhou o livro de um amigo quando estava no ensino médio, começou a ler as primeiras páginas e... "Ué, mas, se o negócio está em português, por que não estou entendendo nada?", indagou-se. Em vez de guardar o livro numa gaveta qualquer, assistiu a vídeos no YouTube de Mario Sergio Cortella, Luiz Felipe Pondé e Clóvis de Barros Filho.

Cineasta Júlio Bressane confiou a Fernando Eiras o papel do filósofo em 'Dias de Nietzsche em Turim'Foto: T.B. Produções/Rio Filme

Em 2020, gravou um vídeo para seu canal no YouTube, o Audino Vilão, explicando conceitos como super-homem e eterno retorno. No lugar do jargão acadêmico, gírias da periferia. "Super-homem é o mano do corre, tá ligado? Vai pra cima e vence sem muleta", explica no vídeo de quase 13 minutos. Nietzsche: o famoso 'roba-brisa' ("estraga-prazer") já atingiu 463 mil visualizações. "Quando li Nietzsche pela primeira vez, não entendi nada. Dei muito murro em ponta de faca até entender", admite o youtuber.

O sucesso foi tanto, que Marques foi convidado a escrever o livro Filosofia para becos & vielas (Outro Planeta, 2022), que se propõe a explicar, em linguagem acessível, a obra de 23 filósofos, desde os pré-socráticos, como Tales de Mileto (624-546 a.C.), "o primeirão", até os existencialistas, destacando Jean-Paul Sartre (1905-1980), o "pirado da liberdade".

O famoso "roba-brisa" não poderia ficar de fora. "A obra de Nietzsche não envelheceu. Muito pelo contrário. Está mais viva do que nunca", afirma Luiz Felipe Pondé, doutor em Filosofia pela USP. "Quem diz que Nietzsche é um filósofo pop é porque não leu Nietzsche. É um filósofo complexo."

O jornalista Clóvis de Barros Filho, doutor em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, também questiona o adjetivo atribuído ao autor. "Nietzsche vende. E os influenciadores digitais sabem disso. Quando querem subir a audiência do canal, aumentar o número de seguidores ou, simplesmente, chamar a atenção dos internautas, falam de Nietzsche!"

Cena da ópera wagneriana 'Crepúsculo dos Deuses', cujo título Nietzsche parodiaria em 'Crepúsculo dos Ídolos'Foto: Enrico Nawrath

"Sem música, a vida seria um erro"

A obra nietzschiana não influenciou apenas filósofos e acadêmicos, mas, poetas e compositores também. Há traços dessa filosofia nos poemas Carnaval (1919), de Manuel Bandeira (1886-1968), e no romance de Mário de Andrade (1893-1945) Amar, verbo intransitivo (1927). "Repercutiu fortemente entre os modernistas: tanto na construção de personagens quanto em reflexões críticas", detalha Geraldo Dias, doutor em Filosofia pela Unifesp.

O mesmo se pode dizer de Waly Salomão (1943-2003), letrista de canções como Vapor barato (1971), parceria com Jards Macalé e sucesso na voz de Gal Costa (1945-2022). "Sua produção sempre foi declaradamente afeita às mudanças permanentes e repleta de contestações de rótulos acachapantes", analisa Flávio Boaventura, doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Dos compositores brasileiros, porém, nenhum deles bebeu mais na fonte do pensador alemão do que Belchior (1946-2017). É o que conclui Regina Rossetti, doutora em Filosofia pela USP, depois de analisar o segundo álbum do cantor cearense, Alucinação (1976), que traz alguns clássicos de seu repertório, como Apenas um rapaz latino-americano, Como nossos pais e Sujeito de sorte – aquele que diz: "Tenho sangrado demais / Tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri / Mas esse ano eu não morro".

"A maior influência está na crítica da moral e na celebração da rebeldia. Em suas letras, Belchior reflete sobre a luta individual contra as imposições sociais, principalmente num contexto de repressão, como a ditadura", explica Rossetti.

Coincidência ou não, o filósofo também amava a música: tocava piano desde os nove anos; tornou-se fã ardoroso e amigo – e mais tarde, crítico feroz – de Richard Wagner (1813-1883), o compositor e dramaturgo alemão que revolucionou a ópera no fim do século 19; e chegou a compor algumas peças para piano e canções. "Sem música, a vida seria um erro", admitiu Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos..

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