Por que o Catar mantém laços tão estreitos com o Talibã
Diana Hodali
30 de agosto de 2021
Talibã tem uma representação em Doha, capital do Catar, desde 2013. Embora as boas relações do emirado com os militantes islâmicos sejam criticadas, países ocidentais também se beneficiam com elas.
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Num telefonema com o emir do Catar, Tamim bin Hamad Al Thani, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, agradeceu o generoso apoio do emirado às evacuações em andamento no Afeganistão.
Biden também agradeceu ao Catar por possibilitar as negociações internas no Afeganistão, mesmo que elas fracassem com a tomada do poder pelos talibãs. Na Alemanha, por outro lado, o emirado foi criticado por o mulá Abdul Ghani Baradar, líder político do Talibã, ter sido levado a Kandahar num avião militar com a inscrição Força Aérea catariana.
Não é novidade que o Catar e o Talibã mantêm contatos. O país permitiu que o grupo fundamentalista abrisse um escritório em Doha em 2013. Isso aconteceu com o apoio e a pedido do governo de Barack Obama, pois os EUA procuravam um lugar para negociar com a milícia islâmica, a fim de preparar a retirada das tropas do Afeganistão.
De acordo com Elham Fakhro, especialista em assuntos do Golfo Pérsico da ONG International Crisis Group , ao se constatar que não haveria uma vitória militar clara no Afeganistão, incluiu-se o Talibã nas negociações, na esperança de uma solução política.
Sem medo de contato com extremistas
O mulá Abdul Ghani Baradar, um dos fundadores do Talibã, é o chefe da representação do grupo no Catar desde 2018 e também atuou como negociador-chefe dos extremistas nas negociações com os EUA e o governo afegão, agora destituído. A pedido dos americanos, foi libertado de uma prisão no Paquistão em 2018, onde fora detido, entre outros, pela CIA em 2010. Em 2020, assinou o acordo de paz com os EUA em Doha. Mas a rápida tomada de poder pelos talibãs tornou o acordo obsoleto.
Mesmo após a queda de Cabul, Doha aparentemente não vê razão para mudar sua política. Por isso, há quem acuse o emirado de promover o terrorismo internacional. "Alguns críticos argumentam que o envolvimento diplomático deu ao Talibã certa legitimidade que de outra forma não teria", observa Fakhro.
A TV Al-Jazeera, com sede em Doha, por exemplo, há anos tem dado ao Talibã a oportunidade de se dirigir ao público. A emissora também transmitiu a entrada dos talibãs no palácio presidencial em Cabul. O emirado não demonstra qualquer temor de contato com vários atores problemáticos da região, mantendo, por exemplo, boas relações com a Irmandade Muçulmana e também com o Irã, explica Guido Steinberg, da Fundação Ciência e Política (SWP, na sigla em alemão).
"O Catar tem se apresentado como mediador na política regional há quase duas décadas. E faz isso principalmente porque quer melhorar sua posição na região. No passado, foi muito dependente da Arábia Saudita − nas décadas de 1970 e 80, era praticamente um protetorado dela." Para se libertar das garras de seu grande vizinho, o Catar se posicionou como mediador independente.
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Mediador (im)parcial
Em fins de agosto, referindo-se à situação no Afeganistão, o ministro das Relações Exteriores catarense, Mohammed bin Abdulrahman Al Thani, disse que seu país se vê como mediador imparcial. Mas não é completamente imparcial, porque aceitou hospedar a representação do Talibã, atendendo a um pedido dos EUA. "O Catar depende fortemente da proteção dos Estados Unidos", comenta Steinberg. Os americanos têm uma grande base aérea em Al-Udeid, "e o Catar não quer mudar isso porque teme o poder de seus vizinhos".
Com sua política externa e relações com grupos extremistas da região, o emirado não faz só amigos entre os países vizinhos: em 2017, ele foi alvo de um boicote pela Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito. A disputa agora é dada como encerrada, mas, em vez de serem resolvidos, os problemas foram deixados de lado. O papel de mediador do Catar o valoriza como parceiro dos países ocidentais, diz a especialista Elham Fakhro.
Não está claro quanta influência o Catar tem sobre o Talibã, já que, no passado, a relação entre ambos não foi totalmente isenta de conflitos. O Catar não quis que os talibãs hasteassem sua bandeira na frente de sua sede em Doha e chamasse o prédio de representação do "Emirado Islâmico do Afeganistão". O "Emirado Islâmico" que os islamistas proclamaram em 1996 nunca foi reconhecido pelo Catar. Para diversos observadores, é improvável que isso ainda aconteça, especialmente se os EUA forem contra.
