Por que "Round 6" é tão brutal – e tanta gente gosta?
Silke Wünsch
13 de outubro de 2021
Promessa de prêmio milionário faz jogos infantis descambarem para a carnificina: essa é a estrutura da série mais vista da história da Netflix. Além de diversão e violência, ela é um estudo social.
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Os muito pobres e os muito ricos, diz-se em Round 6, têm uma coisa em comum: eles não têm prazer na vida. Os primeiros não sabem como sustentar a si e à família, os últimos estão entendiados de tanta abundância. Por que não unir os dois?
Sem spoilers: o "Jogo da Lula" (Squid Game, nome original da série sul-coreana) é organizado por gente muito rica que, para se distrair, convida centenas de perdedores, os quais são conduzidos por seis rodadas. Quem não consegue atravessar uma delas é "desqualificado", ou seja: executado. Para o vencedor, acena-se com um prêmio milionário.
A série superou Bridgerton e se tornou o maior sucesso da história da Netflix, primeiro lugar de audiência em 90 países. Segundo informou a plataforma de streaming nesta terça-feira (12/10), Round 6 já foi vista em 111 milhões de lares, menos de um mês depois de lançada.
E conseguiu isso tratando de jogos infantis simples em que o que está em jogo é vida ou morte. Seja uma corrida na qual quem faz um movimento na hora errada leva um tiro na cabeça, sejam times perdedores que se precipitam no abismo num silêncio quase sinistro: no fim o que mais conta são os truques psicológicos pérfidos com que os participantes são impelidos de um round para o outro.
Um "empurrãozinho" da pandemia
Os eventos são em parte tão insuportáveis que alguns espectadores desistiram da série. Quem engendrou essa trama tão perturbadora foi o roteirista e diretor sul-coreano Hwang Dong-hyuk. Ele tinha a história na gaveta desde 2008, e foi bater de porta em porta com ela. Ninguém a quis: para os potenciais patrocinadores, era demasiado brutal e pouco realista.
Netflix sofre processo por causa de “Round 6”
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Hwang contou ao jornal The Wall Street Journal que na época chegou até a vender seu laptop para ter algo para comer. Foi preciso vir a pandemia de covid-19, tornando tão óbvio o abismo entre ricos e pobres que o roteiro se tornou socialmente apresentável. "O mundo mudou. Em comparação com o que era dez anos atrás, todos esses pontos tornam hoje a história bem realista para o público", explicou o diretor.
Em 2020, o filme Parasita, de Bong Joon-ho, cujo tema central também é a estrutura da sociedade sul-coreana, foi o grande vencedor do Oscar. Possivelmente o êxito internacional do filme contribuiu para que a série deslanchasse com tanta força.
Espelho da sociedade sul-coreana
Sulgi Lie é pesquisador de cinema e mídia na Universidade Livre de Berlim e na Academia de Artes Plásticas de Viena, e tem sido curador de retrospectivas do cinema coreano. Em sua opinião, Round 6 mostra os problemas sociais da Coreia do Sul de forma excepcionalmente nítida.
"Vagas de trabalho são eliminadas em nome do 'saneamento', mão de obra estrangeira é explorada e praticamente privada de direitos, a estrutura hierárquica se revela de forma mais crassa. No contexto da crise do coronavírus, houve notícias de altas taxas de suicídio de cidadãos que, sem qualquer tipo de segurança social, simplesmente caíram por entre as malhas da rede. Eu acho que isso, que é uma tendência social global, se manifesta mais fortemente na sociedade coreana."
Assim, faz sentido as jogadoras e jogadores da série virem de todos os meios possíveis: um trabalhador demitido para "saneamento", um paquistanês explorado, um ex-estudante de elite, uma refugiada da comunista Coreia do Norte, um profissional que cometeu um erro médico – e, claro, também bandidos.
Nenhum deles tem qualquer chance "lá fora", já que a sociedade é brutal com os perdedores. Por isso todos que sobreviveram o primeiro round do jogo prosseguem voluntariamente. Pois, como se diz a certa altura na série, "há dois infernos, e o pior é a realidade".
