Inquéritos autorizados por ministro miram cúpula do governo, mas não o próprio presidente. Para PGR, chefe de Estado tem "imunidade temporária", o que STF já disse não ser impedimento para investigação.
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O fim do sigilo sobre os pedidos de inquérito baseados nas delações da Odebrecht, com a divulgação da chamada lista de Fachin nesta terça-feira (11/04), implicou a cúpula da classe política brasileira. Estão lá senadores, governadores, deputados e cinco ex-presidentes. Oito ministros do governo Temer foram arrastados para essa nova etapa da Lava Jato. Mas e o próprio Michel Temer?
O atual presidente é citado em dois inquéritos. Um deles mira os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-Geral). Ambos são investigados por suspeita de cobrar propinas para irrigar a campanha de Temer e outras candidaturas do PMDB em 2014.
Outro inquérito investiga o senador Humberto Costa (PT-PE), também por suspeita de pagamento de propina. Nesse último, há menção a depoimentos que afirmam que Temer participou em 2010, quando era candidato a vice-presidente, de uma reunião em que se discutiram repasses em troca de facilitar a participação da Odebrecht em projetos da Petrobras. O delator Márcio Faria afirmou que Temer comandou uma reunião em São Paulo na qual se acertou o repasse de 40 milhões de dólares. Temer nega que tenha falado sobre valores com Faria.
Apesar de ser mencionado por delatores e da presença de dois de seus colaboradores mais próximos na lista, Temer não foi incluído na investigação.
Justificativa
Ao explicar a ausência de Temer, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, disse que o presidente "possui imunidade temporária à persecução penal”. Esse entendimento invoca o parágrafo 4º do artigo 86 da Constituição, que determina que "o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções".
Por essa linha, o presidente não pode ser acusado ou julgado por algo que aconteceu antes da sua posse. Como as menções a Temer se referem a episódios ocorridos antes de 2016, quando ele assumiu a Presidência, elas não deveriam ser usadas como base para um inquérito contra o peemedebista.
Não é a primeira vez que isso ocorre com Temer. No fim de março, Janot usou o mesmo argumento quando analisou um trecho da delação do ex-diretor da Transpetro Sérgio Machado, que também implicou o presidente com repasses ilegais de campanha em 2012.
"Excepciona-se apenas o trâmite da investigação em relação ao atual presidente da Republica, Michel Temer (...) porque ele possui imunidade temporária a persecução penal", escreveu Janot no dia 28 de março. Ao justificar a atitude, ele afirmou que sua conclusão teve como base o "entendimento do Supremo Tribunal Federal".
Entendimento conflitante
Mas conforme o próprio Supremo, embora o presidente não possa ser responsabilizado, isso não quer dizer que ele não possa ser investigado ou se tornar alvo de um inquérito. Tal entendimento foi explicitado pelo antigo ministro Teori Zavascki, antecessor de Edson Fachin na relatoria da Lava Jato.
Em maio de 2015, Zavascki disse em um despacho que a então presidente Dilma Rousseff, poderia, sim, ser investigada se a Procuradoria-Geral da República (PGR) fizesse um pedido nesse sentido e oferecesse indícios.
"Não se nega que há entendimento desta Suprema Corte no sentido de que a cláusula de exclusão de responsabilidade prevista no parágrafo 4º do artigo 86 da Constituição não inviabiliza, se for o caso, a instauração de procedimento meramente investigatório, destinado a formar ou a preservar a base probatória para uma eventual e futura demanda contra o Chefe do Poder Executivo", disse o ministro.
Ou seja, a investigação pode começar quando o presidente ainda está no exercício do mandato, ele só não pode ser processado. Eventualmente, o que aparecer na investigação pode ser usado para montar um caso quando ele deixar o cargo. Teori citou que sua conclusão era baseada no entendimento de outro ministro, Celso de Mello, o decano do Supremo.
Teori se manifestou por causa de um pedido do PPS, partido que fazia oposição a Dilma. A sigla queria que a PGR levasse adiante uma investigação contra a petista por suposto envolvimento dela nos desvios da Petrobras. A investigação não foi adiante porque a PGR entendeu que não havia indícios suficientes para justificar a abertura do inquérito. Teori respondeu ao PPS que somente poderia aceitar abrir um inquérito se a PGR oferecesse o pedido, já que cabe ao Ministério Público acionar o Supremo.
À época, o teor do despacho de Teori foi tema de reportagens do jornal O Estado de S. Paulo e da revista Veja. Um dos colunistas desta última chegou a afirmar que "não dá mais para Janot se esconder numa lei que não existe" e que "Dilma começou a correr bem mais riscos".
Nesta quarta-feira, ao comentar a ausência de Temer como alvo dos inquéritos, o jornalista e blogueiro Josias de Souza afirmou que "valendo-se de um entendimento equivocado, Janot livrou Temer de ser investigado no STF".
Entenda a Operação Lava Jato
A Polícia Federal apura, desde 2014, um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Entenda a maior investigação sobre corrupção já conduzida no país.
