Ministro da Justiça quer deportação sumária de "perigosos". Para analistas, além de romper com a tradição sul-americana de hospitalidade, medida é inconstitucional, injustificada e priva estrangeiros de tratamento justo.
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Toda "pessoa perigosa para a segurança do Brasil" poderá agora ser deportada sumariamente ou até ter impedido seu ingresso no país – é o que prevê a Portaria nº 666, expedida pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, na última quinta-feira (25/07).
As críticas vieram imediatamente. "Não aconteceu nada no Brasil que justifique uma portaria dessa", surpreendeu-se a advogada Tania Maria de Oliveira, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), falando à DW.
Para todos que se ocupam do tema migração no Brasil, a decisão administrativa veio do nada, confirma o defensor público João Chaves: a tradição histórica nacional não é de deportar imigrantes, mas sim legalizar os ilegais.
No momento, há 11 mil refugiados legais no país, e 160 mil requerimentos ainda estão em andamento. Em comparação com a Europa, não existe nem um problema migratório, nem uma discussão séria sobre o assunto, frisa a advogada Oliveira. "Nós não temos problemas de estrangeiros com situação irregular, os números são irrisórios. Não tem justificativa nenhuma para isso."
Também para o especialista em direitos humanos e relações internacionais Thiago Amparo, da Fundação Getúlio Vargas, os motivos de Moro são inescrutáveis, e sua portaria infringe a Lei da Migração de 2017, que garante os direitos humanos dos refugiados. A redução do prazo para apresentar defesa, de 60 dias para 48 horas, "contrariando o prazo previsto na lei, na verdade impede que a pessoa tenha acesso a uma ampla defesa contraditória às razões pelas quais está sendo deportada".
O defensor público Chaves acrescenta que a nova portaria ignora os processos em andamento. Além disso, a abreviação do prazo de defesa para 48 horas, mais 24 horas para apresentação de recurso, priva os estrangeiros de seu direito a um processo judicial igual ao de todo brasileiro: "Mesmo na Alemanha, que tem um padrão rígido de tratamento com imigração, isso não seria admitido num tribunal."
A nova portaria permite, ainda, deportação em casos de apenas suspeita, inclusive com base em informações de serviços de inteligência estrangeiros, enquanto a Lei da Migração de 2017, por sua vez, exigia uma sentença válida como pré-condição para uma deportação. Fica também reinstituída a prisão preventiva para os que aguardam a deportação, algo que a lei de 2017 eliminara.
Já é inconstitucional o fato de a portaria corrigir uma lei, aponta João Chaves: normalmente esse é o procedimento de ditaduras, não de democracias. O caminho correto seria uma emenda da Lei de Migração vigente, aprovada pelo Congresso.
Para Thiago Amparo, o Brasil segue o exemplo dos Estados Unidos, Polônia e Hungria, com sua "retórica anti-imigratória muito forte", e o presidente Jair Bolsonaro se alinha ideologicamente a esses países. "O grande problema é a visão que o governo Bolsonaro tem da migração", observa Chaves. "A lógica que está nessa portaria é de ver o imigrante como ameaça à segurança nacional."
Isso se choca com a tradição da América do Sul, que "sempre foi reconhecida por boas práticas com relação a migrantes". "Mas a ideia de estabelecer uma política rígida, de permitir a saída ou inadmissão de pessoas por mera suspeita, pode ter uma semelhança muito grande com a política americana. Mas isso não quer dizer que seja boa", ressalva Chaves.
"O Brasil deveria se espelhar nas boas práticas, que ele próprio já consolidou", propõe o defensor público. Em muitos campos, na verdade, o país estaria mais avançado do que, por exemplo, a Alemanha atual, onde o solicitante tem que esperar inativo pela decisão de seu caso: "Nós já temos um sistema muito mais eficiente que o da Alemanha. Enquanto a pessoa aguarda a decisão sobre ser ou não refugiada, ela pode trabalhar, pode estudar, pode fazer sua vida."