Tensão entre brincadeira infantil e brutalidade
Round 6 tem sido criticada por suas cenas drásticas. No entanto, orgias de violência não são nada de novo em filmes e séries populares. Em várias de suas produções, o americano Quentin Tarantino fez muito sangue jorrar, e massacres copiosos foram uma característica marcante da série Guerra dos Tronos (2011-2019).
O que é realmente brutal na atual série da Netflix, observa Lie, é jogos infantis singelos se transformarem subitamente em carnificinas sanguinolentas, na caixa de areia, sob armações de escalar, diante de muros pintados com nuvenzinhas azuis.
"Um truque simples, mas efetivo, é a série apelar para brincadeiras infantis arcaicas, como bolinha de gude ou cabo de guerra, e a violência escalar justamente num cenário assim. O interessante na série não é a brutalidade em si, mas essa tensão entre brincadeira e violência."
Para Lie, é óbvio por que Round 6 tem tido tanto sucesso, justamente com o público jovem: há muita coisa que lembra a estrutura dos jogos de computador. "Por um lado, a contagem dos mortos, que não é incomum nos games, assim como a coleta de troféus ou pontos. Por outro, essa estrutura de níveis: quem vence um level, passa para o próximo."
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Ninguém está seguro em Round 6
Para quem é viciado, é fácil prever rapidamente o que vai acontecer a seguir numa série. Em Round 6, não é tão simples assim: o roteirista Hwang tem sempre uma surpresa a postos. Os espectadores não encontram uma âncora, não têm com quem realmente se identificar.
As rodadas exigem a formação constante de novos times: quem teve que se manter coeso num round, no próximo possivelmente será adversário de morte. Ninguém está seguro, o mais forte pode se transformar no mais fraco de todos, e vice-versa.
A maneira drástica em que a história é contada certamente se deve ao background cultural e político da Coreia do Sul, onde "há muitas contradições entre a tradição e a modernidade, e essas contradições coexistem", explica Sulgi Lie. "E essas muitas zonas de conflito são muito interessantes para filmes e séries. Por isso as histórias também são contadas de modo mais radical: uma tensão permanente predomina na sociedade."
Alemanha e suas séries de TV e streaming
O mercado alemão de séries floresce, e não só com produções de emissoras locais. Gigantes como Sky, Amazon e Netflix apostam na estratégia de oferecer obras alemãs a um público internacional.
Foto: Netflix
"Dark", a primeira série alemã da Netflix
Em dezembro de 2017 estreou a primeira série alemã da Netflix para o mercado mundial. A temporada, de dez episódios, trata dos destinos de quatro famílias no interior da Alemanha: o sumiço de duas crianças desencadeia investigações que remontam até a década de 1950. A segunda temporada estreou em junho de 2019, e a terceira foi confirmada para 2020. Foi dublada e legendada em português brasileiro.
Foto: Netflix
Êxito artístico com "Im Angesicht des Verbrechens"
Muitos consideram "Im Angesicht des Verbrechens" (Diante do crime) a melhor série alemã da década: o épico de dois policiais investigando os círculos da máfia russa em Berlim. Contudo as vertiginosas sequências de cenas, enquadramentos sombrios e experimentos formais do diretor Dominik Graf foram ousados demais para parte do público, e a produção teve baixa audiência em 2010.
Foto: ARD/Julia von Vietinghoff
"Parfum", uma série criminal brutal e surpreendente
Em 2018, o canal alemão ZDFneo exibiu a série criminal Parfum (O Perfume), de seis episódios. Na trama, a brutal morte de uma antiga amiga leva um grupo a se reunir. Características específicas no cadáver fazem os amigos pensarem que somente um deles poderia ter cometido o crime. Fora da Alemanha, a produção foi disponibilizada pela Netflix, incluindo no Brasil, legendada e dublada em português.
Foto: Filmfest München 2018
How to Sell Drugs Online (Fast), tom de comédia para assunto sério
Em “How to Sell Drugs Online (Fast)”, que estreou em junho na Netflix, um estudante de uma pequena cidade da Alemanha, filho de um policial, decide vender drogas pela internet para se reaproximar da ex-namorada e arrasta o melhor amigo para o negócio. A série, em tom de comédia, foi dublada e legendada em português brasileiro e o título traduzido para "Como Vender Drogas Online (Rápido)".