Foto: AFP/Getty Images
O início
A Operação Lava Jato foi deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de 2014. Começou investigando um esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro e descobriu a existência de uma imensa rede de corrupção envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e políticos. O nome vem de um posto de gasolina em Brasília, um dos alvos da PF no primeiro dia de operação.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Brandt
O esquema
Executivos da Petrobras cobravam propina de empreiteiras para, em troca, facilitar as negociações dessas empresas com a estatal. Os contratos eram superfaturados, o que permitia o desvio de verbas dos cofres públicos a lobistas e doleiros, os chamados operadores do esquema. Eles, por sua vez, eram encarregados de lavar o dinheiro e repassá-lo a uma série de políticos e funcionários públicos.
Foto: Reuters/S. Moraes
As figuras-chave
O esquema na Petrobras se concentrava em três diretorias: de abastecimento, então comandada por Paulo Roberto Costa; de serviços, sob direção de Renato Duque; e internacional, cujo diretor era Nestor Cerveró. Cada área tinha seus operadores para distribuir o dinheiro. Um deles era o doleiro Alberto Youssef (foto), que se tornou uma das figuras centrais da trama. Todos os citados foram condenados.
Foto: imago/Fotoarena
As empreiteiras
As grandes construtoras do país formaram uma espécie de cartel: decidiam entre si quem participaria de determinadas licitações da Petrobras e combinavam os preços das obras. Os executivos da estatal, por sua vez, garantiam que apenas o cartel fosse convidado para as licitações. Entre as empresas investigadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Vários executivos foram condenados.
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Os políticos
O núcleo político era formado por parlamentares de diferentes partidos, responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobras que sustentavam a rede de corrupção dentro da estatal. Os políticos envolvidos recebiam propina em porcentagens que variavam de 1% a 5% do valor dos contratos, segundo os investigadores. O dinheiro foi usado, por exemplo, para financiar campanhas eleitorais.
Foto: J. Sorges
De Cunha a Dirceu...
A investigação só entrou no mundo político em 2015, quando a Lava Jato foi autorizada a apurar mais de 50 nomes, entre deputados, senadores e governadores de vários partidos. Desde então, viraram alvo de investigação políticos como os ex-parlamentares Eduardo Cunha (foto) e Delcídio do Amaral, ambos cassados, os senadores Renan Calheiros, Fernando Collor e o ex-ministro José Dirceu.
Foto: Reuters/A. Machado
... e Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é réu em dez processos relacionados à Lava Jato, sendo acusado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça. As denúncias indicam que Lula teria recebido benefícios das empreiteiras OAS e Odebrecht, envolvendo imóveis no Guarujá e São Bernardo do Campo. Em 2018, ele foi preso e teve uma nova candidatura à Presidência barrada.
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As prisões
A Lava Jato quebrou tabus no Brasil ao encarcerar altos executivos de empresas e importantes figuras políticas. Entre investigados e aqueles já condenados pela Justiça, estão o executivo Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht; Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara; Sérgio Cabral, ex-governador do Rio; os ex-ministros José Dirceu (foto) e Antonio Palocci, entre outros.
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As delações
Os acordos de delação premiada são considerados a força-motriz da operação. Depoimentos como o de Marcelo Odebrecht (foto) chegam com potencial para impactar fortemente a investigação. O acordo funciona assim: de um lado, os delatores se comprometem a fornecer provas e contar o que sabem sobre os crimes, além de devolver os bens adquiridos ilegalmente; de outro, a Justiça reduz suas penas.
Foto: Getty Images/AFP/H. Andrey
O juiz
Responsável pela Lava Jato na 1° instância, o ex-juiz federal Sergio Moro logo ganhou notoriedade. Em manifestações, foi ovacionado pelo povo e chegou a ser chamado de "herói nacional". Mas também foi acusado de agir com parcialidade política. Em 2018, deixou o cargo e aceitou ser ministro do presidente Jair Bolsonaro, cuja candidatura foi beneficiada pela prisão de Lula no ano anterior.
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Expansão internacional
Se começou num posto de gasolina em Brasília, a Lava Jato ganhou proporções internacionais com o aprofundamento das investigações. Segundo dados do Ministério Público Federal levantados a pedido da DW Brasil, a investigação já conta com a cooperação de pelo menos outros 40 países (veja no gráfico acima). Além disso, 14 países, fora o Brasil, investigam práticas ilegais promovidas pela Odebrecht.
Um terremoto político
Ao longo de cinco anos, a Lava Jato influenciou o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu o governo Michel Temer e contribuiu para a derrocada de velhos caciques do PT, MDB e PSDB. Em 2018, Lula, então favorito para vencer as eleições presidenciais, foi preso e teve a candidatura barrada. As investigações também fortaleceram um discurso antissistema que beneficiou a campanha de Bolsonaro.
Foto: picture-alliance/dpa/ZUMAPRESS/C.Faga
Críticas e revelações
A Lava Jato também acumulou acusações de parcialidade e de abusos em seus métodos. Em 2019, os procuradores da força-tarefa foram duramente criticados por tentarem criar uma fundação para gerenciar uma multa bilionária da Petrobras. No mesmo ano, conversas reveladas pelo site "The Intercept" apontaram suspeita de conluio entre Moro e os procuradores na condução dos processos, o que é proibido.