Por que se recorre a Hannah Arendt para explicar Trump
3 de fevereiro de 2017De origem judaica, Hannah Arendt (1906-1975) nasceu na Alemanha e deixou o país quando Adolf Hitler assumiu o poder em 1933. Ela passou um período como refugiada apátrida na França e foi deportada para um campo de internamento sob o regime Vichy. Em 1941, Arendt emigrou para os EUA, assumindo mais tarde a cidadania americana.
Tendo vivenciado de perto o quase colapso de uma civilização avançada, ela também se tornou uma das primeiras teóricas políticas a analisar como o totalitarismo pôde se desenvolver no início do século 20. As raízes do nazismo e do stalinismo estão descritas em seu primeiro grande livro, As origens do totalitarismo, publicado originalmente em inglês em 1951.
Desde então, o livro se tornou leitura obrigatória para muitos estudantes, e agora a densa obra política de mais de 500 páginas se tornou um best-seller. Ele tem voado das prateleiras americanas desde que Donald Trump subiu ao poder no país. Esses novos fãs de Arendt estão, presumivelmente, tentando entender para onde pode levar a presidência do republicano.
"Na compreensão de Hannah Arendt, Trump não é um totalitário; ele incorpora o que ela chama de 'elementos' do totalitarismo", explicou recentemente à DW Roger Berkowitz, professor e chefe do Centro Hannah Arendt de Política e Humanidade no Bard College em Nova York.
Berkowitz disse, no entanto, que fortes sinais de alerta não devem ser ignorados: "Arendt acreditava que um dos elementos centrais do totalitarismo é que ele é baseado num movimento (...) e Trump afirmou explicitamente que seria o porta-voz de um movimento. Essa é uma posição muito perigosa para um político."
Soluções fáceis em tempos de ansiedade mundial
A análise de Arendt se concentra sobre os acontecimentos do período em que viveu. Embora as suas observações não possam explicar, obviamente, tudo sobre os complexos desenvolvimentos políticos de hoje, muitas delas ainda são bastante reveladoras: o populismo de direita a se espalhar pela Europa e EUA é uma reminiscência, em diferentes formas, da situação nos anos 1920 e 1930 que permitiu que nazistas e comunistas subissem ao poder.
Os livros de Arendt proporcionam uma visão sobre os mecanismos que levam tantas pessoas a aceitar prontamente mentiras, em tempos de incerteza global. Enquanto grandes jornais, como o New York Times e Washington Post, estão resgatando os escritos da filósofa, os usuários nas redes sociais compartilham amplamente frases como esta de As origens do totalitarismo:
"Num mundo incompreensível e sempre em mutação, as massas chegariam a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditariam em tudo e nada, pensariam que tudo seria possível e nada seria verdade."
Narrativas simplificadas, repetidas
Em tal contexto, narrativas simplificadas, repetidas – e falsas –, que põem a culpa em bodes expiatórios e oferecem soluções fáceis, têm preferência sobre análises mais profundas que levam a opiniões informadas. Essa abordagem foi aplicada por líderes totalitários como Hitler, escreveu Arendt.
Neste sentido, não é nenhuma novidade a estratégia de Trump de colocar a culpa generalizada em muçulmanos e mexicanos pelo terrorismo, crime ou desemprego, e reivindicar um veto de viagem ou um muro como uma solução fácil.
Segundo Arendt, no início do século 20, os líderes totalitários basearam a sua propaganda nesta suposição explicitada em As origens do totalitarismo: "Pode-se fazer com que as pessoas acreditem em determinado dia nas mais fantásticas declarações, e esperar que, no dia seguinte, elas se refugiem no cinismo ao receber provas irrefutáveis da falsidade dessas afirmações; em vez de abandonar os líderes que mentiram para elas, as pessoas iriam clamar que sabiam o tempo todo que a declaração era uma mentira e admirariam os líderes por sua esperteza tática superior."
Agora, Trump eleva essa abordagem a novos extremos. Mesmo que nunca tenha havido tantas pessoas dedicadas a expor as mentiras do novo presidente americano, a astuta tática presidencial é fazer com que tais relatos sejam desacreditados como vindos da mídia tradicional e "desonesta". Atualmente, as crenças do movimento liderado pelo magnata são apoiadas por fontes alternativas amplamente disponíveis.
Em 1974, Hannah Arendt declarou em entrevista: "Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada."
A "banalidade do mal"
Num relato de Arendt, de 1961, sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, ela ganhou fama com a expressão "a banalidade do mal" ao descrever o seu ponto de vista que a maldade poderia não ser algo tão radical quanto se espera.
Em seu livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, Arendt explica como crimes foram cometidos por pessoas que obedeciam a ordens cegamente, para estar em conformidade com as massas. "Há uma estranha interdependência entre a irreflexão e o mal", escreveu a filósofa em seu clássico.
A definição de irreflexão elaborada num primeiro trabalho publicado em 1958, A condição humana, poderia muito bem ter sido escrita para descrever as ordens executivas assinadas apressadamente por Trump, como também os seus esforços para justificá-las: "Irreflexão – a imprudência negligente ou desesperançada confusão ou repetição complacente de 'verdades' que se tornaram triviais e vãs – parece ser uma das características mais notáveis de nosso tempo."
Desobediência civil
Claro, tais citações fora de seu contexto podem ser fáceis e confortáveis de compartilhar online, mas elas não refletem a totalidade das ideias de Arendt. Da mesma forma, aqueles que quiserem encontrar todas as respostas em As origens do totalitarismo estão fadados a se decepcionar.
Não foi Arendt quem escolheu o título, mas seu editor. Segundo Berkowitz, ela acreditava que o mundo era complexo e confuso demais para se identificar as raízes do totalitarismo.
Ao revisitar os escritos de Arendt, tentando impossivelmente prever se seremos tomados por novas formas de totalitarismo no futuro, pode-se encontrar consolo em outras observações da filósofa: ela considerava a desobediência civil uma parte essencial do sistema político americano – e os fortes movimentos de protesto atualmente no país demonstram isso novamente. Como na famosa frase da escritora: "Ninguém tem o direito de obedecer."