Nos EUA e na Europa, os imigrantes, em geral, são encarados como perigo, mas "não devemos encarar isso como exemplo. O grande exemplo que a gente tem que dar é a tradição sul-americana que é facilitar residência e regularização", apela Chaves. Há muito o Brasil também deixou de ser uma clássica nação de imigrantes: é de três para um a proporção entre os brasileiros que vão para o exterior e os estrangeiros que chegam ao país.
A quem se dirige realmente a portaria, perguntam-se os especialistas? No momento, Bolsonaro parece ter um inimigo de estimação: o americano Glenn Greenwald. Com suas divulgações recentes no portal The Intercept, o jornalista investigativo provocou clamor público: uma série de mensagens compromete seriamente Moro e os investigadores da operação anticorrupção Lava Jato.
Greenwald sempre afirmou ter recebido os chats de fonte anônima. Neste fim de semana, contudo, o presidente e alguns ministros exigiram sua prisão, alegando estarem certos que o jornalista estaria por trás dos ciberataques que deram acesso às mensagens. Como é casado com um brasileiro e tem dois filhos adotados, porém, ele está a salvo da deportação.
Bolsonaro lamentou o fato, chamando "Glenn" de "malandro", por ter se casado com brasileiro, e ameaçando: "Talvez ele pegue uma cana aqui no Brasil." Na segunda-feira, representantes do governo reforçaram a ofensiva, acusando Greenwald de práticas ilegais para aquisição das gravações dos chats.
"Acaba sendo um padrão Bolsonaro a notícias que o desagradam, de alguma forma", comenta Marina Iemini Atoji, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), "ele tenta ameaçar e intimidar jornalistas". Ela considera um mau sinal o fato de que ele o faça a partir de sua posição de chefe de Estado: "Isso representa um ataque muito grande à liberdade de expressão."
As visitas de presidentes brasileiros aos Estados Unidos
Relembre como foram as principais visitas de presidentes do Brasil aos Estados Unidos após a redemocratização do Brasil nos anos 1980.
Foto: Public Domain/Ronald Reagan Presidential Library & Museum/White House
Setembro de 1986: Sarney visita Reagan
Além de se reunir com Ronald Reagan, José Sarney proferiu um discurso ao Congresso. Os líderes discutiram a crise do endividamento internacional e a recusa do Brasil em assinar um acordo formal com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Outro tema foi a manutenção pelo Brasil da reserva de mercado para produtos de informática, mesmo com possíveis sanções pelos EUA. Pelé também estava na comitiva.
Foto: Public Domain/Ronald Reagan Presidential Library & Museum/White House
1990-1992: visitas entre Collor e Bush
Os dois presidentes se encontraram duas vezes em 1990: em setembro, Fernando Collor esteve com George H. W. Bush durante a Assembleia Geral da ONU e, em dezembro, o americano visitou Collor e ainda discursou ao Congresso brasileiro. Em junho de 1991, o brasileiro visitou Bush nos EUA e, em junho de 1992, Bush teve um encontro com o brasileiro durante a Conferência Rio-92.
Abril de 1995: FHC visita Clinton
Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton abordaram um dos principais atritos entre os países: a aprovação da Lei de Patentes. Os EUA ameaçavam com sanções se o projeto não passasse. O texto chegou a ser aprovado em fevereiro de 1996, mas nos moldes como queriam os americanos. FHC repetiu ainda uma demanda brasileira existente até hoje: ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
FHC participou de uma reunião nas Nações Unidas sobre o combate ao tráfico de drogas e ficou hospedado em Camp David, a casa de campo da Presidência americana. Ele teve um encontro informal com Clinton, que cumprimentou FHC pela boa resposta brasileira à turbulência financeira asiática. Os dois líderes conversaram ainda sobre a paz no Oriente Médio e a estratégia de combate às drogas.
Foto: Imago/Zumapress/S. Farmer
Maio de 1999: FHC visita Clinton
Em Washington, FHC participou de vários encontros com governantes e empresários para convencê-los de que o pior da crise econômica já havia passado e afirmou que seu governo tentaria impedir outras no futuro. Com Clinton, FHC insistiu que era necessário buscar mecanismos financeiros que protegessem o país de ataques especulativos e de prejuízos provocados pela volatilidade de capitais.