Catar quer garantir sua existência
O Catar é oficialmente wahabista, uma vertente do islamismo sunita que tem status de religião oficial na Arábia Saudita, e contatos com vários grupos extremistas, mas "certamente não está interessado que o Talibã governe com extrema violência", ressalva Steinberg: seu interesse é atuar como mediador e "figurar no mapa da política regional e mundial".
Essa seria uma forma de despertar o interesse do Ocidente, e talvez também da China e da Rússia, para que continue um Estado independente. Garantir a própria existência é o objetivo principal da política externa catariana, "porque alguns vizinhos, como a Arábia Saudita, não creem que o Catar deva necessariamente existir".
Os países ocidentais, no entanto, estimam os serviços e contatos do Catar com o Talibã, apesar de todas as críticas. O embaixador da Alemanha no Afeganistão, Markus Potzel, já manteve conversações com os talibãs em Doha. A União Europeia também deve usar os bons contatos dos catarianos com os extremistas em suas próximas negociações com o Talibã.
A intervenção dos EUA no Afeganistão
Há 20 anos, após o 11 de Setembro, os EUA enviavam seus primeiros soldados ao país. Reveja os principais acontecimentos desde então: da operação Liberdade Duradoura à retomada do país pelos fundamentalistas do Talibã.
Foto: Evan Vucci/AP Photo/picture alliance
Operação Liberdade Duradoura
Em outubro de 2001, menos de um mês após aos ataques de 11 de Setembro, o presidente George W. Bush lança no Afeganistão a operação Liberdade Duradoura, depois que o regime Talibã se recusa a entregar Osama bin Laden. Em semanas, os americanos derrubam o Talibã, que ocupava o poder desde 1996. Cerca de mil soldados são enviados ao país em novembro, aumentando para 10 mil um ano depois.
Foto: picture-alliance/DoD/Newscom/US Army Photo
Talibã se reagrupa
A invasão do Iraque em 2003 se torna a maior preocupação dos EUA e desvia a atenção do Afeganistão. O Talibã e outros grupos islamistas se reagrupam em seus redutos no sul e leste do Afeganistão. Em 2008, Bush concorda em enviar soldados adicionais ao país em meio a pedidos por uma estratégia efetiva contra o Talibã. Em meados de 2008, há 48.500 soldados americanos no país.
Foto: picture alliance/Photoshot
Obama é eleito
Em sua campanha, Barack Obama promete encerrar as guerras no Iraque e no Afeganistão. Mas nos primeiros meses de sua presidência, em 2009, há um aumento no número de soldados no Afeganistão para cerca de 68 mil. Em dezembro, o número cresce ainda mais, para 100 mil, com o objetivo de conter o Talibã e fortalecer instituições afegãs.
Foto: AP
Morte de Bin Laden
Osama bin Laden, líder da Al Qaeda que esteve por trás dos ataques de 11 de Setembro, é morto em maio de 2011 em seu esconderijo, durante uma operação de forças especiais americanas no Paquistão.
Foto: picture-alliance/dpa
Acordo com Afeganistão
O Afeganistão assina em setembro de 2014 um acordo bilateral de segurança com os EUA e texto similar com a Otan: 12.500 soldados estrangeiros, dos quais 9.800 norte-americanos, permaneceriam no país em 2015. Mas a situação de segurança piora. Em meio à ressurgência do Talibã, Obama diminui a velocidade de retirada em 2016, afirmando que 8.400 soldados permaneceriam no Afeganistão.
Foto: Reuters
Bombardeio de hospital em Kunduz
Em outubro de 2015, no auge do combate entre insurgentes islâmicos e o Exército afegão, apoiado por forças da Otan, um ataque aéreo dos EUA atinge um hospital dirigido pela organização Médicos Sem Fronteiras na província de Kunduz. O ataque deixa 42 mortos, inclusive 24 pacientes e 14 membros da ONG.
Foto: Getty Images/AFP
"Mãe de todas as bombas"
Em abril de 2017, forças americanas atingem posições do "Estado Islâmico" (EI) no Afeganistão com a maior bomba não nuclear já usada pelo país em combate, matando 96 jihadistas. Em julho, é morto o novo líder do EI no país.
Foto: Reuters/U.S. Department of Defense
"Estamos diante de um impasse"
Em fevereiro de 2017, um relatório do governo dos EUA mostra que as perdas entre as forças de segurança afegãs subiram 35% em 2016 em relação ao ano anterior. Pouco depois, o general americano à frente das forças da Otan, John Nicholson (esq., ao lado do secretário da Defesa John Mattis), alerta que precisa de mais milhares de soldados: “Acredito que estamos diante de um impasse."
