Por que o Oriente Médio investe no Ocidente
12 de setembro de 2023Quando não estava tentando atrair estrelas do futebol como Neymar, Cristiano Ronaldo e Karim Benzema até Riad por algumas centenas de milhões de euros por ano, a Arábia Saudita abria regularmente seus cofres para apoiar empresas em apuros no Ocidente.
Foi ela, junto com os vizinhos Emirados Árabes Unidos (EAU) e do Catar – por meio do Fundo de Investimento Público Saudita (FIP) –, que saiu em socorro de vários bancos ocidentais no auge da crise financeira de 2008-2009, mesmo quando suas próprias economias afundavam junto com o preço do petróleo.
"Os fundos soberanos do Golfo podem investir grandes somas de forma desburocratizada, especialmente quando as coisas ficam difíceis. Eles frequentemente demonstraram ser os 'cavaleiros brancos' para muitas empresas", afirma Eckart Woertz, diretor do Instituto GIGA de Estudos do Oriente Médio.
O reino saudita atualmente possui participações na Nintendo, Uber, Boeing e no time inglês de futebol Newcastle United Football Club. Em junho, o PGA Tour, empresa que organiza torneios profissionais de golfe nos Estados Unidos, deu aval a uma controversa fusão com a LIV Golf, apoiada pela Arábia Saudita e denunciada por entidades de defesa dos direitos humanos.
O FIP também é dono de quase dois terços da Lucid Motors, aspirante a rival da Tesla, aportando 5,4 bilhões de dólares (R$ 26,6 bilhões) nos últimos cinco anos em uma empresa que produz menos de 10.000 veículos por ano.
Investimentos em empresas de telefonia despertam receios
O investimento mais recente, ainda que bem menor, é a aquisição, anunciada na semana passada pela Saudi Telecom (STC), de uma fatia de 9,9% da Telefonica, gigante de telecomunicações espanhola, no valor de cerca de 2,1 bilhões de euros (R$ 11,1 bilhões).
Nos últimos oito anos, o valor de mercado da Telefonica encolheu dois terços. Guerras de preços na oferta de serviços móveis e de internet, investimentos em novas tecnologias e expansão para novos mercados deixaram a espanhola com uma dívida enorme.
A e& (antiga Etisalat), empresa de telefonia dos Emirados Árabes Unidos, aumentou neste ano de 10% para quase 15% sua participação em outra grande empresa europeia de telecomunicações, a Vodafone. Em agosto, a e& disse avaliar chegar a 20%.
Ambos investimentos despertaram preocupações de segurança nacional – os países do Golfo são regimes autocráticos, com um longo histórico de violações de direitos humanos e de vigilância crescente de suas populações.
Vice-primeira-ministra da Espanha, Nadia Calvino afirmou na semana passada que a participação na Telefonica precisaria ser avaliada "tendo em mente a defesa dos interesses estratégicos da Espanha".
O governo de Madri seria especialmente cauteloso em relação às ligações da Telefonica com o setor de defesa do país.
O Reino Unido também está preocupado com o impacto da parceria da Vodafone com a e& sobre a fusão planejada de 19 bilhões de dólares (R$ 93,7 milhões) da Vodafone com a rival Three UK, atualmente examinada pela autoridade que zela pela livre concorrência no país.
A Three pertence à CK Hutchison, de Hong Kong, e o acordo poderia dar à China – mas também aos Emirados Árabes Unidos – acesso à infraestrutura crítica de comunicações do Reino Unido.
Países do Golfo não são a China
Para alguns analistas, contudo, essas preocupações podem estar sendo exageradas. "A Arábia Saudita não persegue interesses comparáveis aos da China ou da Rússia", avalia Woertz. "Enquanto a China tem buscado tecnologia que já está instalada aqui em infraestruturas de comunicações altamente sensíveis, esse não é o caso da Arábia Saudita. Eles não produzem tecnologia de ponta como a chinesa Huawei."
A Huawei, assim como outras empresas de tecnologia chinesas, foi banida pelos Estados Unidos e muitos de seus aliados. Agências de inteligência ocidentais temem que equipamentos de rede sem fio chineses possam ser vigiados por Pequim.
Muito dinheiro para chips de alta qualidade
Em meio à escassez global de semicondutores de alta qualidade necessários aos modelos avançados de linguagem de inteligência artificial, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos estariam adquirindo chips fabricados pela empresa de tecnologia americana NVIDIA.
Os dois países falaram abertamente sobre o desejo de se tornarem líderes em tecnologias de IA – enquanto especialistas alertam sobre os perigos do uso indevido delas por regimes autocráticos. A China, um exemplo disso, mantém-se à frente na vigilância de uma população de 1,4 bilhão de pessoas.
Ao jornal Financial Times, a diretora do escritório europeu do Centro para Democracia e Tecnologia, Iverna McGowan, comentou no mês passado sobre os impactos nefastos que a IA pode ter em um contexto onde defensores dos direitos humanos e jornalistas são alvos frequentes de repressões do governo – caso dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita. "Junte a isso o fato de que sabemos como a IA pode ter impactos discriminatórios ou ser usada para intensificar a vigilância ilegal. É uma ideia assustadora."
Vigilância e laços estreitos com a China
No noticiário recente, os países do Golfo ganharam notoriedade pelas suas próprias habilidades de vigilância. Em 2019, o Google e a Apple baniram um popular aplicativo de mensagens dos Emirados Árabes, o ToTok, após o New York Times relatar que ele estava sendo usado por agências de inteligência do país para espionar os usuários.
Os países do Golfo também censuram pesadamente a internet: conteúdo anti-islâmico, crítico ao governo ou questões liberais, como os direitos LGBTQ+, por exemplo.
Eles também são parceiros essenciais da China na Rota da Seda Digital, braço tecnológico da nova Rota da Seda, iniciativa que visa facilitar o comércio exterior da China.
Vários analistas alertaram que a onipresença de tecnologias de espionagem chinesas no Oriente Médio provavelmente trará preocupações adicionais de segurança para o Ocidente.
Sportswashing: o esporte como marketing
Defensores de direitos humanos têm regularmente denunciado a Arábia Saudita por uma prática conhecida como "sportswashing", uma estratégia para melhorar e promover a própria imagem através do esporte. Em outras palavras, significa distrair a atenção pública de um histórico ruim de direitos humanos com mega acordos esportivos, como a recente fusão com o PGA Tour e o investimento em uma liga saudita repleta de craques do futebol do Ocidente.
"Está claro há algum tempo que a Arábia Saudita estava disposta a usar vastas quantias de dinheiro para se impor no topo do golfe – é apenas parte de um esforço mais amplo para se tornar uma grande potência esportiva e tentar desviar a atenção do terrível histórico de direitos humanos do país", comenta Felix Jakens, da Anistia Internacional no Reino Unido.
Em seu último relatório anual, a organização acusou a Arábia Saudita de violações que incluíam julgamentos injustos, tortura em prisões, execuções em massa e discriminação de mulheres.
Embora essas preocupações sejam importantes e as ameaças à segurança precisem ser investigadas, Woertz, do GIGA, afirma que o pragmatismo muitas vezes prevalece sobre outras questões nos negócios, especialmente em tempos de crise. "Para as empresas, os direitos humanos não são suas principais preocupações. Trata-se de expandir os negócios respectivos e, como investidores, eles [países do Golfo] são muito úteis."