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Abril de 2001: FHC visita Bush
Na visita, o país desistiu de selar um acordo com os EUA sobre o início da Área de Livre Comércio das Américas (Alca. O revés de última hora ocorreu após o Departamento de Estado enviar a alguns países um memorando defendendo o ano de 2003 – em contraponto ao acordo fechado entre Brasília e Washington de começar a Alca em 2005. O documento esvaziou a visita de FHC.
Foto: Getty Images/M. Wilson
Novembro de 2001: FHC visita Bush
FHC e George W. Bush tiveram na Casa Branca uma conversa amigável, porém, morna. Ambos falaram sobre terrorismo, prejuízo do protecionismo às nações em desenvolvimento, economia da Argentina e a criação de um Estado palestino. FHC reforçou ainda o desejo do Brasil de ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Depois, o brasileiro foi para Nova York abrir a Assembleia Geral da ONU.
Foto: Getty Images/AFP/S. Thew
Junho de 2003: Lula visita Bush
O encontro terminou sem resultados concretos. O Brasil chegou a prometer que cooperaria para concluir com êxito a Alca até 2005 e a pedir o apoio de Washington para ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – dois assuntos que não avançaram. Eles também discutiram a paz no mundo e Lula disse que ela só seria alcançada se os países ricos ajudassem os mais pobres a se desenvolverem.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
Março de 2007: visitas entre Lula e Bush
No início do mês, Bush e Lula assinaram em Guarulhos/SP um memorando para a cooperação no desenvolvimento da tecnologia de biocombustíveis e prometeram diminuir a dependência do petróleo e de outros combustíveis fósseis não renováveis em seus países. No final de março, Lula foi recebido em Camp David (foto) para discutir o etanol como commodity mundial e a retomada da Rodada Doha, da OMC.
Foto: Getty Images/R. Sachs-Pool
Março de 2009: Lula visita Obama
No seu primeiro encontro, os dois presidentes anunciaram a criação de um grupo de trabalho para a reunião do G20, que aconteceu no mês seguinte em Londres, para buscar uma estratégia comum para enfrentar, na época, a crise econômica mundial, aumentar a confiança no sistema financeiro e recuperar as economias afetadas pelo maior crash vivido pelo mundo desde a década de 1930.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Reynolds
Abril de 2012: Dilma visita Obama
Dilma Rousseff mostrou preocupação com a depreciação das moedas dos países ricos em consequência das políticas monetárias deles para conter a crise, dizendo que esse desequilíbrio afeta todas as nações, principalmente as emergentes. Barack Obama disse que a relação dos dois países "nunca esteve mais forte" e discutiu com a brasileira temas como narcotráfico, intercâmbio estudantil e combustíveis.
Foto: Carolyn Kaster/AP Photo/picture alliance
Junho de 2015: Dilma visita Obama
A reunião marcou a superação de um imbróglio diplomático depois de documentos da Agência de Segurança Nacional (NSA) vazados por Edward Snowden mostrarem que os EUA também espionavam Dilma. Por causa do escândalo, ela chegara a cancelar uma visita de Estado a Obama em outubro de 2013. No encontro de 2015, Dilma tentou atrair investimentos, prometeu reduzir a poluição e aumentar o reflorestamento.
Foto: Getty Images/C. Somodevilla
Março de 2019: Bolsonaro visita Trump
Foi a primeira visita de Estado de Jair Bolsonaro – e a viagem foi bem-sucedida para o então presidente brasileiro. O fato de ele ter se encontrado com fiéis foi bem recebido entre seus eleitores evangélicos. Para militares e para a economia, ele conseguiu a promessa de Trump de apoiar o status de aliado preferencial na Otan e a entrada do Brasil na OCDE.
Foto: Allen Eyestone/ZUMAPRESS.com/picture alliance