Foto: Reuters/J. Ernst
Trump anuncia nova estratégia
Em 21 de agosto de 2017, o presidente Donald Trump anuncia nova estratégia para o Afeganistão, fazendo da caça a terroristas a principal prioridade. Trump não especifica um aumento do número de soldados como esperado, mas diz que os objetivos incluem "obliterar" o Estado Islâmico, "esmagar" a Al Qaeda e impedir o Talibã de dominar o Afeganistão.
Foto: picture-alliance/Pool via CNP/MediaPunch/M. Wilson
EUA negociam com rebeldes
Em julho de 2018, sob o governo do presidente Donald Trump, os EUA entram em negociação com o Talibã, sem envolver o governo afegão eleito ou os parceiros da Otan.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Photo/Qatar Ministry of Foreign Affairs
Trump cancela encontro com Talibã
Em setembro de 2019, o presidente Trump cancela na última hora uma reunião marcada em sigilo com líderes do Talibã e do Afeganistão, após o grupo islamista assumir a autoria de um ataque em Cabul que matou um soldado americano e outras 11 pessoas.
Foto: Getty Images/M. Wilson
EUA e Talibã assinam acordo de paz
Em fevereiro de 2020, sob o regime Trump, os governos dos EUA e do Afeganistão anunciam a retirada completa das tropas americanas e de outros países da Otan. O pacto assinado pelo negociador especial dos EUA para a paz, Zalmay Khalilzad, e pelo líder político talibã mulá Abdul Ghani Baradar, prevê que o número de militares estrangeiros seria reduzido gradualmente, ao longo de 14 meses.
Foto: AFP/G. Cacace
Biden anuncia retirada total das tropas
Em 14 de abril de 2021, o presidente Joe Biden comunica à população americana que a guerra mais longa do país terá fim, com as tropas dos EUA e da Otan se retirando inteiramente do Afeganistão até 11 de setembro, 20º aniversário dos ataques terroristas em Nova York.
Foto: Andrew Harnik/AFP/Getty Images
EUA e Otan iniciam retirada
EUA e Otan iniciam formalmente, em 1º de maio de 2021, a retirada de todas as suas tropas do Afeganistão. A previsão era retirar até 11 de setembro entre 2.500 e 3.500 soldados americanos e cerca de outros 7 mil soldados da Otan. Estima-se que os EUA tenham gasto mais de 2 trilhões de dólares no país, em 20 anos, de acordo com o projeto Costs of War da Universidade Brown.
Foto: Michael Kappeler/dpa/picture alliance
Americanos entregam base ao governo afegão
Em 2 de julho de 2021, tropas dos EUA partem da base aérea de Bagram, ponto focal da guerra, e entregam o local ao governo afegão. Permanecem no país asiático alguns poucos soldados, numa pequena base na capital Cabul.
Foto: Rahmat Gul/AP/picture alliance
Talibã toma capitais regionais
Aproveitando o vácuo deixado pela retirada das tropas de paz internacionais do Afeganistão, guerrilheiros do Talibã tomam, no inicio de agosto de 2021, capitais regionais como Sheberghan, Kunduz e Zaranj, num duro golpe para o governo afegão, que lutava para defender as cidades mais importantes da ofensiva do grupo extremista.
Foto: Abdullah Sahil/AP Photo/picture alliance
EUA retiram seus cidadãos do Afeganistão
Em meados de agosto, Estados Unidos e outros países começam a retirar seus cidadãos do Afeganistão, enquanto forças militares americanas se esforçam para proteger e manter funcionando o aeroporto de Cabul. Com todos os voos comerciais cancelados, milhares de afegãos invadem a pista do aeroporto desesperados, tentando embarcar em qualquer aeronave que fosse decolar.
Foto: Wakil Kohsar/AFP
Talibã ocupa palácio presidencial
O Talibã toma a capital Cabul, em 15 de agosto de 2021, dissolvendo o governo e estendendo seu controle sobre todo o Afeganistão. A capital era um dos últimos redutos ainda sob a autoridade do presidente Ashraf Ghani. Assim como ocorreu com dezenas de outras cidades, ele é tomada sem resistência efetiva das tropas governamentais. Ghani foge do país.
Foto: Zabi Karim/AP/picture alliance
Biden defende retirada das tropas
Um dia depois da tomada de Cabul, o presidente dos EUA, Joe Biden, defende a decisão de pôr fim à presença americana no Afeganistão e condena líderes e políticos afegãos que abandonaram o país, abrindo caminho para a tomada de poder pelo Talibã. Biden culpa ainda o ex-presidente Donald Trump, por ter fortalecido o grupo rebeldes e deixado os talibãs em sua melhor situação militar desde 2001.