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Precisamos aquilombar o Brasil

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
24 de novembro de 2022

Não basta ter consciência racial no mês de novembro, é preciso transbordá-la para todos os dias do ano. Zumbi morreu, mas seu quilombo continuou existindo. O Brasil também é um Palmares que resiste.

Roda de capoeira no Quilombo do Camorim, no Rio de JaneiroFoto: picture-alliance /dpa/B. Walton

Nós, criados no universo do "era uma vez", temos o infeliz costume de imaginar que as histórias acabam com "e foram felizes para sempre", mesmo quando essa felicidade está longe de corresponder à realidade. De certa forma, isso também se aplica a quando estudamos importantes episódios ou personagens de nossa história.

No dia 20 de novembro de 1695, Zumbi, líder máximo do Quilombo dos Palmares, foi assassinado. Sua morte era há muito desejada pelas autoridades coloniais da capitania de Pernambuco e Alagoas, pelos senhores de engenho e pelos proprietários de escravizados da região. Uma morte que se tornaria mais um troféu a ser comemorado pela expedição do bandeirante Domingos Jorge Velho, um homem conhecido pela violência empregada no processo de escravização de diferentes sociedades indígenas, em diferentes localidades do Brasil de então. Sendo assim, nesse caso específico, foram esses homens da elite colonial que "viveram felizes para sempre", depois que conseguiram matar um dos maiores inimigos da ordem escravocrata.

Ainda que Zumbi tenha sido uma liderança incontestável – cuja trajetória épica precisa e deve ser exaustivamente narrada pelos mais diferentes meios –, ele não foi maior do que o quilombo que liderou. Palmares não acabou após a morte de Zumbi, embora os principais mocambos que o compunham tenham sido desmantelados. É fundamental lembrar disso, não só para trazer as histórias daqueles que mantiveram a resistência aquilombada, como também para entender que "a felicidade eterna" da elite colonial durou apenas até a página dois.

Bálsamo para quem enfrenta racismo

Saber que Palmares (menor e modificado) continuou (re)existindo no século 18, e que não foi o único quilombo da nossa história, é quase um bálsamo para quem enfrenta cotidianamente o racismo brasileiro. É reconhecer que a história continua, com todas as suas dores e delícias.

Essa percepção, que de tão singela, chega a ser banal, precisa ser escancarada em novembro, mês no qual o Brasil comemora o Dia da Consciência Negra – graças à ação histórica do movimento negro. Isso porque, neste mês, podemos observar uma encruzilhada marcada, por um lado, por pessoas e movimentos que insistem em defender "a consciência humana", diminuindo e ridicularizando o racismo brasileiro; e, por outro lado, uma espécie de micareta racial, na qual pessoas brancas de boa vontade lembram que o racismo existe e que deve ser combatido.

Parem e vejam.

O Brasil também é um Palmares que resiste

O nome (muito bem) escolhido para o feriado de 20 de Novembro foi Dia da Consciência Negra. Poderia ser "feriado de Zumbi", "feriado de Palmares", mas não: a data do assassinato de Zumbi dos Palmares foi escolhida para celebrar conhecimentos e percepções que confirmam nossa existência no mundo.

A palavra consciência tem uma série de significados, muitos deles bem complexos. No entanto, é interessante pensar que conceitos como moralidade, experiência, percepção, honestidade e discernimento sejam utilizados para definir o que é consciência. Isso significa dizer que a escolha do nome dado ao feriado traz no seu bojo algo que deve transbordar e inundar o restante do ano.

Não basta ter consciência racial no mês de novembro e imaginar que, com isso, é possível ser "feliz para sempre". Esta é mais uma das premissas que constituem o privilégio de ser branco no Brasil: pensar que "era uma vez o racismo no Brasil" apenas nas semanas que antecedem o 20 de Novembro.

Precisamos transbordar a consciência negra para todos os dias do ano, para as ações de transformação social, para a elaboração de políticas públicas, para o exercício da democracia. Zumbi morreu, mas o quilombo continuou existindo, ainda que diferente. Deste modo, o Brasil também é um Palmares que resiste. E, justamente por isso, lembrando as palavras de Beatriz Nascimento, precisamos aquilombar o Brasil.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.