Foto: picture-alliance/dpa/Netflix
"Weissensee": Berlim Oriental dos anos 80
Lançada em 2010, "Weissensee" é uma vitória da televisão alemã ao abordar temas da história recente. Tratando de duas famílias de Berlim Oriental na década de 1980, a produção da TV ARD teve boa audiência, já está caminhando para a quarta temporada e foi vendida para a Itália e a Rússia, entre outros mercados.
Foto: picture-alliance/dpa/B. Pedersen
"Deutschland 83" e mais
"Deutschland 83" foi exibida em 2015 na Alemanha pelo canal privado RTL. Apesar de premiada no exterior, ela teve baixa audiência na TV comercial e, a sequência, “Deutschland 86”, foi disponibilizada apenas na Amazon Prime, em 2018. No Brasil, a série foi transmitida pelo +Globosat, com o título “Deutschland - Espião Novato” e segue disponível no Globoplay. Os autores já prometem “Deutschland 89”.
Foto: picture alliance/dpa/R. Hirschberger
"Cães de Berlim" e o submundo da capital alemã
Produzida pela Netflix, "Dogs of Berlin" (Cães de Berlim) estreou em dezembro de 2018. A trama mergulha na face sombria da capital alemã e tem como protagonistas dois policiais não convencionais: Kurt Grimmer, um ex-neonazista, e Erol Birkan, homossexual e de ascendência turca. A dupla investiga o assassinato do jogador de futebol turco-alemão Orkan Erdem. É dublada e legendada em português.
Foto: Netflix
"You are wanted" na Amazon
Antecipando-se por alguns meses à rival Netflix, a gigante americana do streaming Amazon Prime lançou em março de 2017 sua primeira série alemça, "You are wanted" (Você é procurado), protagonizada por Matthias Schweighöfer. Focando vigilância digital e teorias da conspiração, a série não encontrou aprovação unânime do público e crítica. Ainda assim, sua segunda temporada já está em preparação.
Foto: picture alliance / Stephan Rabold/Amazon/dpa
Clãs de Berlim em "4 Blocks"
A produção do diretor Marvin Kren pode ser considerada um sucesso entre as séries alemãs e entrará em sua segunda temporada. Tratando dos conflitos entre os clãs familiares rivais do bairro berlinense de Neukölln, ela foi lançada em maio de 2017, em seis episódios, pelo canal de TV a cabo TNT Serie. "4 Blocks" recebeu críticas entusiásticas, chegando a ser comparada à americana "Os Sopranos".
Foto: picture-alliance/dpa/Handout/2017 Turner Broadcasting System Europe Limited & Wiedemann & Berg Television GmbH & Co.
Opulência dos anos 20 em "Babylon Berlin"
Série mais cara da TV alemã, "Babylon Berlin", de 2017, exibida pela Sky, é a prova de que os roteiristas e cineastas alemães são especialmente bons ao abordar temas históricos. Com grande minúcia e em imagens opulentas, três cineastas, entre os quais Tom Tykwer, evocaram a Berlim dos anos 1920. A série já foi vendida para diversos países.
Foto: 2017 X Filme/Frédéric Batier
"Das Verschwinden": drama psicológico
As emissoras de direito público da Alemanha também têm se lançado com sucesso no universo das séries. Em outubro de 2017, a ARD apresentou "Das Verschwinden" (O desaparecimento), uma sinistra história passada na Alemanha, dirigida por Hans-Christian Schmid. Como em "Dark", o tema aqui é o sumiço de uma jovem, e o drama psicológico resultante.
Na trilha das rivais Amazon e Sky, a Netflix conseguiu ampliar com "Dark" a sua parcela no mercado alemão: ao lado de seu enorme sucesso global, a plataforma de streaming persegue a estratégia de aproximar-se ainda mais das plateias nacionais encomendando especialmente séries para os mercados específicos.
Foto: Netflix
Mundos obscuros
O suíço Baran bo Odar dirigiu a série "Dark", escrita a quatro mãos com sua esposa, Jantje Friese. Em 2010, ele levara às telas uma história semelhante: também "Das letzte Schweigen" (O silêncio) é um drama familiar em torno de um desaparecimento, que conecta duas diferentes gerações. "Dark", porém, é bem mais sombrio, numa encenação quase sufocante.